Apologia da História por Marc Bloch - História (2024)

UFMA

Igor Guedes 17/09/2024

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<p>Marc Bloch</p><p>Apologia da História</p><p>ou O Ofício de Historiador</p><p>Edição anotada por Étienne Bloch</p><p>Prefácio: Jacques Le Goff</p><p>Apresentação à edição brasileira: Lilia Moritz Schwarcz</p><p>Tradução: André Telles</p><p>Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro</p><p>http://groups.google.com/group/digitalsource</p><p>Título original:</p><p>Apologie pour l'histoire,</p><p>ou Métier d'historien</p><p>Tradução autorizada da edição francesa publicada em 1997 por Armand Colin, de Paris, França</p><p>Copyright © 1993,1997, Armand Colin</p><p>Copyright da edição brasileira © 2002:</p><p>Jorge Zahar Editor Ltda.</p><p>Rua México 31 sobreloja</p><p>20031-144 Rio de Janeiro, RJ</p><p>Tel.: (21) 2108-0808/fax: (21)2108-0800</p><p>E-mail: jze@zahar.com.br</p><p>Site: www.zahar.com.br</p><p>Todos os direitos reservados.</p><p>A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos</p><p>autorais. (Lei 9.610/98)</p><p>Este livro, publicado no âmbito do programa de auxílio à publicação, contou com o apoio do</p><p>Ministério francês das Relações Exteriores, da Embaixada da França no Brasil e da Maison française do</p><p>Rio de Janeiro.</p><p>Capa: Sérgio Campante</p><p>CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.</p><p>Sumário</p><p>Apresentação à edição brasileira, por Lilia Moritz Schwarcz ......................... 7</p><p>Prefácio, por Jacques Le Goff.............................................................................. 15</p><p>A Lucien Febvre, à guisa de dedicatória ............................................................. 39</p><p>Introdução ............................................................................................................... 41</p><p>Capítulo I — A história, os homens e o tempo .............................................. 51</p><p>1. A escolha do historiador ......................................................................... 51</p><p>2. A história e os homens ............................................................................ 52</p><p>3.O tempo histórico...................................................................................... 55</p><p>4.O ídolo das origens.................................................................................... 56</p><p>5. Passado e "presente" ............................................................................... 60</p><p>Capítulo II — A observação histórica .............................................................. 69</p><p>1. Características gerais da observação histórica ..................................... 69</p><p>2. Os testemunhos ........................................................................................ 76</p><p>3. A transmissão dos testemunhos ............................................................ 82</p><p>Capítulo III — A crítica ...................................................................................... 89</p><p>1. Esboço de uma história do método crítico ......................................... 89</p><p>2. Em busca da mentira e do erro .............................................................. 96</p><p>3. Tentativa de uma lógica do método crítico ......................................... 109</p><p>Capítulo IV — A análise histórica ..................................................................... 125</p><p>1. Julgar ou compreender? ........................................................................... 125</p><p>2. Da diversidade dos fatos humanos à unidade de consciência .......... 128</p><p>3. A nomenclatura ......................................................................................... 135</p><p>4. (Sem título) ................................................................................................. 147</p><p>Capítulo V — (Sem título) .................................................................................. 155</p><p>Apresentação à edição brasileira</p><p>Por uma historiografia da reflexão</p><p>Segundo um velho provérbio árabe, "os homens se parecem mais com sua época</p><p>do que com seus pais". Ditos, pretensamente ingênuos, fazem mais do que</p><p>simplesmente dispor sobre o óbvio; muitas vezes anunciam tendências ou expõem, de</p><p>forma sintética, sentimentos e expectativas.</p><p>Na verdade, foi essa fórmula que Marc Bloch, o grande historiador medievalista</p><p>francês, sempre buscou. Contra uma historiografia positiva e événementielle —</p><p>conforme designaram F. Simiand e P. Lacombe —, que se apoiava em fatos, grandes</p><p>nomes e heróis e assim constituía pautas e agendas históricas naturalizadas, Bloch</p><p>inaugurou a noção de "história como problema".</p><p>Em primeiro lugar, a história não seria mais entendida como uma "ciência do</p><p>passado", uma vez que, segundo Bloch, "passado não é objeto de ciência". Ao contrário,</p><p>era no jogo entre a importância do presente para a compreensão do passado e vice-versa</p><p>que a partida era, de fato, jogada. Nessa formulação pretensamente simples estava</p><p>exposto o "método regressivo": temas do presente condicionam e delimitam o retorno,</p><p>possível, ao passado. Tal qual um "dom das fadas", a história faria com que o passado</p><p>retornasse, porém não de maneira intocada e "pura". Por isso mesmo, Bloch preferia</p><p>trocar os termos da equação e provocar dizendo que, assim como a história não era a</p><p>ciência do passado, também não poderia ser definida como uma "ciência do homem".</p><p>Entre tantos "nãos" sobrava, porém, espaço para a conclusão; a história seria</p><p>talvez a "ciência dos homens, ou melhor, dos homens no tempo". Não estamos longe da</p><p>definição de Lucien Febvre, um especialista no século XVI, o qual, junto com Marc</p><p>Bloch, fundou nos idos de 1929 a prestigiosa escola dos Annales, que teria papel</p><p>fundamental na constituição de um novo modelo de historiografia. Segundo Febvre, a</p><p>"história era filha de seu tempo", o que já demonstrava a intenção do grupo de</p><p>problematizar o próprio "fazer histórico" e sua capacidade de observar. Cada época</p><p>elenca novos temas que, no fundo, falam mais de suas próprias inquietações e</p><p>convicções do que de tempos memoráveis, cuja lógica pode ser descoberta de uma vez</p><p>só.</p><p>A mesma postura crítica escorregava para a análise dos documentos, que</p><p>deixavam de representar fontes inoculadas e por si só verdadeiras. "Documentos</p><p>7</p><p>8 Apologia da história</p><p>são vestígios" diz Marc Bloch, contrapondo-se à versão da época, que definia o passado</p><p>como um dado rígido, que ninguém altera ou modifica. Longe dessa postura mais</p><p>ontológica e reifícadora, para o historiador francês o passado era uma "estrutura em</p><p>progresso". Segundo Bloch, mesmo o mais claro e complacente dos documentos não</p><p>fala senão quando se sabe interrogá-lo. É a pergunta que fazemos que condiciona a</p><p>análise e, no limite, eleva ou diminui a importância de um texto retirado de um momento</p><p>afastado.</p><p>Novos tempos levam a novas historicidades; boas perguntas constituem campos</p><p>inesperados. Diante da insistência de Alice em saber qual a melhor formulação, assim</p><p>reagia Humpty Dumpty, na famosa história de Lewis Carrol: " — A questão é: quem é o</p><p>senhor, quem é o dono das perguntas?" Nenhum objeto tem movimento na sociedade</p><p>humana exceto pela significação que os homens lhe atribuem, e são as questões que</p><p>condicionam os objetos e não o oposto.</p><p>Esse tipo de visão crítica — oposta aos modelos mais tradicionais de</p><p>historiografia, que acreditavam naquilo que Le Goff chamou de "imperialismo dos</p><p>documentos" — marcou Marc Bloch e toda a primeira geração dos Annales. Tratava-se</p><p>de uma espécie de guerra de "trincheiras" contra a história exclusivamente política e</p><p>militar; uma história até então segura e tranquila diante dos eventos e da realidade que</p><p>buscava anunciar.</p><p>Os tempos eram decididamente outros, assim como foi diferente a carreira do,</p><p>ainda, jovem historiador Marc Bloch. Tendo frequentado a École Normale até o ano de</p><p>1908, lá entrou em contato com a obra de Lévy-Bruhl — autor que advogava a idéia da</p><p>existência de idéias definidoras de diferentes momentos civilizatórios — e sobretudo de</p><p>Émile Durkheim, declaradamente sua maior influência. Foi a partir da análise da obra do</p><p>sociólogo e da revista Année Sociologique que</p><p>livro, com efeito, não é um ponto de chegada, mas um ponto de partida.</p><p>O que podem pensar hoje um historiador, um professor de história, um</p><p>estudante, um diletante da história (e qualquer mulher, qualquer homem deve, no</p><p>espírito de Marc Bloch, ser diletante, talvez até mesmo amante da história) sobre esta</p><p>obra?</p><p>Trata-se em primeiro lugar da obra de um indivíduo inteligente e sensível, homem</p><p>e cidadão assim como professor e historiador, tomado de certeza mas consciente da</p><p>juventude incerta da ciência histórica, carregado de uma erudição ampla e profunda mas</p><p>pronto para as aventuras intelectuais, tendo fome de saber, de compreensão e de</p><p>explicação. É também a obra de um historiador, nascido em 1886, formado no seio de</p><p>uma família universitária judia e dreyfusista, insatisfeito com a estreiteza e a</p><p>superficialidade da concepção, da prática e do ensino da história na França do início do</p><p>século XX e que, através de seu encontro com Lucien Febvre, tornou-se um dos grandes</p><p>atores da renovação da história entre as duas guerras, por sua obra, seu ensino e a</p><p>influência dos Annales, dos quais foi, como dissemos, co-fundador. Um filho espiritual</p><p>de Michelet e de Fustel de Coulanges, reunindo assim o melhor da historiografia</p><p>européia no final do século XIX e no início do século XX, um leitor de Marx, de</p><p>Durkheim, de Simiand sempre pronto a escutar aquelas de suas mensagens que</p><p>aprofundam e confortam a história, a resistir igualmente ao que em suas análises elimina</p><p>o tempo real da história e os homens concretos que a experimentam, mas também a</p><p>fazem, até os atores anônimos das profundezas. Como teria definido a si próprio, um</p><p>filho de sua época, mais ainda que de seu pai. E essa época é a III República, as duas</p><p>guerras mundiais que Marc Bloch "fez" e intensamente viveu como cidadão, como</p><p>soldado e como historiador.</p><p>Obra desse Marc Bloch individual e coletivo, Apologia da história é também o</p><p>produto de um momento. O da França vencida, prostrada na derrota, na Ocupa-</p><p>34 Apologia da história</p><p>ção e na infâmia de Vichy, mas onde Marc Bloch capta os primeiros frêmitos de uma</p><p>esperança, tanto de uma libertação da história, que é preciso ajudar na resistência ativa,</p><p>como de um progresso da ciência histórica, que é preciso esclarecer escrevendo este</p><p>livro. Assim como o historiador belga Henri Pirenne — grande mestre e cúmplice aqui</p><p>citado com frequência, colocado em prisão domiciliar vigiada pelos alemães durante a I</p><p>Guerra Mundial — ali escreve uma pioneira História da Europa., assim como no mesmo</p><p>momento, em um campo de prisioneiros na Alemanha, Fernand Braudel elabora sua tese</p><p>sobre O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II (1949).</p><p>Este livro inacabado é um ato completo de história.</p><p>JACQUES LE GOFF</p><p>Para uso do leitor</p><p>Nesta obra foram utilizados certos sinais que buscam refletir, o mais fielmente</p><p>possível, os textos originais. Assim:</p><p>.... indicam que uma ou várias palavras dos manuscritos de Marc Bloch são</p><p>indecifráveis. Caso se trate de várias palavras, isso é mencionado.</p><p>/ separa as palavras, os grupos de palavras e membros de frases na ausência de</p><p>pontuação nas folhas manuscritas.</p><p>[ ] indicam palavras ou passagens acrescentadas em relação a uma redação</p><p>anterior de Marc Bloch (primeira redação ou redação intermediária quando não existe</p><p>primeira redação).</p><p>] [ indicam palavras ou passagens suprimidas em relação às redações anteriores de</p><p>Marc Bloch.</p><p>1 os números sobrescritos remetem a notas de rodapé de Étienne Bloch.</p><p>* os asteriscos remetem a notas de tradução.</p><p>35</p><p>IN MEMORIAM MATRIS AMICAE</p><p>A Dedicatória a Lucien Febvre</p><p>A LUCIEN FEBVRE À guisa de dedicatória</p><p>Caso um dia este livro seja publicado; se, de simples antídoto, ao qual, entre as</p><p>piores dores e as piores angústias, pessoais e coletivas, peço neste momento um pouco</p><p>de paz de espírito, tornar-se para sempre um verdadeiro livro, oferecido para ser lido:</p><p>um outro nome que não o seu, caro amigo, será então inscrito na folha de rosto. Você</p><p>sabe disso, era preciso este nome neste lugar: única evocação permitida a uma ternura</p><p>demasiado profunda e sagrada para ser mencionada. Entretanto, como iria resignar-me a</p><p>vê-lo surgir apenas ao acaso de algumas referências (muito pouco numerosas, de resto)1?</p><p>Combatemos longamente, em conjunto, por uma história maior e mais humana. A tarefa</p><p>comum, no momento em que escrevo, decerto sofre ameaças. Não por nossa culpa.</p><p>Somos os vencidos provisórios de um injusto destino. Tempo virá, estou certo, em que</p><p>nossa colaboração poderá verdadeiramente2 ser retomada: pública, como no passado, e,</p><p>como no passado, livre. Por ora, é nestas páginas, todas repletas de sua presença, que, de</p><p>minha parte, ela prosseguirá. Manterá com isso o ritmo, que foi sempre o seu, de um</p><p>acordo fundamental, vivificado, na superfície, pelo proveitoso jogo de nossas afetuosas</p><p>discussões. Entre as idéias que proponho sustentar, mais de uma, seguramente, vem</p><p>diretamente de você. Muitas outras, não saberia decidir em toda consciência se são suas,</p><p>minhas, ou de nós ambos. Você aprovará, gabo-me disso, muitas vezes. Em outras me</p><p>repreenderá. E tudo isto criará, entre nós, um vínculo a mais3.</p><p>Fougères (Creuse), 10 de maio de 1941</p><p>1 Essas palavras entre parênteses, objeto de uma remissão, parecem ter sido mantidas, ao</p><p>passo que a sequência foi riscada, seja por Marc Bloch, seja por outra mão. Eis aqui o</p><p>texto: "na medida em que o exigiu a estrita equidade; pois é quase a cada passo que é</p><p>preciso citá-lo, tanto suas declarações familiares como seus escritos; mas para ser justo</p><p>seria preciso estendê-las até suas declarações familiares."</p><p>2 Lucien Febvre substituiu essa palavra [véritablement] pelo advérbio "vraiment".</p><p>3 Existem dois textos da Dedicatória, ambos redigidos pela mão de Marc Bloch: um, o</p><p>original, que reproduzimos aqui, e outro copiado em uma folha anexada a uma carta a</p><p>Lucien Febvre datada de 17 de agosto de 1942. Lucien Febvre escolheu publicar esse</p><p>segundo texto, o qual não comporta nem o parêntese "(muito pouco numerosas, de</p><p>resto)" nem a vírgula antes de "um vínculo a mais".</p><p>39</p><p>Introdução</p><p>"Papai, então me explica para que serve a história." Assim um garoto, de quem</p><p>gosto muito, interrogava há poucos anos um pai historiador. Sobre o livro que se vai ler,</p><p>gostaria de poder dizer que é minha resposta. Pois não imagino, para um escritor, elogio</p><p>mais belo do que saber falar, no mesmo tom, aos doutos e aos escolares. Mas</p><p>simplicidade tão apurada é privilégio de alguns raros eleitos. Pelo menos conservarei aqui</p><p>de bom grado essa pergunta como epígrafe, pergunta de uma criança cuja sede de saber</p><p>eu talvez não tenha, naquele momento, conseguido satisfazer muito bem. Alguns,</p><p>provavelmente, julgarão sua formulação ingênua. Parece-me, ao contrário, mais que</p><p>pertinente. O problema que ela coloca, com a incisiva objetividade dessa idade</p><p>implacável, não é nada menos do que o da legitimidade da história1.</p><p>Eis portanto o historiador chamado a prestar contas. Só se arriscará a isso com</p><p>certo estremecimento interior: que artesão envelhecido no ofício não se pergun-</p><p>l Nota de Marc Bloch: "A respeito do que oponho-me, desde o início e sem o ter</p><p>buscado, à Introdução aos estudos históricos de Langlois e Seignobos. A passagem que</p><p>se acaba de ler já estava escrita há muito tempo, quando me caiu sob os olhos, na</p><p>Advertência dessa obra (p.XII), uma lista de 'perguntas ociosas'. Ali consta,</p><p>textualmente, a seguinte: 'Para que serve a história?' Sem dúvida ocorre com esse</p><p>problema o mesmo que com quase todos os que concernem às razões de ser de nossos</p><p>atos e nossos pensamentos: os espíritos que lhes permanecem, por natureza,</p><p>indiferentes, ou que voluntariamente decidiram por tal postura, dificilmente</p><p>compreendem que outros espíritos vejam nisso o tema de reflexões apaixonantes.</p><p>Entretanto, uma vez que a ocasião me é assim oferecida, vale mais, creio, fixar desde já</p><p>minha posição a respeito</p><p>de um livro justamente notório, ao qual o meu, aliás,</p><p>construído sobre outro plano e, em certas de suas partes, muitos menos desenvolvido,</p><p>não pretende de forma alguma substituir. Fui aluno desses dois autores e, especialmente,</p><p>do sr. Seignobos. Deram-me, ambos, preciosas demonstrações de sua boa vontade.</p><p>Meus primeiros estudos deveram muito a seu ensino e a sua obra. Mas ambos não nos</p><p>ensinaram apenas que o historiador tem como primeiro dever ser sincero; tampouco</p><p>dissimulavam que o próprio progresso de nossos estudos é feito da contradição</p><p>necessária entre as gerações sucessivas de trabalhadores. Permanecerei portanto fiel às</p><p>suas lições criticando-as, ali onde julgo ser útil, bastante livremente, como desejo que um</p><p>dia meus alunos, por sua vez, me critiquem."</p><p>41</p><p>42 Apologia da história</p><p>tou algum dia, com um aperto no coração, se fez de sua vida um uso sensato? Mas o</p><p>debate supera, em muito, os [pequenos] escrúpulos2 de uma moral corporativa. Nossa</p><p>civilização ocidental inteira está interessada nele.</p><p>Pois, diferentemente de outros tipos de cultura, ela sempre esperou muito de sua</p><p>memória. [Tudo a levava a isso: tanto a herança cristã como a herança antiga. Os gregos</p><p>e os latinos, nossos primeiros mestres, eram povos historiógrafos. O cristianismo é uma</p><p>religião de historiador. Outros sistemas religiosos fundaram suas crenças e seus ritos</p><p>sobre uma mitologia praticamente exterior ao tempo humano; como Livros sagrados, os</p><p>cristãos têm livros de história, e suas liturgias comemoram, com os episódios da vida</p><p>terrestre de um Deus, os faustos da Igreja e dos santos. Histórico, o cristianismo o é</p><p>ainda de outra maneira, talvez mais profunda: colocado entre a Queda e o Juízo, o</p><p>destino da humanidade afigura-se, a seus olhos, uma longa aventura, da qual cada vida</p><p>individual, cada "peregrinação" particular, apresenta, por sua vez, o reflexo; é nessa</p><p>duração, portanto dentro da história, que se desenrola, eixo central de toda meditação</p><p>cristã, o grande drama do Pecado e da Redenção. Nossa arte, nossos monumentos</p><p>literários estão carregados dos ecos do passado, nossos homens de ação trazem</p><p>incessantemente na boca suas lições, reais ou supostas.</p><p>Sem dúvida, conviria marcar mais de uma nuance entre as psicologias de grupos.</p><p>Cournot observou isso há muito tempo: eternamente inclinados a reconstruir o mundo</p><p>sobre as linhas da razão, os franceses, em sua massa, vivem suas lembranças coletivas</p><p>bem menos intensamente do que os alemães, por exemplo. Sem dúvida também, as</p><p>civilizações podem mudar. Não é inconcebível, em si, que a nossa não se desvie da</p><p>história um dia. Os historiadores agirão sensatamente refletindo sobre isso. A história</p><p>mal-entendida, caso não se tome cuidado, seria muito bem capaz de arrastar finalmente</p><p>em seu descrédito a história melhor entendida. Mas se um dia chegássemos a isso, seria</p><p>ao preço de uma violenta ruptura com nossas mais constantes tradições intelectuais.</p><p>Por ora estamos apenas, quanto a esse assunto, no estágio do exame de</p><p>consciência. Cada vez que nossas tristes sociedades, em perpétua crise de crescimento,</p><p>põem-se a duvidar de si próprias, vemo-las se perguntar se tiveram razão ao interrogar</p><p>seu passado ou se o interrogaram devidamente. Leiam o que se escrevia antes da guerra,</p><p>o que ainda pode ser escrito nos dias de hoje]: entre as preocupações difusas da época</p><p>presente, escutarão, quase inexoravelmente, essa preocupação misturar sua voz às outras.</p><p>Em pleno drama, foi-me dado captar seu eco [todo] espontâneo. Era junho de 1940, no</p><p>mesmo dia, se bem me lembro, da entrada dos alemães em Paris. No jardim normando,</p><p>onde nosso estado-maior,</p><p>2 ], por mais respeitáveis que sejam,[</p><p>Introdução 43</p><p>privado de tropas, exercitava sua ociosidade, remoíamos as causas do desastre: "É</p><p>possível acreditar que a história nos tenha enganado?" murmurou um de nós. Assim, a</p><p>angústia do homem feito ia ao encontro, com um acento mais amargo, da simples</p><p>curiosidade do rapazola. É preciso responder a um e a outro.</p><p>Entretanto, convém saber o que quer dizer a palavra "servir".</p><p>Decerto, mesmo que a história fosse julgada incapaz de outros serviços, restaria</p><p>dizer, a seu favor, que ela entretém. Ou, para ser mais exato — pois cada um busca seus</p><p>passatempos3 onde mais lhe agrada —, assim parece, incontestavelmente, para um</p><p>grande número de homens.4 Pessoalmente, do mais remoto que me lembre, ela sempre</p><p>me pareceu divertida. Como todos os historiadores, eu penso. Sem o quê, por quais</p><p>razões teriam escolhido esse oficio? Aos olhos de qualquer um que não seja um tolo</p><p>completo, com quatro letras, todas as ciências são interessantes. Mas todo cientista só</p><p>encontra uma única cuja prática o diverte. Descobri-la para a ela se dedicar é</p><p>propriamente o que se chama vocação.</p><p>Aliás, essa inegável atração da história por si só já merece que a reflexão se</p><p>detenha.</p><p>Como germe5 e como estímulo, seu papel foi e permanece capital. Antes do</p><p>desejo de conhecimento, o simples gosto; antes da obra de ciência, plenamente</p><p>consciente de seus fins, o instinto que leva a ela: a evolução de nosso comportamento</p><p>intelectual abunda em filiações desse tipo. Podemos citar inclusive a física, cujos</p><p>primeiros passos devem muito aos "gabinetes de curiosidade". Vimos, do mesmo modo,</p><p>as pequenas alegrias das quinquilharias figurarem no berço de mais de uma orientação de</p><p>estudos que, pouco a pouco, se embebeu do sério. Tal a gênese da arqueologia e, mais</p><p>próximo de nós, do folclore. Os leitores de Alexandre Dumas talvez não sejam mais do</p><p>que historiadores em potencial, aos quais falta apenas terem sido adestrados para se</p><p>proporcionar um prazer puro e, para mim, mais agudo: o da cor verdadeira.</p><p>Por outro lado, que esse encanto esteja bem longe de se apagar, uma vez abordada</p><p>a investigação metódica, com suas necessárias austeridades; que, ao contrário — todos</p><p>os [verdadeiros] historiadores podem testemunhar isso —, ele ganhe mais ainda em</p><p>vivacidade e plenitude: quanto a isso, de certa forma, não há</p><p>3 ]a[</p><p>4 É possivelmente em torno desse trecho que devia se situar a nota de Marc Bloch:</p><p>"Prefácio a Accessiones Historicae (1700): Opera, ed. Dutens, t.IV-2, p.55: 'Tria sunt</p><p>quae expetimus in Historia: primum, voluptatem noscendi res singulares; deinde, utilia in</p><p>primis vitae praecepta; ad denique origines praesentium a praeteritis repetitas, cum</p><p>omnia optime ex causis noscantur'"</p><p>5 ] primeiramente [</p><p>44 Apologia da história</p><p>nada que não valha alguma coisa para qualquer trabalho do espírito6. A história no</p><p>entanto, não se pode duvidar disso, tem seus gozos estéticos próprios, que não se</p><p>parecem com os de nenhuma outra disciplina. É que o espetáculo das atividades</p><p>humanas, que forma seu objeto específico, é, mais que qualquer outro, feito para seduzir</p><p>a imaginação dos homens. Sobretudo quando, graças a seu distanciamento no tempo ou</p><p>no espaço, seu desdobramento se orna das sutis seduções do estranho. O grande</p><p>Leibniz, ele próprio nos deixou uma confissão a respeito: quando das abstraías</p><p>especulações matemáticas ou da teodicéia passava para o decifra-mento dos velhos</p><p>documentos ou das velhas crônicas da Alemanha imperial, experimentava, como todos</p><p>nós, essa "volúpia de aprender coisas singulares". Resguardemo-nos de retirar de nossa</p><p>ciência sua parte de poesia. Resguardemo-nos sobretudo, já surpreendi essa sensação em</p><p>alguns, de enrubescer por isso. Seria uma espantosa tolice acreditar que, por exercer</p><p>sobre a sensibilidade um apelo tão poderoso, ela devesse ser menos capaz de satisfazer</p><p>também nossa inteligência.</p><p>Se a história, não obstante, para a qual nos arrasta assim uma atração quase</p><p>universalmente sentida, só tivesse isso para se justificar, se fosse apenas, em suma, um</p><p>amável passatempo, como o bridge ou a pesca, valeria a pena todo o esforço que</p><p>fazemos para escrevê-la? Para escrevê-la, quero dizer honestamente, indo</p><p>verdadeiramente em direção, o máximo possível, às suas molas ocultas: por conseguinte,</p><p>com dificuldade.</p><p>Os jogos, escreveu André Gide, deixaram hoje de nos ser permitidos:</p><p>inclusive, acrescentava, os da inteligência. Isso era dito em 1938. Em 1942, quando por</p><p>minha vez escrevo, o quão mais carregada de um sentido mais pesado ficou tal</p><p>declaração! Com toda certeza, num mundo que acaba de abordar a química do átomo e</p><p>mal começa a sondar o segredo dos espaços estelares, em nosso pobre mundo que,</p><p>justamente orgulhoso de sua ciência, não consegue todavia criar para si um pouco de</p><p>felicidade, as longas minúcias da erudição histórica, muito capazes de devorar uma vida</p><p>inteira, mereceriam ser condenadas como um desperdício de forças absurdo a ponto de</p><p>ser criminoso, se devesse apenas servir para dissimular com um pouco de verdade uma</p><p>de nossas distrações. Ou será preciso desaconselhar a prática da história a todos os</p><p>espíritos capazes de serem melhor utilizados em outro lugar, ou é como conhecimento</p><p>que a história terá de provar sua consciência limpa.</p><p>Mas aqui uma nova pergunta se coloca: o que, precisamente, torna legítimo um</p><p>esforço intelectual?</p><p>Ninguém, imagino, ousaria mais dizer hoje em dia, como os positivistas de estrita</p><p>observância, que o valor de uma investigação se mede, em tudo e para tudo,</p><p>6 ]. Todo exercício intelectual habilmente conduzido não será, à sua maneira, uma obra</p><p>de arte?[</p><p>Introdução 45</p><p>por sua aptidão a servir à ação. A experiência não apenas nos ensinou que é impossível</p><p>decidir previamente se as especulações aparentemente as mais desinteressadas não se</p><p>revelarão, um dia, espantosamente úteis à prática. Seria infligir à humanidade uma</p><p>estranha mutilação recusar-lhe o direito de buscar, fora de qualquer preocupação de</p><p>bem-estar, o apaziguamento de suas fomes intelectuais. À história, mesmo que fosse</p><p>eternamente indiferente ao homo faber ou politicus, bastaria ser reconhecida como</p><p>necessária ao pleno desabrochar do homo sapiens. Entretanto, mesmo assim limitada, a</p><p>questão não está, por isso, logo resolvida.</p><p>Pois a natureza de nosso entendimento o leva muito menos a querer saber do que</p><p>a querer compreender. Daí resulta que as únicas ciências autênticas são, para ele, aquelas</p><p>que conseguem estabelecer ligações explicativas entre os fenômenos. O Ora, a polimatia</p><p>pode muito bem passar por distração ou mania; tanto hoje quanto na época de</p><p>Malebranche, seria incapaz de representar uma das boas obras da inteligência.</p><p>Independentemente até de qualquer eventualidade de aplicação à conduta, a história terá</p><p>portanto o direito de reivindicar seu lugar entre os conhecimentos verdadeiramente</p><p>dignos de esforço apenas na medida em que, em lugar de uma simples enumeração, sem</p><p>vínculos e quase sem limites, nos permitir uma classificação racional e uma progressiva</p><p>inteligibilidade.</p><p>Não se pode negar, no entanto, que uma ciência nos parecerá sempre ter algo de</p><p>incompleto se não nos ajudar, cedo ou tarde, a viver melhor. Em particular, como não</p><p>experimentar com mais força esse sentimento em relação à história, ainda mais</p><p>claramente predestinada, acredita-se, a trabalhar em benefício do homem na medida em</p><p>que tem o próprio homem e seus atos como material? De fato, uma velha tendência, à</p><p>qual atribuir-se-á pelo menos um valor de instinto, nos inclina a lhe pedir os meios de</p><p>guiar nossa ação: em consequência, a nos indignar contra ela, como o soldado vencido</p><p>de cuja frase eu lembrava, caso, eventualmente, pareça mostrar sua impotência em</p><p>fornecê-los. O problema da utilidade da história, no sentido estrito, no sentido</p><p>"pragmático" da palavra útil, não se confunde com o de sua legitimidade, propriamente</p><p>intelectual. Este, a propósito, só pode vir em segundo lugar: para agir sensatamente, não</p><p>será preciso compreender em primeiro lugar? Mas sob pena de não responder senão pela</p><p>metade às sugestões mais imperiosas do senso comum, este problema tampouco poderá</p><p>ser elucidado.</p><p>A essas perguntas, alguns, entre nossos conselheiros ou entre os que gostariam de</p><p>sê-lo, já responderam. Foi para zombar de nossas esperanças. Os mais indulgentes</p><p>disseram: a história é tanto sem utilidade como sem solidez. Outros, cuja severidade</p><p>despreza meias-medidas: ela é perniciosa. "O produto mais perigoso que a química do</p><p>cérebro já elaborou": assim pronunciou-se um deles [e não dos menos notórios]. Essas</p><p>condenações têm um temível atrativo: justificam, antecipada-</p><p>46 Apologia da história</p><p>mente, a ignorância. Felizmente, para o que ainda subsiste em nós de curiosidade</p><p>intelectual, não são irrecorríveis.</p><p>Mas se o debate deve ser reconsiderado, convém que seja sobre dados mais</p><p>seguros.</p><p>Pois há uma precaução que os habituais detratores da história parecem não ter</p><p>percebido. A palavra deles não carece nem de eloquência, nem de espirituosidade. Em</p><p>sua maioria porém, omitiram-se de se informar exatamente sobre aquilo de que falam. A</p><p>imagem que fazem de nossos estudos não foi captada na oficina. Recende antes a</p><p>oratório e a Academia do que o gabinete de trabalho7. Está sobretudo caduca. De</p><p>maneira que tanta verve poderia afinal ter sido gasta para exorcizar apenas uma fantasia.</p><p>Nosso esforço, aqui, deve ser bem diferente. Os métodos cujo grau de certeza</p><p>buscaremos avaliar serão aqueles que a pesquisa realmente utiliza, até na humilde e</p><p>delicada minúcia de suas técnicas. Nossos problemas serão os problemas mesmos</p><p>impostos ao historiador, cotidianamente, por sua matéria.8 Em resumo, gostaríamos,</p><p>antes de tudo, de dizer como e por que um historiador pratica seu ofício. Ao leitor cabe</p><p>decidir, em seguida, se tal ofício merece ser exercido.</p><p>Prestemos, no entanto, atenção. É apenas aparentemente que, mesmo assim</p><p>compreendida e limitada, a tarefa pode passar por simples. Sê-lo-ia, talvez, se nos</p><p>encontrássemos em presença de uma dessas artes aplicadas sobre as quais já nos</p><p>detemos o suficiente ao enumerar, umas após as outras, suas manipulações longamente</p><p>experimentadas. Mas a história não é a relojoaria ou a marcenaria. É um esforço para o</p><p>conhecer melhor: por conseguinte, uma coisa em movimento. Limitar-se a descrever</p><p>uma ciência tal qual é feita será sempre traí-la um pouco. É mais importante dizer como</p><p>ela espera ser capaz de progressivamente ser feita. Ora, da parte do analista, semelhante</p><p>empreendimento exige forçosamente uma imensa dose de escolha pessoal. [Toda</p><p>ciência, com efeito, é, a cada uma de suas etapas, constantemente atravessada por</p><p>tendências divergentes, que não são possíveis de dirimir sem uma espécie de aposta</p><p>sobre o futuro.] Não se pretende aqui recuar diante dessa necessidade. Em matéria</p><p>intelectual, não mais que em qualquer outra, o horror das responsabilidades não é um</p><p>sentimento muito recomendável. Entretanto, ao menos seria honesto alertar o leitor.</p><p>Do mesmo modo, as dificuldades com as quais inevitavelmente se choca qualquer</p><p>estudo dos métodos variam muito segundo o ponto alcançado por cada</p><p>7 ]Albert Vandal talvez tenha se reconhecido; Pirenne a teria renegado.[</p><p>8 ]: considerando, naturalmente, que a aborde armado desse espírito de reflexão crítica,</p><p>sem o qual nunca há, verdadeiramente, problemas. É preciso ser dois para a obra da</p><p>ciência: um objeto e um homem.[</p><p>Introdução 47</p><p>disciplina na curva, sempre entrecortada, de seu desenvolvimento. Há cinquenta anos,</p><p>quando Newton reinava soberano, era, imagino, singularmente mais fácil que hoje</p><p>construir, com um rigor de épura, uma exposição sobre a mecânica. Mas a história ainda</p><p>se encontra numa fase bem mais desfavorável às certezas.</p><p>Pois a história não apenas é uma ciência em marcha. É também uma ciência na</p><p>infância: como todas aquelas que têm por objeto o espírito humano, esse temporão no</p><p>campo do conhecimento racional. Ou, para dizer melhor, velha sob a forma embrionária</p><p>da narrativa, de há muito apinhada de ficções, há mais tempo ainda colada aos</p><p>acontecimentos mais imediatamente apreensíveis, ela permanece, como empreendimento</p><p>racional de análise, jovem. Tem dificuldades para penetrar, enfim, no subterrâneo dos</p><p>fatos de superfície, para</p><p>rejeitar, depois das seduções da lenda ou da retórica, os venenos,</p><p>atualmente mais perigosos, da rotina erudita e dados em senso comum. Ela ainda não</p><p>ultrapassou, quanto a alguns dos problemas essenciais de seu método, os primeiros</p><p>passos. E eis por que Fustel de Coulanges e, já antes dele, Bayle provavelmente não</p><p>estavam totalmente errados ao dizê-la "a mais difícil de todas as ciências".9</p><p>[Porém, será uma ilusão? Por mais incerta que permaneça, em muitos pontos,</p><p>nosso caminho, estamos na hora presente, parece-me, mais bem situados do que nossos</p><p>predecessores imediatos para ver um pouco mais claro.</p><p>As gerações que vieram logo antes da nossa, nas últimas décadas do século XIX e</p><p>até os primeiros anos do XX, viveram como alucinadas por uma imagem muito rígida,</p><p>uma imagem verdadeiramente comtiana das ciências do mundo físico. Ao estender ao</p><p>conjunto das aquisições do espírito esse prestigioso esquema, parecia-lhes então não</p><p>existir conhecimento autêntico que não devesse desembocar em demonstrações</p><p>incontinenti irrefutáveis, em certezas formuladas sob o aspecto de leis imperiosamente</p><p>universais. Esta era uma opinião praticamente unânime. Mas, aplicada aos estudos</p><p>históricos, dará origem, segundo os temperamentos, a duas tendências opostas.</p><p>Alguns julgaram possível, com efeito, instituir uma ciência da evolução humana</p><p>que se conformasse a esse ideal de certo modo pancientífico e deram o melhor de si para</p><p>estabelecê-la: livres, a propósito, de se reginarem no sentido de finalmente deixar fora do</p><p>alcance desse conhecimento dos homens muita coisa de realidades bem humanas, mas</p><p>que lhes pareciam desesperadamente refratárias a um conhecimento racional. Esse</p><p>resíduo era o que eles chamavam, desdenhosa-</p><p>9 É provavelmente aqui que devia se inserir a seguinte nota de Marc Bloch: "Fustel de</p><p>Coulanges, citado por Paul Guiraud; Bayle, Dictionnaire, verbete 'Renaud': 'A história,</p><p>falando genericamente, é a mais difícil de todas as composições que um autor pode</p><p>empreender ou uma das mais difíceis'." (e, do punho de Marc Bloch, uma curta menção:</p><p>"a verificar").</p><p>48 Apologia da história</p><p>mente, de acontecimento; era também uma boa parte da vida mais intimamente</p><p>individual. Essa foi, em suma, a posição da escola sociológica fundada por Durkheim.</p><p>Ao menos se não ignorarmos concessões que, à primeira inflexibilidade dos princípios,</p><p>vimos pouco a pouco introduzidas por homens inteligentes demais para não sofrerem, a</p><p>não ser à revelia, a pressão das coisas. Nossos estudos devem muito a esse grande</p><p>esforço. Ele nos ensinou a analisar mais profundamente, a cerrar mais de perto os</p><p>problemas, a pensar, ousaria dizer, menos barato. Não falaremos dele senão com</p><p>reconhecimento e respeito infinitos. Se hoje parece ultrapassado, é, para todos os</p><p>movimentos intelectuais, cedo ou tarde, o resgate de sua fecundidade.</p><p>Entretanto, outros pesquisadores tomaram, no mesmo momento, atitude bem</p><p>diferente. Não conseguindo inserir a história nos quadros do legalismo físico,</p><p>particularmente preocupados, além disso, em razão de sua formação inicial, com as</p><p>dificuldades, as dúvidas, os frequentes recomeços da crítica documental, colheram nessas</p><p>constatações, antes de tudo, uma lição de humildade desiludida. A disciplina à qual</p><p>consagravam seus talentos não lhes pareceu, no fim das contas, capaz, nem no presente</p><p>nem no futuro, de muitas perspectivas de progresso. Inclinaram-se a ver nela, em lugar</p><p>de um conhecimento verdadeiramente científico, uma espécie de jogo estético ou,</p><p>melhor dizendo, de exercício de higiene benéfico à saúde do espírito. Foram</p><p>denominados, às vezes, "historiadores historizantes": apelido injurioso para nossa</p><p>corporação, uma vez que parece fazer a essência da história consistir na própria negação</p><p>de suas possibilidades. De minha parte, de bom grado acharia para eles, no momento do</p><p>pensamento francês ao qual se vinculam, um sinal de identificação mais expressivo.</p><p>O amável e fugidio Sylvestre Bonnard, se considerarmos as datas que o livro fixa</p><p>para sua atividade, é um anacronismo: assim como esses santos antigos que os escritores</p><p>da Idade Média descreviam, ingenuamente, sob as cores de sua própria época. Sylvestre</p><p>Bonnard (por menos que se queira imaginar, por um instante, uma existência carnal sob</p><p>essa sombra inventada), o verdadeiro Sylvestre Bonnard, nascido sob o Primeiro</p><p>Império, ainda teria pertencido à geração dos grandes historiadores românticos; ele teria</p><p>compartilhado seus entusiasmos comoventes e fecundos, a fé algo cândida no futuro da</p><p>"filosofia" da história. Ignoremos a época à qual supõe-se ter pertencido e dirijamo-nos</p><p>àquela que viu sua vida imaginária ser escrita; ele merece figurar como padroeiro, o santo</p><p>corporativo de todo um grupo de historiadores que foram praticamente os</p><p>contemporâneos intelectuais de seu biógrafo: trabalhadores profundamente honestos,</p><p>mas de fôlego um pouco curto e sobre os quais se pensaria às vezes que, semelhantes às</p><p>crianças cujos pais se divertiram demais, trazem em seus ossos a fadiga das grandes</p><p>orgias históricas do romantismo; dispostos a se fazerem bastante pequenos diante de</p><p>seus confrades do laboratório; em suma, mais inclinados a nos aconse-</p><p>Introdução 49</p><p>lhar a prudência do que o impulso. Seria excesso de malícia buscar sua divisa nessa frase</p><p>espantosa, que escapou um dia ao homem de inteligência tão viva que no entanto foi</p><p>meu caro professor Charles Seignobos: "É muito útil colocar-se questões, mas muito</p><p>perigoso respondê-las"? Esta não é, seguramente, a declaração de um fanfarrão. Mas se</p><p>os físicos não tivessem feito profissão de intrepidez, onde estaria a física?</p><p>Ora, nossa atmosfera mental não é mais a mesma. A teoria cinética dos gases, a</p><p>mecânica einsteiniana, a teoria dos quanta alteraram profundamente a noção que ainda</p><p>ontem qualquer um formava sobre a ciência. Não a diminuíram. Mas a flexibilizaram.</p><p>Com certeza, substituíram, em muitos pontos, o infinitamente provável, o rigorosamente</p><p>mensurável pela noção da eterna relatividade da medida. Sua ação foi sentida até mesmo</p><p>pelos inumeráveis espíritos — devo, infelizmente, colocar-me entre eles — aos quais as</p><p>fraquezas de sua inteligência ou de sua formação proíbem de seguir, se não de muito</p><p>longe e de certo modo por reflexo, essa grande metamorfose. Estamos portanto agora</p><p>bem melhor preparados para admitir que, mesmo sem se mostrar capaz de</p><p>demonstrações euclidianas ou de imutáveis leis de repetição, um conhecimento possa</p><p>contudo pretender ao nome de científico. Aceitamos muito mais facilmente fazer da</p><p>certeza e do universalismo uma questão de grau. Não sentimos mais a obrigação de</p><p>buscar impor a todos os objetos do conhecimento um modelo intelectual uniforme,</p><p>inspirado nas ciências da natureza física, uma vez que até nelas esse gabarito deixou de</p><p>ser integralmente aplicado. Não sabemos ainda muito bem o que um dia serão as</p><p>ciências do homem. Sabemos que para existirem — mesmo continuando,</p><p>evidentemente, a obedecer às regras fundamentais da razão —, não precisarão renunciar</p><p>à sua originalidade, nem ter vergonha dela.]</p><p>Apreciaria que, entre os historiadores de profissão, os jovens em particular se</p><p>habituassem a refletir sobre essas hesitações, esses perpétuos "arrependimentos" de</p><p>nosso ofício. Será para eles a maneira mais segura de se preparar, por uma escolha</p><p>deliberada, para orientar racionalmente seus esforços. Desejaria sobretudo vê-los</p><p>participar, em número cada vez maior, dessa história ao mesmo tempo ampliada e</p><p>aprofundada, da qual somos vários — em nosso caso, cada vez mais raros — a conceber</p><p>a proposta. Se meu livro puder ajudá-los, terei a sensação de que não foi [absolutamente]</p><p>inútil. Há nele, confesso, um lado de programa.</p><p>Mas não escrevo unicamente, nem tampouco sobretudo, para o uso interno da</p><p>oficina. Tampouco cogitei esconder, aos simples curiosos, as irresoluções de nossa</p><p>ciência. Elas são nossa desculpa. Melhor ainda: dão frescor a nossos estudos. Não</p><p>apenas temos o direito de reclamar,</p><p>em favor da história, a indulgência devida a todos os</p><p>começos. O inacabado, embora tenda a ser perpetuamente superado, tem, para todo</p><p>espírito um pouco ardoroso, uma sedução que equivale à do mais</p><p>50 Apologia da história</p><p>perfeito triunfo. O bom trabalhador, disse, ou disse quase isso, Péguy, ama o trabalho e a</p><p>semeadura assim como as colheitas10.</p><p>Convém que estas poucas palavras de introdução terminem com uma confissão</p><p>pessoal. Toda ciência, tomada isoladamente, não significa senão um fragmento do</p><p>universal movimento rumo ao conhecimento. [Já tive oportunidade, acima, de dar um</p><p>exemplo disso:] para melhor entender e apreciar seus procedimentos de investigação,</p><p>mesmo aparentemente os mais específicos, seria indispensável [saber] associá-los [, com</p><p>uma característica perfeitamente segura,] ao conjunto das tendências que se manifestam,</p><p>no mesmo momento, nas outras ordens de disciplina. Ora, esse estudo dos métodos em</p><p>si mesmos constitui, à sua maneira, uma especialidade, da qual os técnicos se nomeiam</p><p>filósofos. É um título ao qual não posso pretender. Em função dessa lacuna em minha</p><p>formação inicial, o ensaio aqui apresentado sem dúvida perde muito: em precisão de</p><p>linguagem como em amplitude de horizonte. Só posso apresentá-lo pelo que é: o</p><p>memento de um artesão que sempre gostou de meditar sobre sua tarefa cotidiana, a</p><p>caderneta de um colega que manejou por muito tempo a régua e o compasso, sem por</p><p>isso se julgar matemático11.</p><p>10 Aqui, na primeira redação, situa-se uma passagem deslocada com algumas</p><p>modificações para o capítulo I na redação definitiva.</p><p>l1 Nota de Marc Bloch: "Talvez não seja inútil acrescentar ainda uma palavra de</p><p>desculpas; as circunstâncias de minha vida atual, a impossibilidade em que me encontro</p><p>de ter acesso a uma grande biblioteca, a perda de meus próprios livros fazem com que</p><p>deva me fiar bastante em minhas notas e em minha memória. As leituras</p><p>complementares, as verificações exigidas pelas próprias leis do ofício cujas práticas me</p><p>proponho descrever permanecem para mim frequentemente inacessíveis. Será que um</p><p>dia poderei preencher essas lacunas? Nunca inteiramente, receio. Só posso, sobre isso,</p><p>solicitar a indulgência, diria 'assumir a culpa' se isso não fosse assumir, mais do que seria</p><p>legítimo, as culpas do destino."</p><p>Capítulo I</p><p>A história, os homens e o tempo</p><p>1. A escolha do historiador</p><p>A palavra história é uma palavra antiquíssima: [tão antiga que às vezes nos</p><p>cansamos dela. Raramente, é verdade, chegou-se a querer riscá-la completamente do</p><p>vocabulário.] Os próprios sociólogos da era durkheimiana lhe dão espaço. Mas é para</p><p>relegá-la a um singelo cantinho das ciências do homem: espécie de calabouço onde,</p><p>reservando à sociologia tudo que lhes parece suscetível de análise racional, despejam os</p><p>fatos humanos julgados ao mesmo tempo mais superficiais e mais fortuitos. Vamos</p><p>preservar-lhe aqui, ao contrário, sua significação mais ampla. [O que não proíbe,</p><p>antecipadamente, nenhuma orientação de pesquisa, deva ela voltar-se de preferência para</p><p>o indivíduo ou para a sociedade, para a descrição das crises momentâneas ou a busca dos</p><p>elementos mais duradouros; o que também não encerra em si mesmo nenhum credo;</p><p>não diz respeito, segundo sua etimologia primordial, senão à "pesquisa".] Seguramente,</p><p>desde que surgiu, já há mais de dois milênios, nos lábios dos homens, ela mudou muito</p><p>de conteúdo. É a sorte, na linguagem, de todos os termos verdadeiramente vivos. Se as</p><p>ciências tivessem, a cada uma de suas conquistas, que buscar por uma nova</p><p>denominação para elas, que batismos e que perdas de tempo no reino das academias!</p><p>Mesmo permanecendo pacificamente fiel a seu glorioso nome helênico, nossa história</p><p>não será absolutamente, por isso, aquela que escrevia Hecateu de Mileto; assim como a</p><p>física de lord Kelvin ou de Langevin não é a de Aristóteles.</p><p>[Qual é ela, então?</p><p>No começo deste livro, centrado em torno dos problemas reais da pesquisa, não</p><p>haveria interesse algum em fazer uma longa e rigorosa definição. Que trabalhador sério</p><p>já se embaraçou com semelhantes artigos de fé1?] A meticulosa precisão desses</p><p>problemas não apenas deixa escapar o melhor de qualquer impulso</p><p>1 ]Quanto ao fundo, cada um estará de acordo que, falando do trabalho do historiador,</p><p>não será inútil começar por fazer uma idéia algo precisa do objeto de seu trabalho. Mas</p><p>será preciso que esse reconhecimento do terreno desemboque necessariamente numa</p><p>definição em estilo de dicionário? [</p><p>51</p><p>52 Apologia da história</p><p>intelectual: vejam o que há nisso de simples veleidades de impulso rumo a um saber</p><p>ainda mal-determinado, de extensão potencial. O grande perigo deles está em não definir</p><p>tão cuidadosamente senão para melhor delimitar. "Este tema", diz o guardião dos deuses</p><p>palavras, "ou esta maneira de tratá-lo, eis provavelmente o que é capaz de seduzir. Mas</p><p>toma cuidado, ó efebo: isso não é a história." Somos então um jurado dos tempos</p><p>antigos para codificar as tarefas permitidas às pessoas do ofício e, provavelmente, uma</p><p>vez a lista fechada, reservar seu exercício a nossos mestres patenteados? Os físicos e os</p><p>químicos são mais esclarecidos, já que nenhum deles, que eu saiba, jamais foi visto</p><p>polemizando sobre os direitos respectivos da física, da química, da química física ou —</p><p>supondo que o termo exista — da física química.</p><p>Não deixa de ser menos verdade que, face à imensa e confusa realidade, o</p><p>historiador é necessariamente levado a nela recortar o ponto de aplicação particular de</p><p>suas ferramentas; em consequência, a nela fazer uma escolha que, muito claramente, não</p><p>é a mesma que a do biólogo, por exemplo; que será propriamente uma escolha de</p><p>historiador. Este é um autêntico problema de ação. Ele nos acompanhará ao longo de</p><p>todo o nosso estudo2.</p><p>2. A história e os homens</p><p>Diz-se algumas vezes: "A história é a ciência do passado." É [no meu modo de</p><p>ver] falar errado3.</p><p>[Pois, em primeiro lugar,] a própria idéia de que o passado, enquanto tal, possa ser</p><p>objeto de ciência é absurda. Como, sem uma decantação prévia, poderíamos fazer, de</p><p>fenômenos que não têm outra característica comum a não ser não terem sido</p><p>contemporâneos, matéria de um conhecimento racional? Será possível imaginar, em</p><p>contrapartida, uma ciência total do Universo, em seu estado presente?</p><p>Sem dúvida, nas origens da historiografia, os velhos analistas não se constrangiam</p><p>nem um pouco com tais escrúpulos. Narravam, desordenadamente, acontecimentos cujo</p><p>único elo era terem se produzido mais ou menos no mesmo momento: os eclipses, as</p><p>chuvas de granizo, a aparição de espantosos meteoros junto com batalhas, tratados,</p><p>mortes dos heróis e dos reis. Mas nessa primeira memória</p><p>2 Todo esse desenvolvimento, em uma forma bem diferente, figurava na primeira</p><p>redação ao final da Introdução. A passagem foi posteriormente reescrita e subsistem</p><p>atualmente duas folhas manuscritas, numeradas I-1 e I-2, que serviram para a datilografia</p><p>da redação definitiva.</p><p>3 ]e duplamente. Deixemos, por ora, o que tem de factível o cisma, que se pretende</p><p>decretar, entre o passado e o suposto presente. [</p><p>A história, os homens e o tempo 53</p><p>da humanidade, confusa como a percepção de um bebê, um esforço constante de análise</p><p>pouco a pouco operou a classificação necessária. É verdade, a linguagem, essencialmente</p><p>tradicionalista, conserva o nome de história para todo estudo de uma mudança na</p><p>duração. O hábito não traz perigo, pois não engana ninguém. Há, nesse sentido, uma</p><p>história do sistema solar, na medida em que os astros que o compõem nem sempre</p><p>foram como os vemos. Ela é da alçada da astronomia. Há uma história das erupções</p><p>vulcânicas que é, estou convencido disso, do mais vivo interesse para a física do globo.</p><p>Ela não pertence à história dos historiadores.</p><p>Ou, pelo menos, não lhe pertence na medida em que, talvez, suas observações,</p><p>por algum viés, se reuniriam às preocupações específicas da história que nos diz respeito.</p><p>Como estabelecer portanto,</p><p>na prática, a divisão das tarefas? Sem dúvida, para apreender</p><p>isso, um exemplo é melhor que muitos discursos.</p><p>No século X de nossa era, um golfo profundo, o Zwin, recortava a costa</p><p>flamenga. Depois foi tomado pela areia. A que seção do conhecimento levar o estudo</p><p>desse fenômeno? De imediato, todos designarão a geologia. Mecanismo de</p><p>aluvionamento, papel das correntes marinhas, mudanças, talvez, no nível dos oceanos:</p><p>não foi ela criada e posta no mundo para tratar de tudo isso? Certamente. Olhando de</p><p>perto, porém, as coisas não são de modo algum assim tão simples.</p><p>Tratar-se-ia, em primeiro lugar, de escrutar as origens da transformação? Eis o</p><p>nosso geólogo já obrigado a se colocar questões que não são mais, estritamente, de sua</p><p>alçada. Pois, sem dúvida, esse assoreamento foi, pelo menos, favorecido por construções</p><p>de diques, desvios de canais, secas: diversos atos do homem, resultado de necessidades</p><p>coletivas e que apenas uma certa estrutura social torna possíveis.</p><p>Na outra ponta da cadeia, novo problema: o das consequências. A pouca distância</p><p>do fundo do golfo, uma cidade se erguia. Era Bruges. Comunicava-se com ele por um</p><p>breve trajeto fluvial. Pelas águas do Zwin, ela recebia ou expedia a maior parte das</p><p>mercadorias que faziam dela, guardadas todas as proporções, a Londres ou a Nova York</p><p>de sua época. Vieram, cada dia mais sensíveis, os avanços da sedimentação. Bruges</p><p>tentou em vão, à medida que a superfície inundada recuava, empurrar ainda mais seus</p><p>portos avançados para a foz, e seus cais pouco a pouco adormeceram. Decerto essa não</p><p>foi absolutamente, longe disso, a causa única de seu declínio. Age a física alguma vez</p><p>sobre o social sem que sua ação seja preparada, ajudada ou permitida por outros fatores</p><p>que não venham do homem? Mas, no ritmo das ondas causais, esta causa está pelo</p><p>menos, não poderíamos duvidar disso, entre as mais eficazes.</p><p>Ora, a obra de uma sociedade que remodela, segundo suas necessidades, o solo</p><p>em que vive é, todos intuem isso, um fato eminentemente "histórico". Assim como as</p><p>vicissitudes de um poderoso núcleo de trocas. Através de um exemplo bem</p><p>característico da topografia do saber, eis portanto, de um lado, um ponto de</p><p>54 Apologia da história</p><p>sobreposição onde a aliança de duas disciplinas revela-se indispensável a qualquer</p><p>tentativa de explicação; de outro, um ponto de passagem onde, depois de constatar um</p><p>fenômeno e pôr seus efeitos na balança, este é, de certa maneira, definitivamente cedido</p><p>por uma disciplina à outra. O que se produziu que parecera apelar imperiosamente à</p><p>intervenção da história? Foi que o humano apareceu.</p><p>Há muito tempo, com efeito, nossos grandes precursores, Michelet, Fustel de</p><p>Coulanges, nos ensinaram a reconhecer: o objeto da história é, por natureza, o homem4.</p><p>Digamos melhor: os homens. Mais que o singular, favorável à abstração, o plural, que é</p><p>o modo gramatical da relatividade, convém a uma ciência da diversidade. Por trás dos</p><p>grandes vestígios sensíveis da paisagem, [os artefatos ou as máquinas,] por trás dos</p><p>escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas</p><p>daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar. Quem não</p><p>conseguir isso será apenas, no máximo, um serviçal da erudição. Já o bom historiador se</p><p>parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça.</p><p>Do caráter da história como conhecimento dos homens decorre sua posição</p><p>específica em relação ao problema da expressão. Será uma "ciência"? ou uma "arte"?</p><p>Sobre isso nossos bisavós, por volta de 1800, gostavam de dissertar gravemente. Mais</p><p>tarde, por volta dos anos 1890, banhados em uma atmosfera de positivismo um pouco</p><p>rudimentar, pôde-se ver especialistas do método indignarem-se com que, nos trabalhos</p><p>históricos, o público desse importância, para eles excessiva, ao que eles chamavam</p><p>"forma". [Arte contra ciência, forma contra fundo:] tantas polêmicas boas para devolver</p><p>ao saco de processos da escolástica. Não há menos beleza numa equação exata do que</p><p>numa frase correta. Mas cada ciência tem sua estética de linguagem, que lhe é própria.</p><p>Os fatos humanos são, por essência, fenômenos muito delicados, entre os quais muitos</p><p>escapam à medida matemática. Para bem traduzi-los, portanto para bem penetrá-los</p><p>(pois será que se compreende alguma vez perfeitamente o que não se sabe dizer?), uma</p><p>grande</p><p>4 Sem trair Marc Bloch, creio que podemos situar aqui a nota de rodapé por ele prevista:</p><p>"Fustel de Coulanges, aula inaugural de 1862, na Revue de Synthèse Historique, t.II,</p><p>1901, p.243; Michelet, aula da École Normale, 1829, citado por G. Monod, t.I, p.127:</p><p>'Ocupamo-nos ao mesmo tempo do estudo do homem individual, e isso será a filosofia,</p><p>e do estudo do homem social, e isso será a história.' Convém acrescentar que Fustel,</p><p>mais tarde, disse isso numa fórmula mais sintética e carregada, cujo desenvolvimento que</p><p>acabamos de ler não é senão, em suma, um comentário: 'A história não é a acumulação</p><p>dos acontecimentos, de qualquer natureza, que se tenham produzido no passado. Ela é a</p><p>ciência das sociedades humanas.' Mas isso talvez seja, veremos adiante, reduzir em</p><p>excesso, na história, a parte do indivíduo; o homem em sociedade e as sociedades não</p><p>são duas noções exatamente equivalentes."</p><p>A história, os homens e o tempo 55</p><p>fínesse de linguagem, [uma cor correta no tom verbal] são necessárias. Onde calcular é</p><p>impossível, impõe-se sugerir. Entre a expressão das realidades do mundo físico e a das</p><p>realidades do espírito humano, o contraste é, em suma, o mesmo que entre a tarefa do</p><p>operário fresador e a do luthier: ambos trabalham no milímetro; mas o fresador usa</p><p>instrumentos mecânicos de precisão; o luthier guia-se, antes de tudo, pela sensibilidade</p><p>do ouvido e dos dedos. Não seria bom nem que o fresador se contentasse com o</p><p>empirismo do luthier, nem que este pretendesse imitar o fresador. Será possível negar</p><p>que haja, como o tato das mãos, um das palavras?</p><p>[3. O tempo histórico</p><p>"Ciência dos homens", dissemos. É ainda vago demais. É preciso acrescentar:</p><p>"dos homens, no tempo". O historiador não apenas pensa "humano". A atmosfera em</p><p>que seu pensamento respira naturalmente é a categoria da duração. Decerto, dificilmente</p><p>imagina-se que uma ciência, qualquer que seja, possa abstrair do tempo. Entretanto, para</p><p>muitas dentre elas, que, por convenção, o desintegram em fragmentos artificialmente</p><p>homogêneos, ele representa apenas uma medida. Realidade concreta e viva, submetida à</p><p>irreversibilidade de seu impulso, o tempo da história, ao contrário, é o próprio plasma</p><p>em que se engastam os fenômenos e como o lugar de sua inteligibilidade. O número dos</p><p>segundos, anos ou séculos que um corpo radiaotivo exige para se transformar em outros</p><p>corpos é, para a atomística, um dado fundamental. Mas que esta ou aquela dessas</p><p>metamorfoses tenha ocorrido há mil anos, ontem ou hoje ou que deva se produzir</p><p>amanhã, sem dúvida tal consideração interessaria ao geólogo, porque a geologia é, à sua</p><p>maneira, uma disciplina histórica; ela deixa o físico frio como gelo. Nenhum historiador,</p><p>em contrapartida, se contentará em constatar que César levou oito anos para conquistar</p><p>a Gália e que foram necessários quinze anos a Lutero para que, do ortodoxo noviço de</p><p>Erfurt, saísse o reformador de Wittenberg. Importa-lhe muito mais atribuir à conquista</p><p>da Gália seu exato lugar cronológico nas vicissitudes das sociedades européias; e, sem</p><p>absolutamente negar o que uma crise espiritual como a de irmão Martinho continha de</p><p>eterno, só julgará ter prestado contas disso depois de ter fixado, com precisão, seu</p><p>momento na curva dos destinos tanto do homem que foi seu herói como da civilização</p><p>que teve como atmosfera.</p><p>Ora, esse tempo verdadeiro é, por natureza, um continuum. É também perpétua</p><p>mudança. Da antítese desses dois atributos provêm os grandes problemas da pesquisa</p><p>histórica. Acima de qualquer outro, aquele que questiona até a razão de ser de nossos</p><p>trabalhos. Sejam dois períodos sucessivos, recortados na sequência ininterrupta das eras.</p><p>Em que medida — o vínculo que estabelece entre eles o</p><p>56 Apologia da história</p><p>fluxo da duração prevalecendo ou não sobre a dessemelhança resultante dessa própria</p><p>duração — devemos considerar o conhecimento do mais antigo como necessário ou</p><p>supérfluo para a compreensão do mais recente?]</p><p>4. O ídolo das origens</p><p>[Nunca é mau começar por um mea culpa. Naturalmente cara a homens que</p><p>fazem do passado seu principal tema de estudos de pesquisa, a explicação do mais</p><p>próximo pelo mais distante dominou nossos estudos às vezes até à hipnose. Sob sua</p><p>forma mais característica, esse ídolo da tribo dos historiadores tem um nome: é a</p><p>obsessão das origens. No desenvolvimento do pensamento histórico, teve também seu</p><p>momento particular de favor.]</p><p>Foi Renan, acho, quem escreveu um dia (cito de memória; portanto, receio,</p><p>inexatamente): "Em todas as coisas humanas, as origens em primeiro lugar são dignas de</p><p>estudo." E Sainte-Beuve antes dele: "Espio e observo com5 curiosidade aquilo que</p><p>começa." A idéia é bem de sua época. A palavra origens também. Às "Origens do</p><p>cristianismo6" corresponderam, um pouco mais tarde, aquelas da França</p><p>contemporânea7. Sem contar os epígonos. Mas a palavra é preocupante, pois equívoca.</p><p>Significa simplesmente começo8? Isso seria quase claro. Com a ressalva,</p><p>entretanto, de que, para a maioria das realidades históricas, a própria noção desse ponto</p><p>inicial permanece singularmente fugaz9. Caso de definição, provavelmente. De uma</p><p>definição que [, infelizmente,] esquece-se muito facilmente de fornecer.</p><p>Será que, ao contrário, por origens entende-se as causas? Então não haveria mais</p><p>outras dificuldades a não ser aquelas que, constantemente e sem dúvida mais ainda nas</p><p>ciências do homem, são por natureza inerentes às investigações causais.</p><p>Mas entre os dois sentidos frequentemente se constitui uma contaminação tão</p><p>temível que não é em geral muito claramente sentida. Para o vocabulário</p><p>5 ]interesse e[</p><p>6 Lucien Febvre sublinhou.</p><p>7 Lucien Febvre substituiu "aquelas" por "origens", colocou entre aspas "origens da</p><p>França contemporânea" e sublinhou.</p><p>8 Lucien Febvre colocou "começo" entre aspas.</p><p>9 ]De onde fazer partir o cristianismo? Da atmosfera sentimental em que se elaboraram,</p><p>no mundo mediterrâneo ou iraniano, as religiões da salvação? De Jesus? De Paulo? Ou</p><p>das gerações que vieram se fixar nas linhas essenciais do dogma?[</p><p>A história, os homens e o tempo 57</p><p>corrente, as origens são um começo que explica. Pior ainda: que basta para explicar. Aí</p><p>mora a ambiguidade; aí mora o perigo.</p><p>Haveria outra pesquisa a fazer, das mais interessantes, sobre essa obsessão</p><p>embriogenia, tão marcada em toda uma família de grandes espíritos. Como não raro</p><p>acontece — nada sendo mais difícil do que estabelecer entre as diversas ordens de</p><p>conhecimento uma exata simultaneidade —, as ciências do homem, aqui, se atrasaram</p><p>em relação às ciências da natureza. Pois estas já se encontravam, por volta da metade do</p><p>século XIX, dominadas pelo evolucionismo biológico, que supõe ao contrário um</p><p>progressivo afastamento das formas ancestrais e explica isso, a cada etapa, pelas</p><p>condições de vida ou de ambiente próprios ao momento. Este gosto apaixonado pelas</p><p>origens, a filosofia francesa da história, de [Victor] Cousin a Renan, recebera, acima de</p><p>tudo, do romantismo alemão. Ora, em seus primeiros passos, este fora contemporâneo</p><p>de uma fisiologia bem anterior à nossa: a dos pré-reformistas que acreditavam encontrar,</p><p>ora no esperma, ora no ovo, um resumo da idade adulta. Acrescentem a glorificação do</p><p>primitivo. Ela havia sido familiar ao século XVIII francês. Porém, herdeiros desse tema,</p><p>os pensadores da Alemanha romântica, antes de o retransmitir a nossos historiadores</p><p>seus discípulos, o ornamentaram, por sua vez, com os prestígios de muitas seduções</p><p>ideológicas novas. Que palavra nossa conseguirá um dia expressar a força desse famoso</p><p>prefixo germânico Ur: Urmensch, Urdichtung? Tudo inclinava portanto essas gerações a</p><p>atribuir, nas coisas humanas, uma importância extrema aos fatos do início.</p><p>Um outro elemento, entretanto, de natureza bem diferente, também exerceu sua</p><p>ação. Na história religiosa, o estudo das origens assumiu espontaneamente um lugar</p><p>preponderante, porque parecia fornecer um critério para o próprio valor das religiões.</p><p>Designadamente10 da religião cristã. Bem sei: para alguns neocatólicos, entre os quais, de</p><p>resto, mais de um não absolutamente católico, a moda atual é zombar dessas</p><p>preocupações de exegeta. "Não compreendo sua emoção, declarava Barrès a um padre</p><p>que perdera a fé. As discussões de um punhado de eruditos em torno de algumas</p><p>palavras hebraicas, o que tem isso a ver com minha sensibilidade? Basta-me a 'atmosfera</p><p>das igrejas." E Maurras, por sua vez: "Que me importam evangelhos de quatro judeus</p><p>obscuros?" ("Obscuros" quer dizer, imagino, plebeus; pois, em Mateus, Marcos, Lucas e</p><p>João, parece difícil não reconhecer, pelo menos, uma certa notoriedade literária.) Esses</p><p>engraçadinhos ficam tentando nos convencer e nem Pascal nem Bossuet teriam</p><p>certamente falado assim. Sem dúvida pode-se conceber uma experiência religiosa que</p><p>nada deva à história. Ao puro deísta, basta uma iluminação interior para crer em Deus.</p><p>Não para crer no Deus</p><p>10 ]do valor[</p><p>58 Apologia da história</p><p>dos cristãos. Pois o cristianismo [Já mencionei isso,] é, por essência, uma religião</p><p>histórica: vejam bem, cujos dogmas primordiais se baseiam em acontecimentos. Releiam</p><p>seu Credo: "Creio em Jesus Cristo ... que foi crucificado sob Pôncio Pilatos... e</p><p>ressuscitou dentre os mortos no 3º dia." Também nesse caso os primórdios da fé são</p><p>seus fundamentos.</p><p>Ora, por um contágio sem dúvida inevitável, essas preocupações que, em uma</p><p>certa forma de análise religiosa, podiam ter sua razão de ser, estenderam-se a outros</p><p>campos de pesquisa, onde sua legitimidade era muito mais contestável. Aí também uma</p><p>história, centrada sobre os nascimentos, foi colocada a serviço da apreciação dos valores.</p><p>Ao escrutar as "origens" da França de sua época, o que propunha Taine senão denunciar</p><p>o erro de uma política oriunda, a seu ver, de uma falsa filosofia do homem? Quer se trate</p><p>das invasões germânicas ou da conquista normanda [da Inglaterra], o passado só foi</p><p>empregado tão ativamente para explicar o presente no desígnio do melhor justificar ou</p><p>condenar. De modo que em muitos casos o demônio das origens foi talvez apenas um</p><p>avatar desse outro satânico inimigo da verdadeira história: a mania do julgamento.</p><p>Voltemos todavia aos estudos cristãos. Uma coisa é, para a inquieta consciência</p><p>que busca uma regra para si, fixar sua atitude em relação à religião católica, tal como é</p><p>definida cotidianamente; outra coisa é, para o historiador, explicar o catolicismo do</p><p>presente como um fato de observação. Indispensável, é claro, a uma correta percepção</p><p>dos fenômenos religiosos atuais, o conhecimento de seus primórdios não basta para</p><p>explicá-los. A fim de simplificar o problema, chegamos a renunciar a nos perguntar até</p><p>que ponto, sob um nome que não mudou, a fé, em sua substância, permaneceu</p><p>realmente imutável. Por mais intacta que suponhamos uma tradição, faltará sempre</p><p>apresentar as razões de sua manutenção. Razões humanas, é claro; a hipótese de uma</p><p>ação providencial escaparia à ciência. A questão, em suma, não é mais saber se Jesus foi</p><p>crucificado, depois ressuscitado. O que agora se trata de compreender é como é possível</p><p>que tantos homens ao nosso redor creiam na Crucificação e na Ressurreição. Ora, a</p><p>fidelidade a uma crença é apenas, com toda evidência, um dos aspectos da vida geral do</p><p>grupo no qual essa característica se manifesta. Ela se situa no nó onde se misturam um</p><p>punhado de traços convergentes, seja de estrutura social, seja de mentalidade. Ela coloca,</p><p>em suma, todo um problema de clima humano. O carvalho nasce da glande. Mas</p><p>carvalho se torna e permanece</p><p>apenas ao encontrar condições de ambiente favoráveis, as</p><p>quais não resultam da embriologia.</p><p>A história religiosa foi citada aqui apenas a título de exemplo. A qualquer atividade</p><p>humana que seu estudo se associe, o mesmo erro sempre espreita o intérprete: confundir</p><p>uma filiação com uma explicação.</p><p>Essa já era, em suma, a ilusão dos antigos etimologistas que pensavam ter dito</p><p>tudo quando, sob o olhar do sentido atual, apresentavam o mais antigo sentido</p><p>A história, os homens e o tempo 59</p><p>conhecido; quando haviam provado, imagino, que "bureau" designou, primitivamente,</p><p>um pano ou "timbre" um tambor. Como se não fosse mais necessário explicar esse</p><p>deslizamento. Como se, sobretudo, o papel de uma palavra, na língua, não fosse, assim</p><p>como seu próprio passado, comandado pelo estado contemporâneo do vocabulário:</p><p>reflexo, por sua vez, do estado social do momento. "Bureaux", em "bureaux do</p><p>ministério" supõe uma burocracia. Quando peço "timbres"* no guichê do correio, o</p><p>emprego que assim faço do termo exigiu, para se estabelecer, junto com a organização</p><p>lentamente elaborada de um serviço postal, a transformação técnica, que, para grande</p><p>benefício das trocas entre pensamentos, substituiu a impressão de um lacre pela aposição</p><p>de uma etiqueta gomada. Ele tornou-se possível apenas porque, especializadas por</p><p>ofícios, as diferentes acepções da velha palavra se distanciaram demais hoje em dia uma</p><p>da outra para deixar subsistir o menor risco de confusão entre o timbre de minha carta e</p><p>aquele, por exemplo, de cuja pureza o luthier se gaba em seus instrumentos.</p><p>"Origens do regime feudal" diz-se. Onde buscá-las? Alguns responderam "em</p><p>Roma". Outros "na Germânia". As razões dessas miragens são evidentes. Aqui e ali,</p><p>certos costumes com efeito existiam — relações de clientela, companheirismo guerreiro,</p><p>papel da tenure** como salário dos serviços — a que as gerações posteriores,</p><p>contemporâneas, na Europa, das épocas ditas feudais, deviam dar sequência. Não, aliás,</p><p>sem modificá-los muito. Das duas partes, sobretudo, eram empregadas palavras — tais</p><p>como "benefício" (beneficium) para os latinos, "feudo" para os germanos — das quais</p><p>essas gerações persistirão em se servir, ainda que lhes conferindo, sem se dar conta, um</p><p>conteúdo quase inteiramente novo. Pois, para grande desespero dos historiadores, os</p><p>homens não têm o hábito, a cada vez que mudam de costumes, de mudar de</p><p>vocabulário. Estas são, certamente, constatações interessantíssimas. Podemos crer que</p><p>esgotam o problema das causas? O feudalismo europeu, em suas instituições</p><p>características, não foi um arcaico tecido de sobrevivências. Durante certa fase de nosso</p><p>passado, ele nasceu de todo um clima social.</p><p>O sr. Seignobos disse em algum lugar: "Creio que as idéias revolucionárias do</p><p>século XVIII... provêm das idéias inglesas do XVII." Queria ele dizer com isso que,</p><p>tendo lido certos escritos ingleses do século precedente ou sofrido indiretamente sua</p><p>influência, os publicistas franceses da idade das Luzes adotaram seus princípios</p><p>políticos? Podemos lhe dar razão. Supondo ao menos que nossos filósofos, por sua vez,</p><p>nada tenham despejado de original nas fórmulas estrangeiras como</p><p>* "Selo" em francês. (N.T.)</p><p>** Tenure: terra cedida como pagamento de serviços, porém apenas para uso. O</p><p>concedente</p><p>retinha os direitos de propriedade. (N.T.)</p><p>60 Apologia da história</p><p>substância intelectual ou como tonalidade de sentimento. Mas, mesmo assim reduzida,</p><p>não sem muita arbitrariedade, a um empréstimo, a história desse movimento de</p><p>pensamento está longe de ser11 esclarecida. Pois sempre restará o problema de saber por</p><p>que a transmissão se operou na data indicada: nem mais cedo, nem mais tarde. Um</p><p>contágio supõe duas coisas: gerações de micróbios e, no momento em que a doença se</p><p>instala, um "terreno".</p><p>Em suma, nunca se explica plenamente um fenómeno histórico fora do estudo de</p><p>seu momento. Isso é verdade para todas as etapas da evolução. Tanto daquela em que</p><p>vivemos como das outras12. O provérbio árabe disse antes de nós: "Os homens se</p><p>parecem mais com sua época do que com seus pais." Por não ter meditado essa</p><p>sabedoria oriental, o estudo do passado às vezes caiu em descrédito.</p><p>5. Passado e presente</p><p>[Nos antípodas dos exploradores de origens, situam-se os devotos do imediato.</p><p>Montesquieu, em uma de suas obras de juventude, fala dessa "cadeia infinita das causas</p><p>que se multiplicam e combinam de século em século". A crer em certos escritores, a</p><p>cadeia, em sua extremidade mais próxima de nós, estaria aparentemente bem tênue. Pois</p><p>eles concebem o conhecimento do que chamam presente como quase absolutamente</p><p>desligado do passado. A idéia espalhou-se demais para não merecer que busquemos</p><p>dissecar seus elementos.]</p><p>[Convém, primeiramente, observar:] tomada ao pé da letra, ela seria,</p><p>propriamente, impensável13. O que é, com efeito, o presente? No infinito da duração, um</p><p>ponto minúsculo e que foge incessantemente; um instante que mal nasce morre. Mal</p><p>falei, mal agi e minhas palavras e meus atos naufragam no reino de Memória. São</p><p>palavras, ao mesmo tempo banais e profundas, do jovem Goethe: não existe presente,</p><p>apenas um devir, nichts gegenwãrtig, alles vorübergehend. Condenada a uma eterna</p><p>transfiguração, uma pretensa ciência do presente se metamorfosearia, a cada momento</p><p>de seu ser, em ciência do passado.</p><p>Já sei: será denunciada14 como sofismo. Na linguagem corrente, "presente" quer</p><p>dizer passado recente. Aceitemos [portanto] de agora em diante, sem hesitação, esse</p><p>emprego um pouco frouxo da palavra. Não que isso não levante, por sua</p><p>11 ]completamente[</p><p>12 Lucien Febvre, creio (a rasura não me parece da mão de meu pai), riscou essas duas</p><p>últimas frases, que figuram no entanto na edição precedente.</p><p>13 Este §, assim como os dois seguintes e uma parte do terceiro (até: "ardentes contatos")</p><p>foram deslocados. A passagem originalmente encontrava-se no 2º § do capítulo I.</p><p>14 ]aqui[</p><p>A história, os homens e o tempo 61</p><p>vez, sérias dificuldades. À noção de proximidade não apenas falta precisão — de quantos</p><p>anos se trata? — como ela também nos coloca em presença do mais efêmero dos</p><p>atributos. Embora o momento atual, no sentido estrito do termo, não seja senão uma</p><p>perpétua evanescência, a fronteira entre o presente e o passado não se desloca por isso</p><p>num movimento menos constante. O regime da moeda estável e do padrão-ouro, que,</p><p>ontem, figurava em todos os manuais de economia política, como a própria norma da</p><p>atualidade, ainda será presente para o economista de hoje? Ou é a história, que já cheira</p><p>um pouco a mofo? Por trás desses paralogismos, no entanto, é fácil descobrir um leque</p><p>de idéias menos inconsistentes, cuja simplicidade, pelo menos aparentemente, seduziu</p><p>certos espíritos.</p><p>Acredita-se poder colocar à parte uma fase de pouca extensão no vasto</p><p>escoamento do tempo. Relativamente pouco distante para nós, em seu ponto de partida,</p><p>ela abarca, em seu desfecho, os próprios dias em que vivemos. Nela, nada, nem as</p><p>características mais marcantes do estado social ou político, nem o aparato material, nem</p><p>a tonalidade genérica da civilização, nela nada apresenta, ao que parece, diferenças</p><p>profundas com o mundo onde temos nossos hábitos. Ela parece, em suma, afetada, em</p><p>relação a nós, por um coeficiente muito forte de "contemporaneidade". Daí a honra ou a</p><p>tara de não ser confundida com o restante do passado. "A partir de 1830, já não é mais</p><p>história", dizia-nos um de nossos professores de liceu, que era [muito] velho quando eu</p><p>era muito jovem: "é política". Não diríamos mais hoje "a partir de 1830" — as Três</p><p>Gloriosas, por sua vez, envelheceram — nem "é política". Antes, num tom respeitoso:</p><p>"é sociologia"; ou, com menos consideração, "jornalismo". Muitos porém repetiriam de</p><p>bom grado: a partir de 1914 ou 1940, não é mais história. Sem, aliás, entenderem-se</p><p>muito bem sobre os motivos desse ostracismo15.</p><p>Alguns16, estimando que os fatos mais próximos a nós são, por isso</p><p>mesmo,</p><p>rebeldes a qualquer estudo verdadeiramente sereno, desejavam simplesmente poupar à</p><p>casta Clio contatos demasiado ardentes17. [Assim pensava, imagino, meu velho professor.</p><p>Isso é, certamente, atribuir-nos um fraco domínio dos nervos. É também esquecer que, a</p><p>partir do momento em que entram em jogo as ressonâncias sentimentais, o limite entre o</p><p>atual e o inatual está longe de se ajustar necessariamente pela média matemática de um</p><p>intervalo de tempo.] Estava tão errado meu bravo diretor do liceu languedociano onde</p><p>empunhei minhas primeiras armas18, que advertia-me, com sua voz grossa de capitão de</p><p>ensino: "Aqui, o século</p><p>15 Na primeira versão, a quebra do § encontrava-se antes dessa frase, que no início do §</p><p>seguinte começava por: "Sem, aliás, concordarem muito bem".</p><p>16 ]— entre os quais se teria colocado evidentemente meu velho professor —[</p><p>17 O início desse § assim como os dois precedentes, na primeira versão, situavam-se na</p><p>segunda divisão do capítulo I.</p><p>18 ]de professor[</p><p>62 Apologia da história</p><p>XIX, não é muito perigoso19; quando chegares nas guerras de Religião, sê prudente." Na</p><p>verdade, quem, uma vez diante de sua mesa de trabalho, não tiver a força de poupar seu</p><p>cérebro do vírus do momento será bem capaz de destilar suas toxinas até num</p><p>comentário sobre a Ilíada ou o Ramayana.</p><p>Outros cientistas, ao contrário, acham com razão o presente humano</p><p>perfeitamente suscetível de conhecimento científico. Mas é para reservar seu estudo a</p><p>disciplinas bem distintas daquela que tem o passado como objeto. Eles analisam: por</p><p>exemplo, pretendem compreender a economia contemporânea com a ajuda de</p><p>observações limitadas, no tempo, a algumas décadas. Em suma, consideram a época em</p><p>que vivem como separada das que a precederam por contrastes vivos demais para trazer</p><p>em si mesma sua própria explicação. Esta é também a atitude instintiva de muitos</p><p>curiosos simplistas. A história dos períodos um pouco distantes só os seduz como um</p><p>inofensivo luxo do espírito. De um lado, um punhado de antiquários, ocupados, por</p><p>macabra dileção, em desenfaixar os deuses mortos; do outro, sociólogos, economistas,</p><p>publicistas — os únicos exploradores do vivo...</p><p>O curioso é que a idéia desse cisma surgiu bem recentemente20. Os velhos</p><p>historiadores gregos, um Heródoto, um Tucídides, mais próximos de nós, os verdadeiros</p><p>mestres de nossos estudos, os ancestrais cujas imagens merecerão eternamente figurar na</p><p>cella da corporação, jamais imaginaram que, para explicar a tarde, bastasse conhecer, no</p><p>máximo, a manhã21. "Aquele que quiser se circunscrever ao presente, ao atual, não</p><p>compreenderá o atual", escrevia22 Michelet, no início desse belo livro sobre O povo,</p><p>ainda que sentindo os frêmitos, contudo, das febres do século. E Leibniz já colocava,</p><p>entre os benefícios que esperava da história, "as origens das coisas presentes encontradas</p><p>nas coisas passadas"; pois, acrescentava, "uma realidade nunca é compreendida melhor</p><p>do que por suas causas".</p><p>Mas desde Leibniz, desde Michelet, um grande fato se produziu: as revoluções</p><p>sucessivas das técnicas ampliaram desmedidamente o intervalo psicológico entre as</p><p>gerações. Não sem [alguma] razão, talvez o homem da era da eletricidade e do avião se</p><p>sinta bem longe de seus ancestrais. De bom grado ele conclui disso, mais</p><p>imprudentemente, que deixou de por eles ser determinado. Acrescentem o estilo</p><p>modernista inato a qualquer mentalidade de engenheiro. Para fazer funcionar ou reparar</p><p>um dínamo, será necessário ter dominado as idéias do velho Volta sobre o galvanismo?</p><p>Por uma analogia, sem dúvida capenga mas que se impõe esponta-</p><p>19 ]mas[</p><p>20 As duas primeiras frases desse §, sob uma forma bem diferente, encontravam-se, na</p><p>primeira redação, antes da passagem sobre a natureza do presente.</p><p>21 Lucien Febvre preferiu, a essa frase, a da primeira redação: "No entanto, para não</p><p>explicar ... se colocar."</p><p>22 ], no século passado,[</p><p>A história, os homens e o tempo 63</p><p>neamente a mais de uma inteligência submetida à máquina, vão pensar do mesmo modo</p><p>que, para compreender os grandes problemas humanos do momento e tentar resolvê-</p><p>los, de nada serve ter analisado seus antecedentes. Tragados eles também, sem muito se</p><p>dar conta, por essa atmosfera mecanicista, certos historiadores fazem coro: "Como</p><p>explicação do presente, a história se reduziria quase ao estudo do período</p><p>contemporâneo." Assim não temiam escrever, em 1899, dois dentre eles.</p><p>[Olhando de perto,] o privilégio de auto-inteligibilidade assim reconhecido no</p><p>presente apóia-se numa série de estranhos postulados.</p><p>Supõe em primeiro lugar que as condições humanas sofreram, no intervalo de</p><p>uma ou duas gerações, uma mudança não apenas muito rápida, mas também total: de</p><p>modo que nenhuma instituição um pouco antiga, nenhuma maneira de se conduzir</p><p>tradicional, teria escapado às revoluções do laboratório ou da fábrica. Isso é esquecer a</p><p>força da inércia própria a tantas criações sociais. O homem passa seu tempo a montar</p><p>mecanismos dos quais permanece em seguida prisioneiro mais ou menos voluntário.</p><p>Que observador percorrendo nossos campos do Norte não ficou admirado com o</p><p>estranho desenho das paisagens? A despeito das atenuações que as vicissitudes da</p><p>propriedade, ao longo das épocas, trouxeram ao esquema primitivo, o espetáculo dessas</p><p>faixas que, exageradamente estreitas e compridas, cortam o solo arável em um número</p><p>prodigioso de frações conserva ainda hoje com o que confundir o agrônomo. O</p><p>desperdício de esforços que acarreta semelhante disposição e os incômodos que impõe</p><p>aos exploradores não são nada contestáveis. Como explicá-lo? Pelo Código Civil e seus</p><p>inevitáveis efeitos, responderam publicistas apressados demais. Modifiquem então,</p><p>acrescentavam, nossas leis sobre a herança e suprimirão todo o mal. Se conhecessem</p><p>melhor a história, se tivessem também melhor interrogado uma mentalidade camponesa</p><p>formada por séculos de empirismo, teriam julgado o remédio menos fácil. De fato, essa</p><p>armadura remonta a origens tão recuadas que nem um cientista, até aqui, conseguiu</p><p>relatar isso satisfatoriamente;23 os decifradores da era dos dólmens provavelmente têm</p><p>mais responsabilidade quanto a isso do que os legistas do Primeiro Império24. Ao se</p><p>prolongar aqui o erro sobre a causa, como acontece quase necessariamente na ausência</p><p>de terapêutica, a ignorância do passado não se limita a prejudicar a compreensão do</p><p>presente; compromete, no presente, a própria ação.</p><p>Tem mais. Para que uma sociedade, qualquer que fosse, pudesse ser inteiramente</p><p>determinada pelo momento logo anterior àquele que vive, não lhe bastaria</p><p>23 ]e[</p><p>24 ]Ela não deixa de continuar a comandar a via de muitas de nossas comunidades rurais.</p><p>[</p><p>64 Apologia da história</p><p>uma estrutura tão perfeitamente adaptável à mudança que ficaria efetivamente desossada.</p><p>Seria preciso ainda que as trocas entre as gerações operassem apenas, se ouso dizer, em</p><p>fila indiana, as crianças só tendo contatos com seus ancestrais por intermédio dos pais25.</p><p>Ora, isso não é verdade, inclusive em relação a comunicações puramente orais26.</p><p>[Vejam, por exemplo, nossas aldeias. ] Pelo fato de as condições do trabalho manterem</p><p>ali, praticamente o dia inteiro, o pai e a mãe afastados dos filhos pequenos, estes são</p><p>educados sobretudo pelos avós. A cada nova formação do espírito, portanto, dá-se um</p><p>passo atrás que, por cima da geração [eminentemente] portadora de mudanças, liga os</p><p>cérebros mais maleáveis aos mais cristalizados. [Daí, acima de tudo, não duvidemos</p><p>disso, o tradicionalismo inerente a tantas sociedades camponesas. O caso é</p><p>particularmente claro. E não é único. Exercendo-se o antagonismo natural aos grupos de</p><p>idade, principalmente, entre grupos limítrofes, mais de uma juventude deveu às aulas dos</p><p>anciãos pelo menos tanto quanto àquela dos homens maduros.]</p><p>Com mais forte razão, o escrito facilita imensamente [, entre gerações às vezes</p><p>muito afastadas,] essas transferências de pensamento que fazem, propriamente,</p><p>a</p><p>continuidade de uma civilização. Lutero, Calvino, Loyola: homens de outrora, sem</p><p>dúvida, homens do século XVI, os quais o historiador, ocupado em compreender e fazer</p><p>compreender, terá como primeiro dever recolocar em seu meio, banhados pela</p><p>atmosfera mental de seu tempo, face a problemas de consciência que já não são</p><p>exatamente os nossos. Ousar-se-á entretanto dizer que para correta compreensão do</p><p>mundo atual a compreensão da Reforma protestante ou da Reforma católica, afastadas</p><p>de nós por um intervalo várias vezes centenário, não tem mais importância [do que</p><p>muitos outros movimentos de idéia ou de sensibilidade, mais próximos, seguramente, no</p><p>tempo, porém mais efêmeros?]</p><p>O erro, em suma, é claro e, sem dúvida, para destruí-lo, basta formulá-lo.</p><p>Representa-se a corrente da evolução humana como formada por uma série de breves e</p><p>profundos sobressaltos, dos quais cada um não duraria senão o espaço de algumas vidas.</p><p>A observação prova, ao contrário, que nesse imenso continuum os grandes abalos são</p><p>perfeitamente capazes de propagar desde as moléculas mais longínquas até as mais</p><p>próximas27. O que diríamos de um físico que, contentando-se em enumerar os</p><p>miriâmetros, estimasse a ação da Lua sobre nosso globo</p><p>25 Todo esse § foi reescrito.</p><p>26 ] Observei em outro lugar; a principal razão do espírito tradicionalista inato a quase</p><p>todas as sociedades rurais é sem dúvida que as condições de trabalho...[</p><p>27 ]: que por conseguinte, para retomar a expressão de Michelet, o "atual" não é jamais</p><p>completamente explicável senão pelo remoto; negá-lo equivaleria a cair num erro</p><p>análogo ao do físico. [</p><p>A história, os homens e o tempo 65</p><p>bem mais considerável do que a do Sol? [Não mais na duração do que no céu, a eficácia</p><p>de uma força não se mede exatamente por sua distância.]</p><p>Entre as coisas passadas, enfim, aquelas mesmas — crenças desaparecidas sem</p><p>deixar o menor traço, formas sociais abortadas, técnicas mortas — que, parece, deixaram</p><p>de comandar o presente, vamos considerá-las, por esse motivo, inúteis à sua</p><p>compreensão? Seria esquecer que não existe conhecimento verdadeiro sem uma certa</p><p>escala de comparação. Sob a condição, é verdade, de que a aproximação diga respeito a</p><p>realidades ao mesmo tempo diversas e não obstante aparentadas. Não se negará</p><p>absolutamente que não seja este o caso aqui. Decerto não estimamos mais hoje em dia</p><p>que, como escrevia Maquiavel, como pensavam Hume ou Bonald, haja no tempo "pelo</p><p>menos algo de imutável: é o homem". Aprendemos que o homem também mudou</p><p>muito: em seu espírito e, sem dúvida, até nos mais delicados mecanismos de seu corpo.</p><p>Como poderia ser de outro modo? Sua alimentação, não menos. É preciso, claro, no</p><p>entanto, que exista, na natureza humana e nas sociedades humanas, um fundo</p><p>permanente, sem o que os próprios nomes de homem e de sociedade nada iriam querer</p><p>dizer. Portanto, acreditamos compreender estes homens estudando-os apenas em suas</p><p>reações diante das circunstâncias particulares de um momento? Mesmo para o que eles</p><p>são nesse momento, a experiência será insuficiente. Muitas virtualidades provisoriamente</p><p>pouco aparentes, mas que, a cada instante, podem despertar, muitos motores, mais ou</p><p>menos inconscientes, das atitudes individuais ou coletivas permanecerão na sombra.</p><p>Uma experiência única é sempre impotente para discriminar seus próprios fatores: por</p><p>conseguinte, para fornecer sua própria interpretação28.</p><p>[Do mesmo modo, essa solidariedade das épocas tem tanta força que entre elas os</p><p>vínculos de inteligibilidade são verdadeiramente de sentido duplo. A incompreensão do</p><p>presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão</p><p>esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente.] Já contei em outro</p><p>lugar o episódio: eu estava acompanhando, em Estocolmo, Henri Pirenne. Mal</p><p>chegamos, ele me diz: "O que vamos ver primeiro? Parece que há uma prefeitura nova</p><p>em folha. Comecemos por ela." Depois, como se quisesse prevenir um espanto,</p><p>acrescentou: "Se eu fosse antiquário, só teria olhos para as coisas velhas.29 Mas sou um</p><p>historiador. Ê por isso que amo a vida." Essa faculdade</p><p>28 Pode-se considerar que esse novo § substitui uma passagem bem mais curta da</p><p>primeira redação: "O presente e o passado se interpenetram. A tal ponto que seus elos,</p><p>quanto à prática do ofício de historiador, são de sentido duplo. Se, para quem quer</p><p>compreender mesmo o presente, a ignorância do passado deve ser funesta, a recíproca</p><p>— embora não nitidamente alertado — não é menos verdadeira."</p><p>29 ]Mas não sou um antiquário.[</p><p>66 Apologia da história</p><p>de apreensão do que é vivo, eis justamente, com efeito, a qualidade mestra do</p><p>historiador. Não nos deixemos enganar por certa frieza de estilo30, os maiores entre nós</p><p>a possuíram todos:31 Fustel ou Maitland à sua maneira, que era mais austero, não menos</p><p>que Michelet. E talvez ela seja, em seu princípio, um dom das fadas, que ninguém pode</p><p>pretender adquirir, se não o trouxe do berço. Nem por isso ela deixa de precisar ser</p><p>constantemente exercitada e desenvolvida. Como, senão, assim como o próprio Pirenne,</p><p>por um contato perpétuo com o hoje?</p><p>Pois o frêmito da vida humana, que exige um duríssimo esforço de imaginação</p><p>para ser restituído aos velhos textos, é [aqui] diretamente perceptível a nossos sentidos32.</p><p>Li muitas vezes, narrei frequentemente, relatos de guerras e de batalhas. Conhecia eu</p><p>verdadeiramente, no sentido pleno do verbo conhecer, conhecia por dentro, antes de ter</p><p>eu mesmo experimentado a atroz náusea, o que são, para um exército, o cerco, para um</p><p>povo, a derrota? Antes de ter eu mesmo, durante o verão e o outono de 1918, respirado</p><p>a alegria da vitória — na expectativa, e decerto espero, de com ela encher uma segunda</p><p>vez meus pulmões, mas o perfume, ai de mim, não será mais completamente o mesmo</p><p>—, sabia eu verdadeiramente o que encerra essa bela palavra? Na verdade,</p><p>conscientemente ou não, é sempre a nossas experiências cotidianas que, para nuançá-las</p><p>onde se deve, atribuímos matizes novos, em última análise os elementos, que nos servem</p><p>para reconstituir33 o passado: os próprios nomes que usamos a fim de caracterizar os</p><p>estados de alma desaparecidos, as formas sociais evanescidas, que sentido teriam para</p><p>nós se não houvéssemos antes visto homens viverem? Vale mais [cem vezes] substituir</p><p>essa impregnação instintiva por uma observação voluntária e controlada. Um grande</p><p>matemático não será menos grande, suponho, por haver atravessado de olhos fechados</p><p>o mundo onde vive. Mas o erudito que não tem o gosto de olhar a seu redor nem os</p><p>homens, nem as coisas, nem os acontecimentos, [ele] merecerá talvez, como dizia</p><p>Pirenne, o título de um útil antiquário. E agirá sensatamente renunciando ao de</p><p>historiador.</p><p>Além de tudo, a educação da sensibilidade histórica nem sempre está sozinha em</p><p>questão. Ocorre de, em uma linha34 dada, o conhecimento do presente ser diretamente</p><p>ainda mais importante para a compreensão do passado.</p><p>Com efeito, seria um erro grave acreditar que a ordem adotada pelos historiadores</p><p>em suas investigações deva necessariamente modelar-se por aquela dos acontecimentos.</p><p>Livres para em seguida restituir à história seu movimento verda-</p><p>30 ]verdadeiro[</p><p>31 ]sob formas diversas[</p><p>32 ]e nosso espírito [</p><p>33 ], e imaginar[</p><p>34 ]de estudos[</p><p>A história, os homens e o tempo 67</p><p>deiro, eles frequentemente têm proveito em começar por lê-la, como dizia Maitland, "às</p><p>avessas"35. Pois a démarche natural de qualquer pesquisa é ir do mais ou do menos mal</p><p>conhecido ao mais obscuro36. Sem dúvida, falta, e muito, para que a luz dos documentos</p><p>se faça regularmente mais viva à medida que percorremos o fio das eras. Somos</p><p>incomparavelmente menos informados sobre o século X de nossa era, por exemplo, do</p><p>que sobre a época de César ou de Augusto. Na maioria dos casos, os períodos mais</p><p>próximos não coincidem menos nesse aspecto com as zonas de clareza relativa.</p><p>Acrescentem que, ao proceder, mecanicamente,</p><p>Bloch reconheceu a importância da</p><p>interdisciplinaridade e de revestir a prática da história de questões de fôlego mais amplo</p><p>e afeitas a durações mais longas.</p><p>Atento aos problemas de seu próprio mundo, Bloch optou, porém, pela história</p><p>medieval e especializou-se na Île de France, sobre a qual publicou, em 1913, seu</p><p>primeiro estudo. Já nesse momento, a noção de "problema" surgia expressa, quando</p><p>Bloch questionava o conceito de região e alegava que este variava em função da questão</p><p>que se tinha em mente.</p><p>Mas foi, definitivamente, na atmosfera da faculdade de letras da Universidade de</p><p>Estrasburgo — onde foi nomeado chargé de cours e maître de conférences, em</p><p>dezembro de 1919, e professeur em 1921 — que Bloch conheceu um verdadeiro</p><p>ambiente intelectual. Nos anos após a I Guerra Mundial, Estrasburgo, recém-desa-</p><p>nexada da Alemanha, representava um ambiente renovado e aberto ao intercâmbio entre</p><p>disciplinas e idéias. Assim que a guerra termina a cidade se converte em uma espécie de</p><p>vitrine intelectual francesa diante do mundo germânico, e nosso historiador tira bom</p><p>proveito da situação.</p><p>Apresentação à edição brasileira 9</p><p>Bloch, após ter lutado na Grande Guerra, retorna dela em 15 de novembro de</p><p>1914, ferido e doente o suficiente para ser colocado na retaguarda. No entanto, no</p><p>período de repouso aproveita para dar forma escrita às suas memórias e esboça uma</p><p>série de temas que seriam retomados, e transformados em livro só em 1940, quando</p><p>publica L'Étrange défaite (A estranha derrota). Nesse contexto, porém, e amparado pela</p><p>experiência de tantos colegas provenientes de outras áreas e disciplinas, Bloch usa a</p><p>vivência do front para pensar em temas da psicologia coletiva, ou melhor em uma</p><p>história da psicologia coletiva.</p><p>É nesse contexto intelectual, também, que conhece uma série de colegas, cujas</p><p>obras serão decisivas em sua carreira. O especialista em Antiguidade romana André</p><p>Piganiol, o medievalista Charles-Edmond Perrin, o sociólogo Gabriel Le Bras, o</p><p>geógrafo Henri Baulig, o médico e psicólogo Charles Blondel e o sociólogo Maurice</p><p>Halbwachs, cujo estudo sobre a estrutura da memória social teve grande impacto no</p><p>pensamento de Marc Bloch.</p><p>Mas Estrasburgo significou mais. Foi lá que Bloch conviveu com o historiador da</p><p>Revolução Francesa, Georges Lefebre e, acima de tudo, com Lucien Febvre, com quem</p><p>se encontrou diariamente entre 1920 e 1933.</p><p>De certa maneira a riqueza do grupo de professores ajuda a entender, se não a</p><p>força do livro que Bloch estava por terminar, ao menos a importância de seu desafio e o</p><p>tamanho da empreitada. Em 1924, Marc Bloch publica Os reis taumaturgos, obra que</p><p>procurava entender o poder de toque praticado pelos monarcas ingleses e franceses</p><p>durante a Idade Média e até o século XVIII. Dizia a crença que os soberanos teriam o</p><p>poder de curar os doentes de escrófulas, uma moléstia de pele então conhecida como</p><p>"mal dos reis". O tema permitia adentrar terrenos desconhecidos da "psicologia</p><p>religiosa", assim como a seara das assim chamadas "ilusões coletivas". Ao fim e ao cabo,</p><p>Bloch reconhecia ter feito uma história do milagre; isto é, do desejo do milagre. Como</p><p>confessava o historiador, "o que criava a fé no milagre era a idéia de que deveria haver</p><p>um milagre".</p><p>Investindo em uma história de longa duração, de períodos históricos mais</p><p>alargados e estruturas que se modificavam de maneira mais lenta e preguiçosa, Bloch</p><p>tornava-se uma espécie de fundador da "antropologia histórica", ao selecio-nar eventos</p><p>marcados pelo seu contexto, mas acionados por estruturas e permanências sincrônicas,</p><p>anteriores ao momento mais imediato. Em questão estava o poder monárquico, mas,</p><p>também e igualmente, crenças e ritos, medicina popular e mentalidades. Estávamos</p><p>longe, muito longe de uma história mais tradicional, fiel a datas e nomes positivamente</p><p>delimitados. No fenômeno selecionado Bloch pretendia ter encontrado "representações</p><p>coletivas", conceito retirado da sociologia de Émile Durkheim, que mostrava o manejo</p><p>complexo entre modelos individuais e sociais. Como dizia o sociólogo: "A lógica da</p><p>sociedade não é igual à soma dos indivíduos", abrindo-se, assim, um campo próprio para</p><p>pensar na lógica social e em suas especificidades.</p><p>10 Apologia da história</p><p>Mas Bloch seria lembrado, ainda mais, por seus passos seguintes. Em 1928 toma a</p><p>iniciativa de ressuscitar velhos projetos, que incluíam a idéia de fundar uma revista</p><p>histórica. Diante da negativa de Pirenne, Bloch e Febvre tornam-se editores da revista</p><p>dos Annales, publicação essa que daria origem a todo um movimento de renovação na</p><p>historiografia francesa e que está na base do que hoje chamamos de "Nova História".</p><p>Nos primeiros números — e apesar do predomínio de artigos de historiadores</p><p>econômicos — ficavam expressas as prerrogativas do grupo: o combate a uma história</p><p>narrativa e do acontecimento, a exaltação de uma "historiografia do problema" a</p><p>importância de uma produção voltada para todas as atividades humanas e não só à</p><p>dimensão política e, por fim, a necessária colaboração interdisciplinar. A carreira de</p><p>Bloch, daí por diante, seria brilhante, mas breve e cortada pela guerra. Em 1931 publica</p><p>um livro sobre a história rural francesa, onde sintetiza uma série de questões sobre o</p><p>tema, usando fontes também literárias. Nessa obra, o historiador aplica seu método</p><p>"regressivo" buscando ler a história ao inverso e utilizando-se de temas DO presente. Em</p><p>1939 é a vez de A sociedade feudal, texto em que elabora outro grande painel sobre a</p><p>história européia, de 900 a 1300. De maneira direta, os estudos de Bloch, junto com os</p><p>de Lucien Febvre, convertiam-se em motes de ataque aos modelos mais empíricos, assim</p><p>como libelos de defesa de "um novo tipo de história", identificada no grupo seleto dos</p><p>Annales.</p><p>A II Guerra Mundial significou, no entanto, um bloqueio aos espíritos que</p><p>andavam, assim, soltos e animados. Mesmo contando com 53 anos, Bloch resolve</p><p>alistar-se, mais uma vez, no exército, avaliando a responsabilidade social em jogo naquela</p><p>ocasião. Diante da derrota francesa, retorna à vida acadêmica por pouco tempo,</p><p>entrando, em 1943, para a Resistência do grupo de Lyon. Preso no ano de 1944, o</p><p>historiador, mesmo em condições absolutamente desfavoráveis, passa seu tempo</p><p>redigindo. Desse período resultam dois pequenos livros, escritos entre quatro paredes</p><p>sólidas. O primeiro deles já comentamos brevemente; é A estranha derrota, obra que</p><p>associa a experiência particular das duas guerras e se debruça sobre a derrota francesa de</p><p>1939.</p><p>O segundo texto nos interessa mais de perto. Trata-se exatamente de Apologia da</p><p>história ou O ofício de historiador, obra inacabada que traz reflexões sobre método,</p><p>objetos e documentação histórica. Isolado, longe da família e das notícias que falavam</p><p>do destino a um só tempo trágico e desastroso da França — que até então parecia</p><p>resistir à invasão alemã —, Marc Bloch redigia um pequeno ensaio, até hoje uma peça</p><p>preciosa para a compreensão desse movimento que revolucionou a historiografia.</p><p>Nesse ensaio, a política ronda por perto. Não é à toa que Marc Bloch tenha</p><p>escrito que "a história serve à ação". No entanto, e apesar de estar diante de situações tão</p><p>radicais, Bloch não dá receitas fáceis e não faz da história um exerci-</p><p>Apresentação à edição brasileira 11</p><p>cio de reflexo imediato da política, ou uma resposta pragmática qualquer. Por certo, não</p><p>seria Bloch quem pediria o afastamento da ação. Ao contrário, seus conselhos são do</p><p>calibre daqueles que vivem a violência de perto; muito perto: "Não se recua diante da</p><p>responsabilidade. E, em matéria intelectual, horror da responsabilidade não é sentimento</p><p>muito recomendável." Mas não basta reagir ao contexto e aos ditames do momento</p><p>presente; a tarefa intelectual parece se impor de forma paralela e o rigor reassume sua</p><p>importância, mesmo diante de tantos impedimentos.</p><p>Os tempos eram porém difíceis e, como dizia Bloch, "a história se encontra</p><p>desfavorável às</p><p>de trás para frente, corre-se sempre o</p><p>risco de perder tempo na busca das origens ou das causas de fenômenos que, à luz da</p><p>experiência, irão revelar-se, talvez, imaginários. Por ter se omitido de praticar, ali onde se</p><p>impunha, um método prudentemente regressivo, os mais ilustres dentre nós às vezes se</p><p>entregaram a estranhos erros. Fustel de Coulanges debruçou-se sobre as "origens" de</p><p>instituições feudais das quais não formava, receio, senão uma imagem confusíssima e</p><p>[sobre as premissas] de uma servidão que, mal-instruído por descrições de segunda mão,</p><p>concebia sob cores absolutamente falsas.</p><p>Ora, sem dúvida menos excepcionalmente do que se pensa, acontece de, a fim de</p><p>atingir o dia, ser preciso prosseguir até o presente. Em certas de suas características</p><p>fundamentais, nossa paisagem rural, já o sabemos, data de épocas extremamente</p><p>remotas. Mas, para interpretar os raros documentos que nos permitem penetrar nessa</p><p>brumosa gênese, para formular corretamente os problemas, para até mesmo fazer uma</p><p>idéia deles, uma primeira condição teve que ser cumprida: observar, analisar a paisagem</p><p>de hoje. Pois apenas ela dá as perspectivas de conjunto de que era indispensável partir.</p><p>Não, decerto, que se trate — tendo imobilizado, de uma vez por todas, essa imagem —</p><p>de impô-la, tal qual, a cada etapa do passado sucessivamente encontrado, da montante à</p><p>jusante. Aqui como em todo lugar, essa é uma mudança que o historiador quer captar.</p><p>Mas, no filme por ele considerado, apenas a última película está intacta. Para reconstituir</p><p>os vestígios quebrados das outras, tem obrigação de, antes, desenrolar a bobina no</p><p>sentido inverso das sequências.</p><p>[Portanto, não há senão uma ciência dos homens no tempo e que incessantemente</p><p>tem necessidade de unir o estudo dos mortos ao dos vivos. Como chamá-lo? Já disse por</p><p>que o antigo nome de história me parece o mais compreensivo, o menos exclusivo, o</p><p>menos carregado também das comoventes lembranças de um esforço</p><p>35 ]a partir do mais recente para chegar ao mais remoto[</p><p>36 ], de habituar — para falar como Maitland — os olhos ao crepúsculo antes de</p><p>mergulhar na noite. [</p><p>68 Apologia da história</p><p>muito mais que secular; portanto, o melhor. Propondo assim estendê-lo, contrariamente</p><p>a certos preconceitos, aliás muito menos velhos do que ela, até o conhecimento do</p><p>presente, não buscamos — será preciso defender-nos? — nenhuma reivindicação</p><p>corporativa. A vida é muito breve, os conhecimentos a adquirir muito longos para</p><p>permitir, até para o mais belo gênio, uma experiência total da humanidade. O mundo</p><p>atual terá sempre seus especialistas, como a idade da pedra ou a egiptologia. A ambos</p><p>pede-se simplesmente para se lembrarem de que as investigações históricas não sofrem</p><p>de autarquia. Isolado, nenhum deles jamais compreenderá nada senão pela metade,</p><p>mesmo em seu próprio campo de estudos; e a única história verdadeira, que só pode ser</p><p>feita através de ajuda mútua, é a história universal.]</p><p>Uma ciência, entretanto, não se define apenas por seu objeto. Seus limites podem</p><p>ser fixados, também, pela natureza própria de seus métodos. Resta portanto nos</p><p>perguntarmos se, segundo nos aproximemos ou afastemos do momento presente, as</p><p>próprias técnicas da investigação não deveriam ser tidas por essencialmente diferentes.</p><p>Isto é colocar o problema da observação histórica.</p><p>Capítulo II</p><p>A observação histórica</p><p>1. [Características gerais da observação histórica]</p><p>[Situemo-nos resolutamente, para começar, no estudo do passado.]</p><p>As características mais visíveis da informação histórica [, entendida no sentido</p><p>restrito e usual do termo,] foram muitas vezes descritas. O historiador, por definição,</p><p>está na impossibilidade de ele próprio constatar os fatos que estuda. Nenhum egiptólogo</p><p>viu Ramsés; nenhum especialista das guerras napoleônicas ouviu o canhão de Austerlitz.</p><p>Das eras que nos precederam, só poderíamos [portanto] falar segundo testemunhas.</p><p>Estamos, a esse respeito, na situação do investigador que se esforça para reconstruir um</p><p>crime ao qual não assistiu; do físico, que, retido no quarto pela gripe, só conhecesse os</p><p>resultados de suas experiências graças aos relatórios de um funcionário de laboratório.</p><p>Em suma, em contraste com o conhecimento do presente, o do passado seria</p><p>necessariamente "indireto". Que haja nessas observações uma1 parte de verdade,</p><p>ninguém pensará em negá-lo. Elas exigem, no entanto, serem sensivelmente nuançadas.</p><p>Um comandante de exército, suponhamos, acaba de obter uma vitória.</p><p>Imediatamente, começa, de punho próprio, a escrever seu relato. Concebeu o plano de</p><p>batalha. Dirigiu-a. Graças à medíocre extensão do terreno [(pois, decididos a colocar</p><p>todos os ornatos em nosso jogo, imaginamos um confronto dos tempos antigos,</p><p>concentrado num espaço pequeno)], ele pôde ver a refrega quase toda se desenrolar sob</p><p>seus olhos. Entretanto, não duvidemos: sobre mais de um episódio essencial lhe será</p><p>forçoso referir-se aos relatórios de seus tenentes2. [No que, aliás, ele só fará se</p><p>conformar, transformado em narrador, ao próprio comportamento que teve, algumas</p><p>horas mais cedo na ação. Para coordenar a cada momento os movimentos de suas tropas</p><p>nas vicissitudes do combate, de que informações terá melhor se servido: das imagens</p><p>mais ou menos confusamente entrevistas através de seu binóculo ou dos relatos que</p><p>traziam, rédeas soltas, estafetas ou ajudantes de</p><p>1 ] grande[</p><p>2 ], por sua vez, numa larga medida, estabelecid(a)os com a ajuda de informações</p><p>expedidas por subalternos. [</p><p>69</p><p>70 Apologia da história</p><p>campo? Raramente um líder consegue ter a si mesmo como sua própria testemunha.</p><p>Entretanto, até numa hipótese tão favorável, o que resta da chamada observação direta,</p><p>pretenso privilégio do estudo do presente?</p><p>É que na verdade ela é quase sempre um mero artifício: no instante, pelo menos,</p><p>em que o horizonte do observador se alarga um pouco. ] Toda coletânea de coisas vistas</p><p>é, em uma boa metade, de coisas vistas por outro. Economista, estudo o movimento das</p><p>transações este mês, esta semana: é com a ajuda de estatísticas que não foram feitas</p><p>pessoalmente por mim. Explorador da crista da atualidade, ponho-me a sondar a opinião</p><p>pública sobre os grandes problemas do momento; faço perguntas; anoto, confiro3,</p><p>recenseio respostas. O que me fornecem elas senão, mais ou menos inabilmente</p><p>expressa, a imagem que meus interlocutores formam do que acreditam eles mesmos</p><p>pensar ou aquela que pretendem me apresentar de seus pensamentos? Eles são os</p><p>sujeitos de minha experiência. Mas ao passo que um fisiologista que disseca uma cobaia</p><p>percebe, com seus próprios olhos, a lesão ou a anomalia buscada, não conheço4 a</p><p>situação de meus "homens de rua" senão por meio do panorama que eles mesmos</p><p>aceitam me fornecer. Porque no imenso tecido de acontecimentos, gestos e palavras de</p><p>que se compõe o destino de um grupo humano, o indivíduo percebe apenas um</p><p>cantinho, estreitamente limitado por seus sentidos e sua faculdade de atenção; porque</p><p>[além disso] ele nunca possui5 a consciência imediata senão de seus próprios estados</p><p>mentais: todo conhecimento da humanidade, qualquer que seja, no tempo, seu ponto de</p><p>aplicação, irá beber sempre nos testemunhos dos outros uma grande parte de sua</p><p>substância. [O investigador do presente não é, quanto a isso, melhor aquinhoado do que</p><p>o historiador do passado.]</p><p>[Mas tem mais.] A observação do passado, mesmo de um passado muito recuado,</p><p>será com certeza sempre "indireta" a esse ponto?</p><p>Vemos muito bem por que razões a impressão desse distanciamento entre o</p><p>objeto do conhecimento e o pesquisador impôs-se com tanta força a tantos teóricos da</p><p>história. É que pensavam antes de tudo em uma6 história de acontecimentos, até mesmo</p><p>de episódios: quero dizer, aqueles que, certo ou errado — não é o momento de examinar</p><p>—, dão extrema importância a retraçar exatamente os atos, palavras ou atitudes de</p><p>alguns personagens, agrupados em uma cena de duração relativamente curta, em que</p><p>se</p><p>concentram, como na tragédia clássica, todas as forças da crise do momento: jornada</p><p>revolucionária, combate, entrevista diplo-</p><p>3 ]e[</p><p>4 ]eu mesmo [</p><p>5 ]graças a uma introspecção, ela própria de resto bem frágil,[</p><p>6 ] outra [</p><p>A observação histórica 71</p><p>mática. Conta-se que, em 2 de setembro de 1792, a cabeça da princesa Lamballe havia</p><p>desfilado na ponta de um chuço sob as janelas da família real. É verdade isso? É falso? O</p><p>sr. Pierre Caron, que escreveu sobre os Massacres um livro de admirável probidade, não</p><p>ousa se pronunciar. Se lhe houvesse sido dado contemplar, ele próprio, de uma das</p><p>torres do Templo, o terrível cortejo, teria seguramente a que se ater. Pelo menos</p><p>supondo que, tendo preservado [, como podemos acreditar,] nessas circunstâncias todo</p><p>seu sangue-frio de cientista, houvesse, além disso, por uma justa desconfiança de sua</p><p>memória, tomado cuidado de anotar imediatamente suas observações. Em tal caso, sem</p><p>nenhuma dúvida, o historiador se sente, em relação à boa testemunha de um fato</p><p>presente, em uma posição algo humilhante. Fica como que no fim de uma fila na qual os</p><p>avisos são transmitidos, desde a frente, de fileira em fileira. Não é um lugar muito bom</p><p>para se ser informado com segurança. Assim, um tempo atrás, presenciei, durante uma</p><p>troca de guarda noturna,7 passar, ao longo da fila, o grito: "Atenção! Buracos [de obus] à</p><p>esquerda!" O último homem recebeu-o sob a forma "Para a esquerda", deu um passo</p><p>nesse sentido e foi tragado.</p><p>Existem no entanto outras eventualidades. Nos muros de certas cidadelas sírias,</p><p>erguidas alguns milênios antes de Jesus Cristo, os arqueólogos descobriram, presas em</p><p>pleno entulho, [cerâmicas cheias de] esqueletos de crianças. Como não se poderia</p><p>razoavelmente supor que essas ossadas estivessem ali por acaso, estamos, muito</p><p>evidentemente, diante de restos de sacrifícios humanos, realizados no próprio momento</p><p>da construção e a ela ligados. Sobre as crenças que se exprimem através desses ritos,</p><p>seremos provavelmente obrigados a nos remeter a testemunhos da época, caso existam,</p><p>ou a proceder por analogia, com a ajuda de outros testemunhos. Uma fé que não</p><p>compartilhamos, como então conhecê-la8 senão através das palavras de outro? É esse o</p><p>caso [, é preciso repetir,] de todos os fenômenos de consciência, a partir do momento</p><p>em que são estranhos a nós. Quanto ao fato mesmo do sacrifício, em contrapartida,</p><p>nossa posição é bem diferente. Decerto não o captamos, propriamente falando, de um</p><p>relance absolutamente imediato. Tampouco o geólogo, a amonita onde descobre o fóssil.</p><p>Tampouco o físico, o movimento molecular cujos efeitos deduz no movimento</p><p>browniano. Mas o raciocínio muito simples que, ao excluir qualquer outra possibilidade</p><p>de explicação, nos permite passar do objeto verdadeiramente constatado ao fato cuja</p><p>prova nos traz — [esse] trabalho de interpretação rudimentar muito vizinho, em suma,</p><p>[das operações mentais instintivas], sem as quais nenhuma</p><p>7 ] tentar [</p><p>8 ] quaisquer que fossem [</p><p>72 Apologia da história</p><p>sensação tornar-se-ia percepção —, não há nada nele que, entre a coisa e nós, tenha</p><p>exigido a interpolação de outro observador. Os especialistas do método9 geralmente</p><p>entenderam como conhecimento indireto aquele que não atinge o espírito do historiador</p><p>senão pelo canal de espíritos humanos diferentes10. [O termo talvez não seja bem</p><p>escolhido; limita-se a indicar a presença de um intermediário; não vemos por que esse</p><p>elo seria necessariamente de natureza humana. Aceitemos todavia, sem discutir quanto</p><p>às palavras, o uso comum. Nesse sentido, nosso conhecimento das imolações murais na</p><p>antiga Síria seguramente nada tem de indireto.</p><p>Ora, assim também muitos outros vestígios do passado nos oferecem um acesso</p><p>do mesmíssimo nível. Ê o caso, em sua quase totalidade, da imensa massa de</p><p>testemunhos não-escritos, e até de um bom número de escritos. Se os mais conhecidos</p><p>teóricos de nossos métodos não tivessem manifestado tão espantosa e soberba</p><p>indiferença em relação às técnicas próprias da arqueologia, se tivessem sido, na ordem</p><p>documentária, obcecados pelo relato, ao passo que na ordem dos fatos, pelo</p><p>acontecimento, sem dúvida os veríamos menos prontos a nos jogar para uma</p><p>observação eternamente dependente. Nos túmulos reais de Ur, na Caldéia, encontraram-</p><p>se contas de colar feitas de amazonita. Como as jazidas mais próximas dessa pedra</p><p>situam-se no coração da Índia ou nos arredores do lago Baikal, parece se impor a</p><p>conclusão de que, a partir do terceiro milênio antes de nossa era, as cidades do Baixo</p><p>Eufrates mantinham relações de troca com terras extremamente longínquas. A indução</p><p>pode parecer boa ou frágil. Qualquer juízo que se faça sobre ela, trata-se inegavelmente</p><p>de uma indução do tipo mais clássico; fundamenta-se na constatação de um fato e a</p><p>palavra de outro em nada interfere nisso. Mas os documentos materiais não são, longe</p><p>disso, os únicos a possuir esse privilégio de poderem ser apreendidos de primeira mão.</p><p>Do mesmo modo o sílex, talhado outrora pelo artesão da idade da pedra,] um traço de</p><p>linguagem, uma regra de direito incorporada em um texto [, um rito fixado por um livro</p><p>de cerimônias ou representado sobre uma estela] são realidades que nós próprios</p><p>captamos e que exploramos por um esforço de inteligência estritamente pessoal.</p><p>[Nenhum outro cérebro humano precisa ser convocado para isso, como intermediário.</p><p>Não é absolutamente verdade, para retomar a comparação de ainda há pouco, que o</p><p>historiador seja necessariamente reduzido a só saber o que acontece em seu laboratório</p><p>por meio de relatos de um estranho. Ele só chega depois de concluído o experimento,</p><p>sempre. Mas, se as circunstâncias o permitirem, o expe-</p><p>9 ]histórico[</p><p>10 ]. Tomado nesse sentido, o termo deixa de valer para nosso conhecimento dos</p><p>sacrifícios sírios. [</p><p>A observação histórica 73</p><p>rimento terá deixado resíduos, os quais não é impossível que perceba com os próprios</p><p>olhos.]</p><p>É portanto em outros termos, ao mesmo tempo menos ambíguos e mais</p><p>compreensíveis, que convém definir as indiscutíveis particularidades da observação</p><p>histórica.</p><p>Como primeira característica, o conhecimento de todos os fatos humanos no</p><p>passado, da maior parte deles no presente, deve ser, [segundo a feliz expressão de</p><p>François Simiand,] um conhecimento através de vestígios. Quer se trate das ossadas</p><p>emparedadas nas muralhas da Síria, de uma palavra cuja forma ou emprego revele um</p><p>costume, de um relato escrito pela testemunha de uma cena antiga [ou recente], o que</p><p>entendemos efetivamente por documentos senão um "vestígio" quer dizer, a marca,</p><p>perceptível aos sentidos, deixada por um fenômeno em si mesmo impossível de captar?</p><p>Pouco importa que o objeto original se encontre, por natureza, inacessível à sensação,</p><p>como o átomo cuja trajetória é tornada visível - na câmara de Wilson, ou que assim</p><p>tenha se tornado só no presente, por efeito do tempo, como o limo, apodrecido há</p><p>milênios, cuja impressão subsiste no bloco de hulha, ou como as solenidades, caídas em</p><p>longo desuso, que vemos pintadas e comentadas nas paredes dos templos egípcios. Em</p><p>ambos os casos, o procedimento de reconstituição é o mesmo e todas as ciências</p><p>oferecem muitos exemplos disso11. [Mas, do fato de um grande número de pesquisadores</p><p>de todas as categorias verem-se obrigados a não apreender certos fenômenos senão</p><p>através de outros fenômenos destes derivados, não resulta, entre eles — longe disso —</p><p>uma perfeita igualdade de meios. É possível que, como físico, tenham eles próprios o</p><p>poder de provocar o surgimento desses vestígios. É possível, ao contrário, que fiquem</p><p>reduzidos a esperá-lo do capricho de forças sobre as quais não exercem a menor</p><p>influência.]. Em ambos os casos, a posição deles será, muito evidentemente, bastante</p><p>diferente. O que foi feito dos observadores dos fatos humanos? Aqui a questão da data</p><p>reassume seus direitos.12/13</p><p>[Parece evidente que todos os fatos humanos um pouco complexos escapem à</p><p>possibilidade</p><p>de uma reprodução ou de uma orientação voluntárias; e teremos, a</p><p>propósito, que voltar a isso mais tarde. Decerto,] desde as mais elementares medi-</p><p>11 ]Mas a essa primeira característica uma outra se acrescenta aqui: sempre que o passado</p><p>está em questão, com muita frequência quando se trata do presente. Ao observador é</p><p>impossível provocar ele mesmo o surgimento desses vestígios.[</p><p>12 Na primeira redação seguia-se um longuíssimo § que foi suprimido nesta redação.</p><p>13 Na primeira redação, essas duas últimas frases eram objeto de um § cuja primeira frase</p><p>é: "Tomemos cuidado com isso, entretanto."</p><p>74 Apologia da história</p><p>das de sensação até os textos mais refinados da inteligência ou da emotividade, existe14</p><p>uma experimentação psicológica. Mas ela não se aplica, em suma, senão ao indivíduo. A</p><p>psicologia coletiva lhe é quase totalmente rebelde. Não se poderia — não se ousaria,</p><p>supondo que se o pudesse — suscitar deliberadamente pânico ou um movimento de</p><p>entusiasmo religioso. Entretanto, quando os fenômenos estudados pertencem ao</p><p>presente ou ao passado muito recente, o observador, por mais incapaz que seja de forçá-</p><p>los a se repetir ou de infletir, a seu bel-prazer, seu desenrolar, não se encontra do mesmo</p><p>modo desarmado em relação a suas pistas. Ele pode, literalmente, dar vida a algumas</p><p>delas15. São os relatos das testemunhas.</p><p>Em 5 de dezembro de 1805, a experiência de Austerlitz não era, assim como hoje,</p><p>suscetível de se repetir. Porém, o que havia feito na batalha este ou aquele regimento?</p><p>Caso Napoleão tivesse desejado [algumas horas depois do cessar-fogo,] informar-se</p><p>sobre isso, duas palavras lhe bastariam para que um dos oficiais lhe enviasse um</p><p>relatório16. Nenhum relato desse tipo, público ou privado, jamais foi, ao contrário,</p><p>estabelecido? Os que foram17 escritos se perderam? Por mais que façamos, por nossa</p><p>vez, a mesma pergunta, ela corre o grande risco de permanecer eternamente sem</p><p>resposta [, ao lado de muitas outras, muito mais importantes]. Qual historiador não</p><p>sonhou poder, como Ulisses, alimentar as sombras com sangue para interrogá-las18? Mas</p><p>os milagres da Nekuia não estão mais em voga e não existe outra máquina de voltar no</p><p>tempo senão a que funciona em nosso cérebro, com materiais fornecidos por gerações</p><p>passadas.</p><p>[Sem dúvida, tampouco devemos exagerar os privilégios do estudo do presente.]</p><p>Imaginemos que todos os oficiais, que todos os homens do regimento tenham morrido;</p><p>ou, mais simplesmente, que entre os sobreviventes não se tenham encontrado</p><p>testemunhas cuja memória, cujas faculdades de atenção fossem dignas de crédito.</p><p>Napoleão não terá sido melhor aquinhoado do que nós19. Qualquer um que tenha</p><p>tomado parte [, mesmo no papel mais humilde,] em qualquer grande ação sabe bem que</p><p>acontece de um episódio, às vezes capital, tornar-se, ao cabo de poucas horas, impossível</p><p>de precisar. Acrescente-se que nem todas as pistas se prestam [com a mesma docilidade]</p><p>a essa evocação retrospectiva. Se as aduanas</p><p>14 ], em resumo,[</p><p>15 Essa passagem, começando aqui pelas palavras "Mas ela não se aplica, em suma, senão</p><p>ao indivíduo", corresponde, na primeira redação, a um desenvolvimento muito alterado.</p><p>16 }(livre, aliás, para depois submeter essa peça à crítica; este é um outro aspecto do</p><p>método, que nos deterá no devido lugar) [</p><p>17 ] talvez [</p><p>18 ], infelizmente sempre sem sucesso[</p><p>19 ] somos [</p><p>A observação histórica 75</p><p>deixaram de registrar, a cada dia, em novembro de 1942, a entrada e saída das</p><p>mercadorias, não terei praticamente meio algum, em dezembro, de apreciar o comércio</p><p>exterior do mês precedente. [Em resumo, da investigação sobre o remoto à investigação</p><p>sobre o passado muito recente, a diferença é, uma vez mais, apenas de grau. Ela não</p><p>atinge o fundo dos métodos. Não deixa de ser menos importante por isso e convém daí</p><p>extrair as consequências.]</p><p>O passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o</p><p>conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma</p><p>e aperfeiçoa. Para quem duvidasse, bastaria lembrar20 o que, há pouco mais de um</p><p>século, aconteceu sob nossos olhos. Imensos contingentes da humanidade saíram das</p><p>brumas. O Egito e a Caldéia sacudiram suas mortalhas. As cidades da Ásia central</p><p>revelaram suas línguas, que ninguém mais sabia falar, e suas religiões, há muito extintas.</p><p>Uma civilização [inteirinha] ignorada acaba de se levantar do túmulo, nas margens do</p><p>Indo. [Isso não é tudo e] a engenhosidade dos pesquisadores em vasculhar mais a fundo</p><p>as bibliotecas, em abrir novas trincheiras nos solos cansados, não trabalha apenas [nem,</p><p>talvez, mais eficazmente] para enriquecer a imagem dos tempos idos. Procedimentos de</p><p>investigação até então desconhecidos também surgiram. Sabemos melhor que nossos</p><p>predecessores interrogar as línguas acerca dos costumes, as ferramentas acerca do</p><p>artesão. Aprendemos sobretudo a mergulhar mais profundamente21 na análise dos fatos</p><p>sociais. O estudo das crenças e dos ritos populares mal desenvolve suas primeiras</p><p>perspectivas. A história da economia, da qual Cournot, [há tempos,] enumerando os</p><p>diversos aspectos da investigação histórica, não fazia22 nem mesmo idéia, apenas começa</p><p>a se constituir. Tudo isso é certo. Tudo isso permite as mais vastas esperanças. Não</p><p>esperanças ilimitadas. Essa sensação de progressão verdadeiramente indefinida, que uma</p><p>ciência como a química dá, [capaz de criar até seu próprio objeto,] nos é recusada.</p><p>É que os exploradores do passado não são homens completamente livres. O</p><p>passado23 é seu tirano. Proíbe-lhes conhecer de si qualquer coisa a não ser o que ele</p><p>mesmo lhes fornece [, conscientemente ou não]. Jamais estabeleceremos uma estatística</p><p>dos preços na época merovíngia, pois nenhum documento registrou esses preços em</p><p>número suficiente. Jamais seremos capazes de penetrar tão bem a mentalidade dos</p><p>homens do século XI europeu, por exemplo, quanto o podemos fazer para os</p><p>contemporâneos de Pascal ou de Voltaire: porque não temos deles nem cartas [privadas],</p><p>nem confissões; porque só temos sobre alguns deles biogra-</p><p>20 ]tudo[</p><p>21 ]que eles[</p><p>22 ]ainda[</p><p>23 ] inclusive [</p><p>76 Apologia da história</p><p>fias ruins24, em estilo convencional. Em virtude dessa lacuna, toda uma parte de nossa</p><p>história necessariamente incide sobre o aspecto, um pouco exangue, de um mundo sem</p><p>indivíduos. [Não nos queixemos muito. Nessa rigorosa submissão a um inflexível</p><p>destino, não estamos — nós, pobres adeptos frequentemente escarnecidos das jovens</p><p>ciências do homem — melhores do que muitos de nossos confrades, dedicados a</p><p>disciplinas mais antigas e mais seguras de si.] Tal é a sorte comum de todos os estudos</p><p>cuja missão implica escrutar fenômenos consumados, e o pré-historiador não é, na falta</p><p>de escritos, menos capaz de reconstituir as liturgias da idade da pedra do que o</p><p>paleontólogo, suponho, as glândulas [de secreção] interna do plessiosauro, do qual</p><p>apenas subsiste o esqueleto. É sempre desagradável dizer: "Não sei, não posso saber." Só</p><p>se deve dizê-lo depois de tê-lo energicamente, desesperadamente buscado. Mas há</p><p>momentos em que o mais imperioso para o cientista é [, tendo tentado tudo,] resignar-se</p><p>à ignorância e confessá-lo honestamente.</p><p>2. Os testemunhos</p><p>"Heródoto de Túrio expõe aqui suas pesquisas, a fim de que as coisas feitas pelos</p><p>homens não sejam esquecidas com o tempo e que grandes e maravilhosas ações,</p><p>realizadas tanto pelos gregos como pelos bárbaros, nada percam de seu brilho." Assim</p><p>começa o mais antigo livro de história que, no mundo ocidental, chegou até nós sem ser</p><p>no estado de fragmentos. Ao lado dele, coloquemos, por exemplo, um desses guias de</p><p>viagem que os egípcios [, na época dos faraós,] introduziam nos túmulos. Temos, cara a</p><p>cara, os próprios tipos de duas grandes classes entre as quais se divide a massa,</p><p>imensamente variada, dos documentos colocados pelo passado à disposição dos</p><p>historiadores. Os testemunhos do primeiro grupo são voluntários. Os outros não.</p><p>Quando [, com efeito,] lemos, para nos informar, Heródoto ou Froissart, as</p><p>Memórias do marechal Joffre ou as notícias, aliás completamente contraditórias, dadas</p><p>pelos jornais alemães e britânicos [, por estes dias,] sobre o ataque a um comboio no</p><p>Mediterrâneo, o que fazemos senão nos conformar exatamente ao que os autores desses</p><p>escritos esperavam de nós? Ao contrário, as fórmulas dos papiros dos mortos eram</p><p>destinadas a serem recitadas apenas pela alma em perigo e ouvidas tão-somente pelos</p><p>deuses; o homem das palafitas que, no lago vizinho onde o arqueólogo os remexe</p><p>atualmente, jogava fora os dejetos de sua cozinha, queria apenas poupar sujeira à sua</p><p>cabana; a bula de isenção pontifical só era tão</p><p>24 ] contemporâneas [</p><p>A observação histórica 77</p><p>precavidamente preservada nos cofres do mosteiro a fim de ser, chegado o momento,</p><p>brandida aos olhos de um bispo importuno. [Entre todos esses cuidados, não figurava</p><p>absolutamente o de informar à opinião pública ou aos historiadores futuros] e quando o</p><p>medievalista folheia nos arquivos [, no ano da graça de 1492,] a correspondência</p><p>comercial dos Cedames de Lucqua, torna-se culpado de uma indiscrição que os Cedames</p><p>de nossos dias, se tomassem as mesmas liberdades com seus copistas de cartas,</p><p>qualificariam duramente.</p><p>Ora, as sources narratives — para empregar, em seu francês um pouco barroco, a</p><p>expressão consagrada — [, quer dizer, os relatos deliberadamente destinados à</p><p>informação dos leitores,] não cessaram, certamente, de prestar um precioso socorro ao</p><p>pesquisador. Entre outras vantagens, geralmente são as únicas a fornecer um</p><p>enquadramento cronológico, razoavelmente seguido. O que o pré-historiador, o que o</p><p>historiador da Índia não dariam para dispor de um Heródoto25? [Não podemos duvidar</p><p>no entanto: é na segunda categoria dos testemunhos,] é nas testemunhas à revelia que a</p><p>investigação histórica, ao longo de seus progressos, foi levada a depositar cada vez mais</p><p>sua confiança. Comparem a história romana tal como a escreviam Rollin ou mesmo</p><p>Niebuhr com aquela que qualquer compêndio coloca hoje sob nossos olhos: a primeira,</p><p>que extraía a maior parte de sua substância de Tito Lívio, Suetônio ou Floro; a segunda,</p><p>construída, em larga medida, à força de inscrições, papiros, moedas. Pedaços inteiros do</p><p>passado só puderam ser reconstituídos assim: toda a pré-história, quase toda a história</p><p>econômica, quase toda a história das estruturas sociais. No próprio presente, quem de</p><p>nós, em lugar de todos os jornais de 1938 ou 193926, não preferiria ter em mãos algumas</p><p>peças secretas da chancelaria, alguns relatórios confidenciais de chefes militares?</p><p>[Não é que os documentos desse gênero sejam, mais que outros, isentos de erro</p><p>ou de mentira. Não faltam falsas bulas, e, assim como todos os relatórios de</p><p>embaixadores, nenhuma carta de negócios diz a verdade. Mas a deformação aqui, a</p><p>supor que exista, pelo menos não foi concebida especialmente em intenção da</p><p>posteridade. Acima de tudo, esses indícios que, sem premeditação, o passado deixa cair</p><p>ao longo de sua estrada não apenas nos permitem suplementar esses relatos, quando</p><p>estes apresentam lacunas, ou controlá-los, caso sua veracidade seja suspeita; eles afastam</p><p>de nossos estudos um perigo mais mortal do que a ignorância ou a inexatidão: o de uma</p><p>irremediável esclerose. Sem seu socorro, com efeito, não veríamos inevitavelmente o</p><p>historiador, a cada vez que se debruça sobre gerações</p><p>25 Essa passagem, começando em "Ora, as sources", na primeira redação situava-se, com</p><p>variantes, depois da passagem relativa a Saint-Simon e aos santos da alta Idade Média.</p><p>26 ], de toda a literatura sobre as origens da guerra[</p><p>78 Apologia da história</p><p>desaparecidas, logo tornar-se prisioneiro dos preconceitos, das falsas prudências, das</p><p>miopias de que a própria visão dessas gerações sofrera; por exemplo, o medievalista não</p><p>dar senão pequena importância ao movimento comunal, sob pretexto de que os</p><p>escritores da Idade Média não falavam muito dele a seu público, ou desdenhar os</p><p>grandes elas da vida religiosa, pela simples razão de que ocupam, na literatura narrativa</p><p>da época, um lugar bem mais modesto do que as guerras dos barões; a história, em</p><p>resumo (para retomar uma antítese cara a Michelet), tornar-se menos exploradora, cada</p><p>vez mais ousada, das épocas consumadas do que o eterno e imóvel aluno de suas</p><p>"crônicas".]</p><p>Do mesmo modo, até nos testemunhos mais resolutamente voluntários, o que os</p><p>textos nos dizem expressamente deixou hoje em dia de ser o objeto predileto de nossa</p><p>atenção. Apegamo-nos geralmente com muito mais ardor ao que ele nos deixa entender,</p><p>sem haver pretendido dizê-lo. Em Saint-Simon, o que descobrimos de mais instrutivo?</p><p>Suas informações, frequentemente inventadas, sobre os acontecimentos do reino? Ou a</p><p>espantosa luz que as Memórias nos lançam sobre a mentalidade de um grande senhor, na</p><p>corte do Rei-Sol? Entre as vidas dos santos da alta Idade Média, pelo menos três quartos</p><p>são incapazes de nos ensinar qualquer coisa de concreto sobre os piedosos personagens</p><p>cujo destino pretendem [nos] retraçar. Interroguemo-las, ao contrário, sobre27 as</p><p>maneiras de viver ou de pensar particulares às épocas em que foram escritas, todas as</p><p>coisas que o hagiógrafo não tinha o menor desejo de nos expor. Vamos achá-las de um</p><p>valor inestimável. Em nossa inevitável subordinação em relação ao passado, ficamos</p><p>[portanto] pelo menos livres no sentido de que, condenados sempre a conhecê-lo</p><p>exclusivamente por meio de [seus] vestígios, conseguimos todavia saber sobre ele muito</p><p>mais do que ele julgara sensato nos dar a conhecer. [É, pensando bem, uma grande</p><p>revanche da inteligência sobre o dado.]</p><p>Mas, a partir do momento em que não nos resignamos mais a registrar [pura e]</p><p>simplesmente as palavras de nossas testemunhas, a partir do momento em que</p><p>tencionamos fazê-las falar [, mesmo a contragosto], mais do que nunca impõe-se um</p><p>questionário. Esta é, com efeito, a primeira necessidade de qualquer pesquisa histórica</p><p>bem conduzida.</p><p>Muitas pessoas e mesmo,28 parece, certos autores de manuais fazem uma imagem</p><p>surpreendentemente cândida da marcha de nosso trabalho. No princípio, diriam de bom</p><p>grado, eram os documentos. O historiador os reúne, lê29, empe-</p><p>27 ]as instituições,[</p><p>28 ]nos[</p><p>29 ] critica, quer dizer, como vamos ver,[</p><p>A observação histórica 79</p><p>nha-se em avaliar sua autenticidade e veracidade. Depois do que, e somente depois, os</p><p>põe para funcionar... Uma infelicidade apenas: nenhum historiador, jamais, procedeu</p><p>assim. Mesmo quando, eventualmente, imagina fazê-lo.</p><p>Pois os textos ou os documentos arqueológicos, mesmo os aparentemente mais</p><p>claros e mais complacentes, não falam30 senão quando sabemos interrogá-los. Antes de</p><p>Boucher de Perthes, os sílex abundavam, como em nossos dias, nos aluviões do Somme.</p><p>Mas faltava o interrogador e não existia pré-história. Velho medievalista, confesso não</p><p>conhecer leitura mais atraente do que um cartulário. É que sei aproximadamente o que</p><p>lhe perguntar. Uma coletânea de inscrições romanas, em contrapartida, me diz pouco. Se</p><p>com dificuldade consigo lê-las, não sei solicitá-las. Em outros termos, toda investigação</p><p>histórica supõe, desde seus primeiros passos, que a busca tenha uma direção. No</p><p>princípio, é o espírito.31 Nunca [em nenhuma ciência,] a observação passiva gerou algo</p><p>de fecundo. Supondo, aliás, que ela seja possível.32</p><p>Com efeito, não nos deixemos enganar. Acontece, sem dúvida, de o questionário</p><p>permanecer puramente instintivo. Entretanto ele está ali. Sem que o trabalhador tenha</p><p>consciência disso, seus tópicos lhe são ditados pelas afirmações ou hesitações que suas</p><p>explicações anteriores inscreveram obscuramente em seu cérebro, através da tradição, do</p><p>senso comum, isto é, muito frequentemente, dos preconceitos comuns. Nunca se é tão</p><p>receptivo quanto se acredita. Não há pior conselho a dar a um iniciante do que esperar</p><p>[assim], numa atitude de aparente submissão, a inspiração</p><p>do documento. Com isso,</p><p>mais de uma investigação de boa vontade destinou-se ao fracasso ou à insignificância33.</p><p>Naturalmente, é necessário que essa escolha ponderada de perguntas seja</p><p>extremamente flexível, suscetível de agregar, no caminho, uma multiplicidade de novos</p><p>tópicos, e aberta a todas as surpresas. De tal modo, no entanto, que possa desde o início</p><p>servir de ímã às limalhas do documento. O explorador sabe muito bem, previamente,</p><p>que o itinerário que ele estabelece, no começo, não será seguido ponto a ponto. Não ter</p><p>um, no entanto, implicaria o risco de errar eternamente ao acaso.</p><p>A diversidade dos testemunhos históricos é34 quase infinita. Tudo que o homem</p><p>diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele. É</p><p>curioso constatar o quão imperfeitamente as pessoas alheias a nosso trabalho</p><p>30 ]verdadeiramente [</p><p>31 ]Isso é verdade para a história assim como para qualquer ciência.[</p><p>32 Na primeira redação, encontramos este § e o seguinte em duas ocasiões: no capítulo I</p><p>e no capítulo II com importantes alterações.</p><p>33 ]Mais vale cem vezes uma escolha explícita e racional das perguntas[</p><p>34 ], já tive oportunidade de indicar,[</p><p>80 Apologia da história</p><p>avaliam a extensão dessas possibilidades. É que continuam a se aferrar a uma idéia</p><p>obsoleta de nossa ciência: a do tempo em que não se sabia ler senão os testemunhos</p><p>voluntários. Criticando a "história tradicional" por deixar na penumbra "fenômenos</p><p>consideráveis", porém "prenhes de consequências, mais capazes de modificar a vida</p><p>futura do que todos os acontecimentos políticos", o sr. Paul Valéry propõe como</p><p>exemplo "a conquista da terra" pela eletricidade. Quanto a isso, aplaudi-lo-emos de pé.</p><p>Infelizmente é bastante exato que esse imenso tema ainda não gerou nenhum trabalho</p><p>sério35. Mas quando, arrastado, de certo modo, pelo [próprio] excesso de sua severidade</p><p>em justificar o erro que acaba de denunciar, o sr. Valéry acrescenta que esses fenómenos</p><p>"escapam" necessariamente ao historiador pois, prossegue, "nenhum documento os</p><p>menciona expressamente" a acusação, dessa vez, ao passar do cientista para a ciência,</p><p>engana-se de destinatário. Quem acreditará que as empresas de eletricidade não tenham</p><p>seus arquivos, seus balanços de consumo, seus mapas de extensão das redes? Os</p><p>historiadores, diz o senhor, omitiram-se de interrogar esses documentos. É um [grande]</p><p>erro da parte deles certamente — a menos [todavia] que a responsabilidade [disso] caiba</p><p>aos guardiães [talvez] ciosos demais de tantos belos tesouros. Portanto, tenha paciência.</p><p>A história ainda não é tal como deveria ser. Não é uma razão para imputar à história tal</p><p>como pode ser escrita o peso de erros que só pertencem à história mal-compreendida.</p><p>Desse caráter maravilhosamente dispare de nossos materiais nasce entretanto uma</p><p>dificuldade: bastante grave na verdade36 para contar entre os [três ou quatro grandes]</p><p>paradoxos do ofício de historiador.</p><p>Seria uma grande ilusão imaginar que a cada problema histórico corresponde um</p><p>tipo único de documentos, específico para tal emprego. Quanto mais a pesquisa, ao</p><p>contrário, se esforça por atingir os fatos profundos, menos lhe é permitido esperar a luz</p><p>a não ser dos raios convergentes de testemunhos muito diversos em sua natureza. Que</p><p>historiador das religiões se contentaria em compilar tratados de teologia ou coletâneas de</p><p>hinos? Ele sabe muito bem que as imagens pintadas ou esculpidas nas paredes dos</p><p>santuários, a disposição e o mobiliários dos túmulos têm tanto a lhe dizer sobre as</p><p>crenças e as sensibilidades mortas quanto muitos escritos. Assim como o levantamento</p><p>das crônicas ou dos documentos, nosso conhecimento das invasões germânicas depende</p><p>da arqueologia funerária e do estudo dos nomes de lugares. À medida que nos</p><p>aproximamos de nossa época, essas exigências tornam-se sem dúvida diferentes. Nem</p><p>por isso se tornam menos imperiosas. Para compreender as sociedades atuais, será que</p><p>basta mergulhar na</p><p>35 ]. As rotinas que falseiam assim nossa imagem do mundo merecem todos os</p><p>opróbrios[</p><p>36 ]— embora geralmente desapercebida das pessoas que julgam de fora —[</p><p>A observação histórica 81</p><p>leitura dos debates parlamentares ou dos autos de chancelaria? Não será preciso também</p><p>saber interpretar um balanço de banco: texto, para o leigo, mais hermético do que</p><p>muitos hieróglifos? O historiador de uma época em que a máquina é rainha aceitará que</p><p>se ignore como são constituídas e modificadas as máquinas?</p><p>Ora, se quase todo problema humano importante pede assim o manejo de</p><p>testemunhos de tipos opostos, é, ao contrário, de absoluta necessidade que as técnicas</p><p>eruditas se distingam por tipos de testemunhos. O aprendizado de cada uma delas é</p><p>longo; sua posse plena exige uma prática mais longa ainda e quase constante. Um</p><p>número muito pequeno de trabalhadores [, por exemplo,] pode se vangloriar de estar</p><p>igualmente bem preparado para ler e criticar um documento medieval; para interpretar</p><p>corretamente os nomes de lugares (que são, antes de tudo, fatos de linguagem); para</p><p>datar, sem erro, os vestígios do habitat pré-histórico, celta, galo-romano; para analisar as</p><p>associações vegetais de um prado, de uma charneca, de uma landa. Sem tudo isso</p><p>porém37, como pretender escrever a história da ocupação do solo? Poucas ciências, creio,</p><p>são obrigadas a usar, simultaneamente, tantas ferramentas distintas. É que os fatos</p><p>humanos são mais complexos que quaisquer outros. É que o homem se situa na ponta</p><p>extrema da natureza.</p><p>É bom, a meu ver, é indispensável que o historiador possua ao menos um verniz</p><p>de todas as principais técnicas de seu ofício. Mesmo apenas a fim de saber avaliar,</p><p>previamente, a força da ferramenta e as dificuldades de seu manejo. A lista das</p><p>"disciplinas auxiliares" cujo ensino propomos a nossos iniciantes é demasiado restrita.</p><p>Por qual absurdo paralogismo, deixamos que homens que, boa parte do tempo, só</p><p>conseguirão atingir os objetos de seus estudos através das palavras ignorem, entre outras</p><p>lacunas, as aquisições fundamentais da linguística38? No entanto, por maior que seja a</p><p>variedade de conhecimentos que se queira proporcionar aos pesquisadores mais bem</p><p>armados, elas encontrarão sempre, e geralmente muito rápido, seus limites. Nenhum</p><p>remédio então senão substituir a multiplicidade de competências39 em um mesmo</p><p>homem por uma aliança de técnicas praticadas por eruditos diferentes, mas [todas]</p><p>voltadas para a elucidação de um tema único. Esse método supõe o consentimento no</p><p>trabalho por equipes. Exige também a definição prévia, por comum acordo, de alguns</p><p>grandes problemas predominantes. São êxitos de que nos encontramos ainda bastante</p><p>distantes. Eles determinam porém, numa larga medida — não duvidemos —, o futuro</p><p>de nossa ciência.</p><p>37 ]— ao lado de ainda muitas outras coisas —[</p><p>38 Aqui, na primeira redação, inseria-se um exemplo que foi modificado e deslocado para</p><p>o capítulo IV na redação definitiva.</p><p>39 ] técnicas [</p><p>82 Apologia da história</p><p>3. A transmissão dos testemunhos</p><p>Reunir os documentos que estima necessários é uma das tarefas mais40 difíceis do</p><p>historiador. De fato ele não conseguiria realizá-la sem a ajuda de guias diversos:</p><p>inventários de arquivos ou de bibliotecas, catálogos de museus, repertórios bibliográficos</p><p>de toda sorte41. Vê-se [às vezes] pedantes à cavaleiro42 espantarem-se com o tempo</p><p>sacrificado por alguns eruditos a compor semelhantes obras, por todos os trabalhadores</p><p>a se informar sobre sua existência e seu manejo. Como se graças às horas assim gastas</p><p>em tarefas que, por não deixarem de43 ter um atrativo oculto, carecem certamente de</p><p>brilho romanesco, o mais terrível dispêndio de energia não se visse finalmente</p><p>poupado44. Apaixonado, por todos os motivos, pela história do culto dos santos45,</p><p>[suponham que] ignoro a Bibliotheca hagiographica latina46 dos Padres bollandistas:</p><p>[imaginarão com dificuldade, caso não sejam especialistas,] a soma de esforços</p><p>estupidamente inúteis [que essa lacuna</p><p>de meu equipamento] não deixará de me custar.</p><p>O que convém lamentar, na verdade, não é que já possamos colocar nas prateleiras de</p><p>nossas bibliotecas uma quantidade notável desses instrumentos (cuja enumeração,</p><p>matéria por matéria, pertence aos livros específicos de orientação). É que ainda não</p><p>sejam suficientemente numerosos, sobretudo para as épocas menos afastadas de nós;</p><p>que o seu estabelecimento, particularmente na França, obedeça apenas por exceção a um</p><p>plano de conjunto racionalmente concebido; que sua atualização, enfim, seja muito</p><p>frequentemente abandonada aos caprichos dos indivíduos ou à parcimônia mal-</p><p>informada de algumas editoras. O primeiro tomo das admiráveis Fontes da história da</p><p>França, que devemos a Émile Molinier, não foi reeditado desde sua primeira edição em</p><p>1901. Esse simples fato equivale a um ato de acusação47. A ferramenta [, decerto,] não</p><p>faz a ciência. Mas uma sociedade que pretende respeitar as ciências não deveria se</p><p>desinteressar de suas ferramentas. Sem dúvida, quanto a isso, também seria sensata em</p><p>não se reportar a corpos acadêmicos, uma vez que seu</p><p>40 ]longas e mais[</p><p>41 ], coletâneas de textos ou de representações gráficas, classificadas por natureza [</p><p>42 ] fingindo [</p><p>43 ] sempre [</p><p>44 ]Se[</p><p>45 ]na Europa católica [</p><p>46 ]elaborada pelos[</p><p>47 ]Renan não será, creio, suspeito de insensibilidade às idéias ou à poesia. Escritas em</p><p>1841, suas palavras a propósito desse gênero de trabalhos permanecem sempre</p><p>verdadeiras e sempre incompreendidas: "Afirmo-vos que os cerca de cem mil francos</p><p>que um ministro da Educação Pública destinariam para isso seriam melhor empregados</p><p>do que três quartos daqueles consagrados às letras."[</p><p>A observação histórica 83</p><p>recrutamento, favorável à preeminência da idade e propícia aos bons alunos, não</p><p>predispõe particularmente ao espírito de empreendimento. Nossa Escola de Guerra e</p><p>nossos estados-maiores não são os únicos, em nosso país, a ter conservado a</p><p>mentalidade do carro de bois na época do automóvel.</p><p>Entretanto, por mais bem feitos, por mais abundantes que possam ser, esses</p><p>marcos indicadores seriam somente de pouca serventia para um trabalhador que não</p><p>tivesse, previamente, alguma idéia do terreno a explorar. A despeito do que às vezes</p><p>parecem imaginar os iniciantes, os documentos não surgem, aqui ou ali, por efeito [de</p><p>não se sabe] qual misterioso decreto dos deuses. Sua presença ou ausência em tais</p><p>arquivos, em tal biblioteca48, em tal solo deriva de causas humanas que não escapam de</p><p>modo algum à análise, e os problemas que sua transmissão coloca, longe de terem</p><p>apenas o alcance de exercícios de técnicos, tocam eles mesmos no mais íntimo da vida</p><p>do passado, pois o que se encontra assim posto em jogo é nada menos do que a</p><p>passagem da lembrança através das gerações. À frente das obras históricas do gênero</p><p>sério, o autor em geral coloca uma lista das cotas de arquivos que vasculhou, das</p><p>coletâneas de que fez uso. Isso é muito bom. Mas não basta. Todo livro de história</p><p>digno desse nome deveria comportar um capítulo ou [, caso se prefira], inserida nos</p><p>pontos de inflexão da exposição, uma série de parágrafos que se intitulariam algo como:</p><p>"Como posso saber o que vou lhes dizer?" Estou convencido de que, ao tomar</p><p>conhecimento dessas confissões, inclusive os leitores que não são do ofício</p><p>experimentariam um verdadeiro prazer intelectual. O espetáculo da busca, com seus</p><p>sucessos e reveses, raramente entedia. É o tudo pronto que espalha o gelo e o tédio.49</p><p>Ocorre-me50 receber a visita de trabalhadores que desejam escrever a história de</p><p>sua aldeia. Normalmente atenho-me aos seguintes comentários, que apenas simplifico</p><p>um pouco a fim de evitar detalhes de erudição que aqui seriam fora de propósito. "As</p><p>comunidades camponesas só possuíram arquivos rara e tardiamente. As senhorias, ao</p><p>contrário, sendo empreendimentos relativamente bem-organizados e dotados de</p><p>continuidade, em geral preservaram desde cedo seus dossiês. Para todo o período</p><p>anterior a 1789 e, especialmente, para as épocas mais antigas, os principais documentos</p><p>dos quais vocês podem esperar se servir serão documentos portanto de proveniência</p><p>senhorial. Daí resulta [, por sua vez,] que a primeira pergunta à qual terão de responder e</p><p>de que tudo vai depender vai ser esta: em 1789, qual era o senhor da aldeia?" (De fato, a</p><p>existência simultânea de</p><p>48 ]de manuscritos [</p><p>49 Na primeira redação seguia-se um § bem curto, que foi suprimido nesta redação.</p><p>50 ], profissionalmente,[</p><p>84 Apologia da história</p><p>vários senhores, entre os quais a aldeia teria sido dividida, não é absolutamente</p><p>inverossímil; mas, para sermos breves, deixaremos de lado essa suposição.) "Três</p><p>eventualidades são concebíveis. A senhoria pode ter pertencido a uma igreja; a um leigo</p><p>que [, sob a Revolução,] emigrou; ainda a um leigo que, ao contrário, nunca emigrou. O</p><p>primeiro caso é, de longe, o mais favorável. O arquivo não apenas tem chance de ser</p><p>melhor preservado51 e há mais tempo. Foi certamente confiscado, a partir de 1790, ao</p><p>mesmo tempo em que as terras, por aplicação da Constituição civil do clero. Levado</p><p>então para algum depósito público, pode-se sensatamente esperar que continue hoje ali,</p><p>praticamente intacto, à disposição dos eruditos. A hipótese do emigrado merece ainda</p><p>uma [muito] boa observação. Aí também, ele deve ter52 sido apreendido e transferido; no</p><p>máximo o risco de uma destruição voluntária, como vestígio de um regime amaldiçoado,</p><p>parecerá um pouco mais temível. Resta a última possibilidade. Ela seria infinitamente</p><p>incômoda. Os "á-de-vant", com efeito, na medida em que não deixavam a França nem</p><p>caíam de alguma outra maneira, sob o golpe das leis de Salvação Pública, não eram</p><p>absolutamente atingidos em seus bens. Perdiam, sem dúvida, seus direitos senhoriais,</p><p>uma vez que estes haviam sido universalmente abolidos. Conservavam o conjunto de</p><p>suas propriedades pessoais; por conseguinte, seus dossiês de negócios. Jamais tendo sido</p><p>reclamados pelo Estado, as peças que buscamos terão nesse caso simplesmente sofrido a</p><p>sorte comum a todos os papéis de família durante o século XIX e o século XX. Supondo</p><p>que não tenham se extraviado, sido comidos pelos ratos ou dispersados, ao sabor das</p><p>vendas e heranças, entre os celeiros de três ou quatro casas de campo diferentes, nada</p><p>obrigará seu detentor atual a [lhes] comunicá-los.53</p><p>[Cito esse exemplo porque me parece absolutamente típico das condições que</p><p>frequentemente determinam e limitam a documentação. Não seria desinteressante</p><p>analisar, mais de perto, seus ensinamentos.]</p><p>O54 papel desempenhado pelos confiscos revolucionários que acabamos de ver é o</p><p>de uma deidade não raro propícia ao pesquisador: a catástrofe. Incontáveis municípios</p><p>romanos se transformaram em banais cidadezinhas italianas, onde o arqueólogo</p><p>descobre penosamente alguns vestígios da Antiguidade; foi só a erupção do Vesúvio que</p><p>preservou Pompéia55.</p><p>51 ]em ordem[</p><p>52 ], em 1790,[</p><p>53 ]Diante de tal situação, não é improvável que a única saída seja finalmente renunciar ao</p><p>estudo projetado.[</p><p>54 ]No exemplo que acabamos de ler, o[</p><p>55 ]detendo bruscamente a cadeia de seu destino[</p><p>A observação histórica 85</p><p>Decerto, os grandes desastres da humanidade estão longe de sempre terem</p><p>servido à história. Com os manuscritos literários e historiográficos amontoados, os</p><p>inestimáveis dossiês da burocracia imperial [romana] soçobraram na confusão das</p><p>Invasões. Sob nossos olhos, as duas guerras mundiais riscaram de um solo, carregado de</p><p>glória, monumentos e depósitos de arquivos; nunca mais poderemos folhear as cartas</p><p>dos velhos comerciantes de Ypres, e presenciei, durante a derrota, o prontuário de um</p><p>exército queimar.</p><p>No entanto, por sua vez, a pacífica continuidade de uma vida social sem rasgos de</p><p>febre mostra-se menos favorável do que às vezes se acredita à transmissão da memória.</p><p>São as revoluções que forçam as portas dos armários de ferro e obrigam os ministros à</p><p>fuga, antes que tenham</p><p>achado tempo para queimar suas notas secretas. Nos antigos</p><p>arquivos judiciários, os fundos de falências têm disponíveis atualmente os papéis de</p><p>empresas que, se lhes houvesse sido dada a oportunidade de levar a cabo uma existência</p><p>frutífera e honrada, acabariam por destinar à destruição o conteúdo de suas papeleiras.</p><p>Graças à admirável permanência das instituições monásticas, a abadia de Saint-Denis</p><p>conservava ainda, em 1789, os diplomas que lhe haviam sido outorgados, mais de mil</p><p>anos antes, pelos reis merovíngios. Mas é nos Arquivos Nacionais que os lemos hoje. Se</p><p>a comunidade dos monges dionisianos tivesse sobrevivido à Revolução, seria certo que</p><p>nos permitiria vasculhar em seus cofres? Tampouco, talvez, a Companhia de Jesus</p><p>abrisse ao profano o acesso a seus acervos, cuja falta faz com que tantos problemas da</p><p>história moderna permaneçam [para sempre] desesperadamente obscuros, ou o Banco</p><p>da França convidasse os especialistas em Primeiro Império a consultar seus registros,</p><p>mesmo os mais poeirentos, tanto a mentalidade do iniciado é inerente a todas as</p><p>corporações. Eis onde o historiador do presente se vê nitidamente em desvantagem: fica</p><p>quase totalmente privado dessas confidências involuntárias. Em compensação, dispõe, é</p><p>verdade, das indiscrições que lhe cochicham seus amigos ao ouvido. A informação,</p><p>infelizmente, distingue-se mal da bisbilhotice. Um bom cataclisma resolveria</p><p>[frequentemente] melhor nosso caso.</p><p>Será assim pelo menos até que, renunciando a se entregar às suas próprias</p><p>tragédias com essa disposição, as sociedades consintam enfim a organizar racionalmente,</p><p>com sua memória, o conhecimento de si mesmas. Só conseguirão isso lutando corpo-a-</p><p>corpo com os dois principais responsáveis pelo esquecimento e pela ignorância: a</p><p>negligência, que extravia os documentos; e [, mais perigosa ainda,] a paixão pelo sigilo —</p><p>sigilo diplomático, sigilo dos negócios, sigilo das famílias que os esconde ou destrói. É</p><p>natural56 que o notário tenha o dever de não revelar as operações de seu cliente. Mas que</p><p>lhe seja permitido envolver em tão</p><p>56 ], é bom[</p><p>86 Apologia da história</p><p>impenetrável mistério os contratos passados pelos clientes de seu bisavô — ao passo</p><p>que, por outro lado, nada lhe proíbe seriamente deixar essas peças57 se irem na poeira —</p><p>,58 nossas leis [, quanto a isso,] de fato exalam bolor. Quanto aos motivos que fazem com</p><p>que a maioria das grandes empresas recuse tornar públicas as estatísticas mais</p><p>indispensáveis a um saudável comportamento da economia nacional, são raramente</p><p>dignos de respeito. Nossa civilização terá realizado um grande progresso no dia em que a</p><p>dissimulação, erigida em método de ação e quase em virtude burguesa, ceder lugar ao</p><p>gosto pela informação, isto é, necessariamente, pelas trocas de informações.</p><p>[Voltemos entretanto à nossa aldeia.] As circunstâncias que, nesse caso preciso,</p><p>decidem sobre a perda ou a preservação, sobre a acessibilidade ou a inacessibilidade dos</p><p>testemunhos, têm sua origem nas forças históricas de caráter geral; não apresentam</p><p>nenhum traço que não seja perfeitamente inteligível; mas são desprovidas de qualquer</p><p>relação lógica com o objeto da investigação cujo desfecho se acha, no entanto, colocado</p><p>sob sua dependência! Pois não se vê evidentemente por que o estudo de uma pequena</p><p>comunidade rural, na Idade Média, por exemplo, seria mais ou menos instrutivo</p><p>conforme, alguns séculos mais tarde, o senhor do momento resolvesse ou não ir</p><p>engrossar a reunião de Koblenz59. Nada mais frequente do que esse desacordo. [Ao</p><p>mesmo tempo, se conhecemos o Egito romano infinitamente melhor do que a Gália,</p><p>não é que mostremos um interesse mais vivo pelos egípcios do que pelos galo-romanos:</p><p>o ambiente seco e os ritos funerários da mumificação preservaram lá os escritos que o</p><p>clima do Ocidente e seus costumes destinavam, ao contrário, a uma rápida destruição.</p><p>Entre as causas que fazem o sucesso ou o fracasso da caça aos documentos e os motivos</p><p>que tornam esses documentos desejáveis, nada há, em geral, de comum: é o elemento</p><p>irracional, impossível de eliminar, que confere a nossas pesquisas um pouco desse</p><p>trágico interior em que tantas obras do espírito vêem talvez, com seus limites, uma das</p><p>razões secretas de sua sedução.</p><p>Além disso, no exemplo citado, o destino dos documentos, aldeia por aldeia,</p><p>torna-se, uma vez conhecido o fato crucial, praticamente previsível. Não é sempre o</p><p>caso.] O resultado final deve-se às vezes ao encontro de um número tão grande de</p><p>cadeias causais totalmente independentes uma das outras que qualquer previsão se</p><p>verifica impossível. Sei que quatro incêndios sucessivos, depois uma pilhagem,</p><p>devastaram os arquivos da antiga abadia de Saint-Benoit-sur-Loire; como,</p><p>57 ]se perderem, [</p><p>58 ]as prescrições de[</p><p>59 Algumas frases da primeira redação foram suprimidas aqui.</p><p>A observação histórica 87</p><p>explorando esse filão, eu adivinharia previamente que tipos de autos essas devastações</p><p>pouparam preferencialmente? O que foi chamado de migração dos manuscritos oferece</p><p>um tema de estudos do maior interesse; as passagens de uma obra literária através das</p><p>bibliotecas, a execução das cópias, o cuidado ou a negligência dos bibliotecários [e dos</p><p>copistas] são alguns dos traços pelos quais se exprimem, ao vivo, as vicissitudes da</p><p>cultura e o variável jogo de suas grandes correntes. Mas o erudito mais bem-informado</p><p>teria sido capaz de anunciar, antes de sua descoberta, que o manuscrito único da</p><p>Germania de Tácito acabou parando, no século XVI, no mosteiro de Hersfeld? Em</p><p>suma, há, no fundo de [quase] toda pesquisa documentária, um resíduo de inopinado e,</p><p>por conseguinte, de risco. Um trabalhador, que tenho alguns motivos para conhecer</p><p>bem, contou-me que, ao esperar, sem mostrar muita impaciência, na costa bombardeada</p><p>de Dunquerque, um incerto embarque, um de seus colegas lhe disse com cara de</p><p>espanto: "É estranho! Você não parece detestar a aventura." Meu amigo respondeu que,</p><p>a despeito do preconceito corrente, o hábito da pesquisa não é de modo algum</p><p>desfavorável, com efeito, a uma aceitação bem tranquila da aposta com o destino.</p><p>Capítulo III</p><p>A crítica</p><p>1. Esboço de uma história do método crítico</p><p>Que a palavra das testemunhas não deve ser obrigatoriamente digna de crédito,1</p><p>os mais ingênuos dos policiais sabem bem2. Livres, de resto, para nem sempre tirar desse</p><p>conhecimento teórico o partido que seria preciso. Do mesmo modo, há muito tempo</p><p>estamos alertados no sentido de não aceitar cegamente todos os testemunhos históricos.</p><p>Uma experiência, quase tão velha como a humanidade, nos ensinou que mais de um</p><p>texto se diz de3 outra proveniência do que de fato é: nem todos os relatos são verídicos e</p><p>os vestígios materiais, [eles] também, podem ser falsificados. Na Idade Média, diante da</p><p>própria abundância de falsificações4, a dúvida foi [frequentemente] como um reflexo</p><p>natural de defesa5. "Com tinta, qualquer um pode escrever qualquer coisa" exclamava, no</p><p>século XI, um fidalgo provinciano loreno, em processo contra monges que armavam-se</p><p>de provas documentais contra ele. A Doação de Constantino — essa espantosa</p><p>elucubração que um clérigo romano do século VIII assinou sob o nome do primeiro</p><p>César cristão — foi, três séculos mais tarde, contestada nos círculos do mui pio</p><p>imperador Oto III. As falsas relíquias são procuradas desde que as relíquias existem.</p><p>No entanto, o ceticismo de princípio não é uma atitude intelectual mais estimável</p><p>ou mais fecunda que a credulidade, com a qual, aliás, combina-se facilmente em muitos</p><p>espíritos um pouco simplistas. Conheci, durante a outra guerra, um simpático veterinário</p><p>que, não sem alguma aparência de razão, recusava-se sistematicamente a dar qualquer</p><p>crédito às notícias dos jornais. Mas se alguém6 despejasse em seu ouvido boatos dos</p><p>mais inverossímeis, deliciava-se.</p><p>1 ] mesmo [</p><p>2 ]e de longa data[</p><p>3 ]de uma outra época ou de[</p><p>4 ], característica de uma mentalidade essencialmente tradicionalista — à força de</p><p>depositar sua fé no passado, acabava-se por inventá-lo —[</p><p>5 ](reação) muito menos excepcional do que às vezes se imagina[</p><p>6 ], encontrado num trem ou durante uma escala, [</p><p>89</p><p>90 Apologia da história</p><p>[Do mesmo modo a crítica de simples bom senso, que por muito tempo foi a</p><p>única praticada, e a qual às vezes seduz certos espíritos, não podia ir muito longe. O que</p><p>é com efeito, o mais das vezes, esse pretenso bom senso? Nada mais que um composto</p><p>de postulados disparatados e de experiências precipitadamente generalizadas. Trata-se do</p><p>mundo físico? Ele negou os antípodas; nega o universo einsteiniano; trata como fábula o</p><p>relato de Herótodo segundo o qual, ao dar a volta na África, os navegadores em certo</p><p>dia viam o ponto onde o Sol nasce passar de sua direita para a esquerda. Trata-se de atos</p><p>humanos? O pior é que as observações alçadas assim à eternidade são obrigatoriamente</p><p>extraídas de um momento muito curto da duração: o nosso. Aí residiu o principal vício</p><p>da crítica voltairiana, aliás, não raro, muito penetrante. Não apenas as bizarrices</p><p>individuais são de todas as épocas, como mais de um estado de alma outrora comum nos</p><p>parece bizarro porque não o compartilhamos mais. O "bom senso", parece, proibiria</p><p>aceitar que o imperador Oto I tenha sido capaz de subscrever, a favor dos papas,</p><p>concessões territoriais inaplicáveis que desmentiam seus atos anteriores e que seus atos</p><p>posteriores nem levavam em conta. É preciso acreditar, contudo, que ele não tinha o</p><p>espírito configurado do mesmo modo que nós — que, mais precisamente, coloca-va-se,</p><p>em sua época, entre o escrito e a ação, uma distância cuja extensão nos surpreende —,</p><p>uma vez que o privilégio é incontestavelmente autêntico. ]</p><p>O verdadeiro progresso veio no dia em que a dúvida tornou-se, como dizia</p><p>Volney, "examinadora"; em que regras [objetivas] em outros termos foram pouco a</p><p>pouco elaboradas, as quais, entre a mentira e a verdade, permitem uma triagem. O jesuíta</p><p>von Paperbroeck, ao qual a leitura das Vidas dos santos inspirara uma incoercível</p><p>desconfiança em relação à herança da [alta] Idade Média inteira, considerava falsos todos</p><p>os diplomas merovíngios preservados nos mosteiros. Não, responde em substância</p><p>Mabillon; existem, incontestavelmente, diplomas inteiramente forjados, remanejados ou</p><p>interpolados; há também os autênticos; e eis como é possível distinguir uns dos outros.</p><p>Nesse ano — [ 1681,] ano da publicação do De re diplomatica, uma grande data, na</p><p>verdade, na história do espírito humano — a crítica de documentos foi [definitivamente]</p><p>fundada.</p><p>[Esse foi certamente aliás, de todo modo, o momento decisivo na história do</p><p>método crítico. O humanismo do período precedente tivera suas veleidades e suas</p><p>intuições. Não havia ido mais longe. Nada mais característico do que uma passagem dos</p><p>Ensaios. Montaigne nela justifica Tácito por ter narrado prodígios. Cabe, diz, aos</p><p>teólogos e filósofos discutirem os "créditos comuns". Os historiadores têm apenas de</p><p>"recitá-las" como suas fontes lhas fornecem. "Que eles antes nos transmitam a história</p><p>segundo recebem do que segundo estimam." Em outros termos, uma crítica filosófica,</p><p>apoiada em uma certa concepção da ordem natural ou divina, é perfeitamente legítima; e</p><p>entendemos, de resto, que Montaigne não endossa os milagres de Vespasiano; tampouco</p><p>muitos outros. Mas o exame especi-</p><p>A crítica 91</p><p>ficamente histórico de um testemunho enquanto tal visivelmente não capta bem como</p><p>sua prática seria possível. A doutrina de pesquisa foi elaborada apenas ao longo do</p><p>século XVII, século cuja verdadeira grandeza não colocamos onde deveríamos, e,</p><p>sobretudo, por volta de sua segunda metade7.]</p><p>Os próprios homens dessa época tiveram consciência disso. Era um lugar-</p><p>comum8, entre 1680 e 1690, denunciar como moda do momento o "pirronismo da</p><p>história". "Diz-se" escreve Michel Levassor comentando esse termo, "que a retidão do</p><p>espírito consiste em não acreditar levianamente e em saber duvidar de várias</p><p>descobertas". A própria palavra crítica [, que não designara até então senão um juízo de</p><p>gosto,] adquire então o sentido de prova de veracidade. Só arriscamos seu uso pedindo</p><p>desculpas antes. Pois "não pertence absolutamente ao uso culto": entendam que também</p><p>existe um sabor técnico. No entanto, triunfa cada vez mais. Bossuet a mantém</p><p>prudentemente à distância: quando fala de "nossos autores críticos", adivinhamos seu</p><p>dar de ombros. Mas Richard Simon a inscreve no título de quase todas as suas obras. Os</p><p>mais alertas não se deixam enganar [aliás]: o que esse nome anuncia é justamente a</p><p>descoberta de um método [, de aplicação quase universal]. A crítica, "essa espécie de</p><p>archote que nos ilumina e conduz pelas estradas obscuras da Antiguidade, fazendo-nos</p><p>distinguir o verdadeiro do falso": assim se exprime Elias du Pin. E Bayle,9 ainda mais</p><p>nitidamente: "O sr. Simon espalhou nessa novela Réponse diversas regras de crítica que</p><p>podem servir não apenas para entender as Escrituras, mas também para ler com desfrute</p><p>outras obras."</p><p>Ora, confrontemos algumas datas de nascimento: Paperbroeck — que, embora se</p><p>enganasse sobre documentos, não deixa de ter seu lugar, na primeira fila, entre os</p><p>fundadores da crítica aplicada à historiografia —, 1628; Mabillon, 1632; Richard Simon,</p><p>cujos trabalhos predominam nos primórdios da exegese bíblica, 1638. Acrescentem, fora</p><p>da coorte dos eruditos propriamente ditos10, Espinosa — o Espinosa do Tratado</p><p>teológico-político, essa pura obra-prima de crítica filológica e histórica —, 1632 também.</p><p>[No sentido mais correto da palavra,] é uma geração cujos contornos ainda se desenham</p><p>diante de nós [, com uma espantosa nitidez.</p><p>7 Esse § substitui dois §§ da primeira redação com frases bem diferentes.</p><p>8 ], parece [</p><p>9 ]menos pomposamente, mas[</p><p>10 A folha numerada III-5, começando pelas palavras "propriamente ditos" e terminando</p><p>por "em outros termos", é o resultado de uma nova datilografia em um original e um</p><p>carbono. Ela subsiste completa no manuscrito: o original com duas correções</p><p>manuscritas, aqui reproduzido, e a cópia sem nenhuma correção manuscrita.</p><p>92 Apologia da história</p><p>Mas] é preciso esclarecer mais. É [muito exatamente] a geração que veio à luz no</p><p>momento em que era publicado o Discurso do método.</p><p>Não estamos falando de uma geração de cartesianos. Mabillon, para nos atermos a</p><p>ele, era um monge devoto [, ortodoxo com simplicidade e] que nos deixou como último</p><p>escrito um tratado da Morte cristã. Desconfia-se de que não tenha conhecido muito de</p><p>perto a nova filosofia [, na época tão suspeita a tanta gente piedosa]; ainda mais porque,</p><p>caso houvesse tido algumas de suas luzes, teria encontrado ali muitos temas a serem</p><p>aprovados. Por outro lado — por mais que pareçam sugerir algumas páginas, talvez</p><p>demasiado célebres, de Claude Bernard —, as verdades de evidência, de caráter</p><p>matemático, cujo caminho a dúvida metódica, em Descartes, tem por missão abrir,</p><p>apresentam poucos traços em comum com as probabilidades cada vez mais</p><p>aproximativas que a crítica histórica, como as ciências de laboratório, se contenta em</p><p>deduzir. Mas, para que uma filosofia impregne toda uma época, não é necessário nem</p><p>que aja exatamente ao pé da letra, nem que [a maioria] dos espíritos11 sofra seus efeitos</p><p>de outro modo que não por uma espécie de osmose, frequentemente [semi-]</p><p>inconsciente. [Assim como a "ciência" cartesiana,] a crítica do testemunho histórico faz</p><p>tabula rasa da credulidade. [Assim como a ciência cartesiana,] ela procede a essa</p><p>implacável inversão de todos as bases antigas apenas a fim de conseguir com isso novas</p><p>certezas (ou grandes probabilidades), agora devidamente comprovadas. [Em outros</p><p>termos,] a idéia que a inspira12 [supõe uma reviravolta quase total das concepções antigas</p><p>da dúvida. A idéia de que essas feridas pareçam um sofrimento ou de que na dúvida</p><p>encontremos, ao contrário, não sei que nobre suavidade só havia sido considerada, até</p><p>então, uma atitude mental puramente negativa, uma</p><p>simples ausência. Estima-se agora</p><p>que], racionalmente conduzida, possa tornar-se um instrumento de conhecimento. É</p><p>uma idéia cujo surgimento se situa em um momento muito preciso da história do</p><p>pensamento.</p><p>A partir daí as regras essenciais do método crítico estavam [em suma] fixadas13.</p><p>Seu alcance geral era tão simples que no século XVIII, entre os temas mais</p><p>frequentemente propostos pela Universidade de Paris no concurso de agrégation</p><p>l1 ]submetidos à sua influência[</p><p>12 ]é que a dúvida [</p><p>13 A folha numerada III-6, começando pelas palavras "em suma fixadas" e concluindo</p><p>por "Não sendo mais guiado de cima, ele", é resultado de uma nova datilografia em um</p><p>original e uma cópia, que subsistem. O carbono, aqui reproduzido, comporta uma rasura</p><p>importante que é assinalada adiante. O original não comporta nenhuma correção.</p><p>]Vamos encontrá-las no Primeiro discurso sobre a história eclesiástica do padre Fleury</p><p>— publicado em .... (data ilegível) —, uma exposição bem razoável que d'Alembert, na</p><p>Enciclopédia, apenas reproduzirá. [</p><p>A crítica 93</p><p>dos filósofos, vemos figurar o seguinte, que soa curiosamente moderno: "Do</p><p>testemunho dos homens sobre os fatos históricos". Não é [certamente] que as gerações</p><p>seguintes não tenham14 trazido ao aparato15 muitos aperfeiçoamentos. Sobretudo,</p><p>generalizaram bastante seu emprego e estenderam consideravelmente suas aplicações16.</p><p>Por muito tempo as técnicas da crítica foram praticadas, pelo menos de maneira</p><p>assídua, quase que exclusivamente por um punhado de eruditos, exegetas e curiosos. Os</p><p>escritores dedicados a compor obras históricas com um certo arroubo não se</p><p>preocupavam em se familiarizar com essas receitas [de laboratório], a seu ver [muito]</p><p>demasiadamente minuciosas, e era com dificuldade que consentiam em levar em conta</p><p>seus resultados. Ora, nunca é bom, segundo as palavras de Hum-boldt, os químicos</p><p>recearem "molhar as mãos". Para a história, o perigo de um tal cisma entre preparação e</p><p>realização tem uma dupla face. [Atinge, primeira e cruelmente,] os grandes ensaios de</p><p>interpretação. Estes não faltam [não apenas, com isso,] ao dever primordial da</p><p>veracidade [, pacientemente buscada]; privados, além disso, dessa perpétua renovação,</p><p>dessa surpresa sempre renascente que a luta com o documento é a única a proporcionar,</p><p>torna-se-lhes impossível escapar a uma17 oscilação sem trégua entre alguns temas</p><p>[estereotipados] impostos pela rotina. Mas o próprio trabalho técnico não sofre menos.</p><p>Não sendo mais guiado de cima, arrisca-se18 a se agarrar indefinidamente a problemas</p><p>insignificantes ou mal-formulados. Não existe pior desperdício do que o da erudição</p><p>quando gira no vazio, nem soberba mais deslocada do que o orgulho do instrumento</p><p>que se toma por um fim em si.</p><p>Contra esses perigos, o esforço consciencioso do século XIX lutou bravamente.</p><p>[A escola alemã, Renan, Fustel de Coulanges restituíram à erudição sua condição</p><p>intelectual. O historiador foi levado à mesa de trabalho.] A partida, entretanto, foi</p><p>totalmente ganha? Acreditar nisso seria mostrar muito otimismo. [Em grande parte o</p><p>trabalho de pesquisa continua a andar aos trancos e barrancos, sem escolha racional de</p><p>seus pontos de aplicação. Sobretudo, a necessidade crítica não conse-</p><p>14 ], pouco a pouco,[</p><p>15 ]crítico[</p><p>16 Aqui, na primeira redação encontra-se um § começando pelas palavras "Os primeiros</p><p>eruditos" e terminando com "o comércio das antiguidades egípcias"; o §, na redação</p><p>definitiva, foi deslocado.</p><p>17 ]espécie de[</p><p>18 A folha numerada III-7, começando pela palavra "arrisca-se" e terminando com "o</p><p>pitoresco de fancaria" é resultado de uma nova datilografia em um original e um</p><p>carbono. O carbono, aqui reproduzido, comporta diversas palavras riscadas e raras</p><p>correções manuscritas. O original subsiste e não comporta nenhuma correção</p><p>manuscrita.</p><p>94 Apologia da história</p><p>guiu conquistar plenamente essa opinião das pessoas de bem (no sentido antigo do</p><p>termo) cujo assentimento, sem dúvida necessário à higiene moral de toda ciência, é mais</p><p>particularmente indispensável19 à nossa. Tendo os homens por objeto de estudo, como,</p><p>se os homens deixam de nos compreender, não ter o sentimento de só realizar nossa</p><p>missão pela metade?</p><p>Talvez, aliás, não a tenhamos, na realidade, exercido plenamente. O esoterismo</p><p>rebarbativo em que às vezes os melhores dentre nós persistem em se encerrar; em nossa</p><p>produção de leitura corrente, a preponderância do triste manual, que a obsessão de um</p><p>ensino mal-concebido coloca no lugar de uma verdadeira síntese; o pudor singular que,</p><p>mal-saídos da oficina, parece nos proibir de colocar sob os olhos dos leigos as nobres</p><p>apalpadelas de nossos métodos: todos esses maus hábitos, nascidos da acumulação de</p><p>preconceitos contraditórios, comprometem uma causa entretanto bela. Conspiram para</p><p>entregar, sem defesa, a massa dos leitores aos falsos brilhantes de uma pretensa história,</p><p>da qual a ausência de seriedade, o pitoresco de fancaria, os partis pris políticos pensam</p><p>ser resgatados por uma imodesta segurança; ali onde Maurras, Bainville ou Plekhanov</p><p>afirmam, Fustel de Coulanges ou Henri Pirenne teriam duvidado. Entre a investigação</p><p>histórica tal como é feita ou aspira a ser feita e o público que lê, incontestavelmente</p><p>subsiste um mal-entendido.] Para colocar em jogo, das duas partes, tantos divertidos</p><p>defeitos, a grande polêmica a respeito das notas não é o menos significativo dos</p><p>sintomas.</p><p>[As margens inferiores das páginas exercem em muitos eruditos uma atração que</p><p>beira a vertigem.] É certamente absurdo entulhar seus brancos, como eles o fazem, de</p><p>remissões bibliográficas, as quais uma lista feita no início do volume teria, em sua</p><p>maioria, poupado, ou, pior ainda, reservar esse espaço, por pura preguiça, a longos</p><p>desenvolvimentos cujo lugar estava marcado no próprio corpo da exposição: de modo</p><p>que o mais útil desses trabalhos é [frequentemente] no porão que é preciso20 buscar. Mas</p><p>quando alguns leitores se queixam de que a menor linha que seja, bancando a insolente</p><p>no rodapé do texto, lhes confunde o cérebro, quando certos editores pretendem que</p><p>seus fregueses, sem dúvida menos hipersensíveis, na realidade, do que se costuma pintá-</p><p>los, martirizam-se à vista de qualquer folha assim desonrada, [esses delicados</p><p>simplesmente provam sua impermeabilidade aos mais elementares preceitos de uma</p><p>moral da inteligência. Pois, fora dos livres jogos da fantasia, uma afirmação não tem o</p><p>direito de ser produzida senão sob a condição de poder ser verificada; e] cabe ao</p><p>historiador, no caso de usar um documento, indicar, o mais brevemente, sua</p><p>proveniência, ou seja, o meio de encontrá-lo equivale, sem mais, a se submeter a uma</p><p>regra univer-</p><p>19 ]boa consciência da[</p><p>20 ]ir[</p><p>A crítica 95</p><p>sal de probidade21. [Envenenada de dogmas e de mitos, nossa opinião, mesmo a menos</p><p>inimiga das luzes, perdeu até o gosto do controle. No dia em que, tomando cuidado,</p><p>primeiramente, para não repeli-la por um inútil pedantismo, conseguirmos persuadi-la a</p><p>estimar o valor de um conhecimento por sua solicitude em oferecer o pescoço,</p><p>previamente, à refutação, as forças da razão terão obtido uma de suas maiores vitórias. É</p><p>no sentido de prepará-la que trabalham nossas humildes notas, nossas pequenas e</p><p>minuciosas referências, de que tantos espíritos ilustrados zombam atualmente.]</p><p>Os documentos manejados pelos primeiros eruditos eram, no mais das vezes,</p><p>escritos que se apresentavam por si só ou que eram apresentados, tradicionalmente,</p><p>como de um autor ou época dados; que contavam deliberadamente estes ou aqueles</p><p>acontecimentos. Diziam a verdade? Os livros qualificados de "mosaicos" são realmente</p><p>de Moisés? [E de Clóvis, os diplomas que trazem seu nome?] O que valem os relatos do</p><p>Êxodo?. Aí reside o problema. Mas, à medida que a história foi levada a fazer dos</p><p>testemunhos involuntários um uso cada vez mais frequente, ela deixou de se limitar a</p><p>ponderar as afirmações [explícitas] dos documentos. Foi-lhe necessário também</p><p>extorquir as informações que eles não tencionavam fornecer. [Ora] as regras críticas, que</p><p>haviam mostrado sua validade no primeiro caso, mostraram-se igualmente eficazes no</p><p>segundo. Tenho, sob meus olhos, um lote de documentos medievais. Alguns estão</p><p>datados. Outros, não. Ali onde figura a indicação, será preciso verificá-la: pois a</p><p>experiência prova que pode ser mentirosa. Está faltando? Ê importante restabelecê-la.</p><p>Os mesmos meios irão servir para ambos os casos. Pela escrita (caso se trate de um</p><p>original), pelo estado da latinidade, pelas instituições às quais faz alusão e o aspecto geral</p><p>do dispositivo, suponhamos que determinado ato corresponde aos costumes facilmente</p><p>reconhecíveis dos notários franceses, por volta do ano mil. Caso se apresente como da</p><p>época merovíngia, eis a fraude denunciada. Está sem data? Ei-la aproximativamente</p><p>fixada. Do mesmo modo, o arqueólogo, que, ao se propor classificar por períodos e por</p><p>civilizações artefatos pré-históricos ou rastrear falsas antiguidades, examina, aproxima,</p><p>distingue as formas ou os procedimentos de fabricação, segundo regras, das duas partes,</p><p>essencialmente similares22. [O historiador não é, é cada vez me-</p><p>21 ]Tenho, neste momento, ao meu lado, um livro interessantíssimo, sobre a Alemanha</p><p>antes da Reforma.... Assim como um químico que, ao anunciar uma descoberta, se</p><p>recusasse a expor a experiência que o levou até ela, pois, diria, "isso aborreceria meu</p><p>leitor". Várias afirmações me surpreendem. Sem razão, talvez. Gostaria de verificar isso.</p><p>Não posso fazê-lo, nem ninguém, pois nenhuma indicação me permite voltar à fonte.[</p><p>22 A passagem que vai de "tenho, sob meus olhos, ... expansão" substitui: ]um cartulário</p><p>da Idade Média. Certos documentos são providos de indicações cronológicas que eu</p><p>deveria controlar: pois encontram-se talvez entre elas algumas mentirosas. ... Para</p><p>classificar, por período e civilização, as ferramentas dos homens pré-históricos —</p><p>classificação que só ela permitirá interpretar esses indícios mudos —, os procedimentos</p><p>não são sensivelmente diferentes daqueles de um perito chamado a rastrear, por</p><p>exemplo, as inumeráveis fabricações que o comércio das antiguidades egípcias jogam</p><p>todo ano no mercado. [</p><p>96 Apologia da história</p><p>nos, esse juiz um pouco rabugento cuja imagem desabonadora, se não tomarmos</p><p>cuidado, é facilmente imposta por certos manuais introdutórios. Não se tornou,</p><p>certamente, crédulo. Sabe que suas testemunhas podem se enganar ou mentir. Mas, antes</p><p>de tudo, preocupa-se em fazê-las falar, para compreendê-las. É uma das marcas mais</p><p>belas do método crítico ter sido capaz, sem em nada modificar seus primeiros princípios,</p><p>de continuar a guiar a pesquisa nessa ampliação.</p><p>Haveria, no entanto, má vontade em negá-lo: o testemunho ruim não apenas foi o</p><p>estimulante que gerou os primeiros esforços de uma técnica de verdade. Resta o caso</p><p>simples de que esta, para desenvolver suas análises, deve necessariamente partir.]</p><p>2. Em busca da mentira e do erro</p><p>De todos os venenos capazes de viciar o testemunho, o mais virulento é a</p><p>impostura23.</p><p>Esta [por sua vez] pode assumir duas formas. Em primeiro lugar, o embuste sobre</p><p>autor e data: a falsificação, no sentido jurídico do termo. Todas as cartas publicadas sob</p><p>a assinatura de Maria Antonieta não foram escritas por ela: acontece que foram</p><p>fabricadas no século XIX. Vendida ao Louvre como Antiguidade cito-grega, do século</p><p>IV antes de nossa era, a tiara dita de Saitafernes foi cinzelada, cerca de 1895, em Odessa.</p><p>Vem em seguida o embuste sobre o conteúdo. César, em seus Comentários, cuja</p><p>paternidade não lhe poderia ser contestada, deliberadamente deformou muito, omitiu</p><p>muito. A estátua que se exibe em Saint-Denis como representando Filipe o Audaz é de</p><p>fato a figura funerária desse rei, tal como foi executada pouco depois de sua morte; mas</p><p>tudo indica que o escultor se limitou a reproduzir um modelo convencional, que de</p><p>retrato tem apenas o nome24.</p><p>Ora, esses dois aspectos da mentira levantam problemas bem distintos, cujas</p><p>soluções não dependem uma da outra.</p><p>A maioria dos escritos assinados com um nome suposto mente com certeza</p><p>também pelo conteúdo25. Um pretenso diploma de Carlos Magno revela-se, ao</p><p>23 Esta frase substitui três frases bem diferentes.</p><p>24 A passagem correspondente é bem diferente na primeira redação.</p><p>25 ]A fraude, em geral, tem outra razão de ser? A história contemporânea forneceu o</p><p>exemplo de uma falsificação que alguns se vangloriavam em considerar "patriótica"; não</p><p>era nada patriótica e os fatos que pretendia relatar afastavam-se radicalmente da</p><p>verdade.[</p><p>A critica 97</p><p>exame, como forjado dois ou três séculos mais tarde? Pode-se apostar mesmo que as</p><p>generosidades com as quais qualifica a honra ao imperador foram igualmente inventadas.</p><p>Porém, nem isso poderia ser admitido previamente. [Pois] certos atos foram fabricados</p><p>com o único fim de repetir as disposições de peças perfeitamente autênticas, que haviam</p><p>sido perdidas. [Excepcionalmente, uma falsificação pode dizer a verdade.]</p><p>Deveria ser supérfluo lembrar que, inversamente, os testemunhos mais</p><p>insuspeitos em sua proveniência declarada não são, necessariamente, por isso,</p><p>testemunhos verídicos26. Mas antes de aceitar uma peça como autêntica, os eruditos se</p><p>empenharam tanto em pesá-la em suas balanças que depois nem sempre têm o</p><p>estoicismo de criticar suas afirmações. A dúvida, em particular, hesita facilmente diante</p><p>dos escritos que se apresentam ao abrigo de garantias jurídicas impressionantes: atos do</p><p>poder ou contratos privados, por pouco que estes últimos tenham sido solenemente</p><p>validados. Nem uns nem outros são contudo dignos de muito respeito27. Em 21 de abril</p><p>de 1834, antes do processo das Sociedades Secretas, Thiers escrevia ao prefeito do</p><p>Baixo-Reno28: "Recomendo-vos dedicar o maior cuidado em fornecer vossa contribuição</p><p>de documentos para o grande processo em vias de se instruir29. O que importa bem</p><p>esclarecer é a correspondência de todos os anarquistas; é a íntima conexão dos</p><p>acontecimentos de Paris, Lyon, Estrasburgo; é, em suma, a existência de um vasto</p><p>complô envolvendo a França inteira." Aqui está incontestavelmente uma documentação</p><p>oficial bem-preparada. Quanto à miragem das cartas devidamente lacradas, devidamente</p><p>datadas, a menor experiência do presente basta para dissipá-la. Ninguém ignora: os atos</p><p>lavrados em cartório regularmente pululam de inexatidões voluntárias30, e lembro-me31</p><p>de já ter no passado pré-datado, por ordem de alguém, minha assinatura</p><p>26 ]É preciso insistir nessa regra de bom senso. Pois, por banal que possa parecer, ela</p><p>nem sempre foi exatamente aplicada. Não é a opinião que convém incriminar aqui. A</p><p>época não permite mais que incutamos esta máxima aos simples: "Está no jornal.</p><p>Portanto, é verdade." As propagandas, por seus abusos, destroem-se a si próprias. Em</p><p>nossos dias, as notícias da imprensa, assim como as das publicações oficiais, encontram</p><p>nas massas uma incredulidade de princípio que, para a higiene mental do país, não se</p><p>mostra muito menos carregada de perigos do que a cega credulidade de outrora: a supor,</p><p>pelo menos, que esta tenha sido tão generalizada como se acredita. [</p><p>27 Esta passagem começando aqui por "Mas antes de aceitar uma peça como autêntica,</p><p>os eruditos..." substitui quatro frases bem diferentes.</p><p>28 ]nestes termos[</p><p>29 ]junto à Câmara de Paris[</p><p>30 ]grandes ou pequenas[</p><p>31 ]pessoalmente[</p><p>98 Apologia da história</p><p>embaixo de um auto requerido por uma das grandes administrações do Estado32. Neste</p><p>aspecto, nossos pais não eram mais escrupulosos33. "Ocorrido em tal dia, em tal lugar"</p><p>lemos embaixo dos diplomas reais. Mas consultem os relatórios de viagem do soberano.</p><p>Verão mais de uma vez que, no citado dia, ele passava na verdade uma temporada a</p><p>muitas léguas dali. Inumeráveis atos de alforria de servos, que ninguém pensaria, em sã</p><p>consciência, tachar de falsos, afirmam-se concedidos por pura caridade, ao passo que</p><p>podemos colocar</p><p>certezas". Torturado pela Gestapo, e depois fuzilado em 16 de julho de</p><p>1944 em Saint Didier de Formans, perto de Lyon, por causa de sua participação na</p><p>Resistência francesa, Bloch deixou com essa obra um legado e como que desdenhou</p><p>daqueles que deram fim à sua vida.</p><p>Como escreveu nesse seu último livro, "os historiadores são obrigados a refletir</p><p>sobre hesitações e arrependimentos". Se isso tudo é verdade, dessa vez Bloch não falou</p><p>em causa própria. Poucas vezes hesitou e pouco teve para se arrepender ou lamentar.</p><p>Foi sobretudo um homem de seu tempo quando se engajou nas causas que se</p><p>apresentavam bem diante de seus olhos, mas esteve à frente de todos quando não</p><p>permitiu que os males do momento contaminassem sua capacidade de reflexão. Seu</p><p>ensaio que restou sem final, como quem nada quer, era antes a prova de que os eventos</p><p>passam, mas os grandes pensadores ficam e se perpetuam.</p><p>Nada como reproduzir a nota humilde, deixada por Bloch em um pé de página:</p><p>"Talvez não seja inútil acrescentar ainda uma palavra de desculpas; as circunstâncias de</p><p>minha vida atual, a impossibilidade em que me encontro de ter acesso a uma biblioteca, a</p><p>perda de meus próprios livros fazem com que deva me fiar bastante em minhas notas e</p><p>em minha memória. As leituras complementares, as verificações exigidas pelas próprias</p><p>leis do ofício cujas práticas me proponho a descrever permanecem para mim</p><p>frequentemente proibidas. Será que um dia poderei preencher essas lacunas? Nunca</p><p>inteiramente, receio. Só posso, sobre isso, solicitar a indulgência, diria assumir a culpa, se</p><p>isso não fosse assumir, mais do que seria legítimo, as culpas do destino."</p><p>O destino não quis, e a culpa de Bloch é antes a culpa de cada um de nós. O final</p><p>abrupto do livro, surge quase como um constrangedor silêncio. Mais do que a falta de</p><p>notas e referências — que antes sinalizam a extrema erudição do historiador -, fica a</p><p>ausência gritante de um ponto final. Dizia Bloch: "causas não são postuladas, são</p><p>buscadas" e assim o texto se cala, por mais que o leitor, angustiado com esse término</p><p>inesperado, tente ler nas entrelinhas ou em algum outro sinal que ficou sem querer ficar.</p><p>"Causas não devem ser postuladas" assim como não se explicam a violência da guerra e</p><p>os radicalismos cometidos em nome dela. Mesmo</p><p>12 Apologia da história</p><p>nesses contextos extremos, em que a realidade se torna mais do que confusa, inomeável,</p><p>Bloch defendeu a autonomia da reflexão e a idéia de que a responsabilidade e a</p><p>necessária militância não eram sinônimos de fórmulas acabadas e índices milagrosos.</p><p>Dizem que os bons pensadores sobrevivem às suas obras; nesse caso o provérbio</p><p>é literalmente verdadeiro.</p><p>LILIA MORITZ SCHWARCZ Depto. de Antropologia, USP</p><p>Esta obra é dedicada à Associação Marc Bloch, criada em 1992-3), presidida por</p><p>Emmanuel Leroy-Ladurie, professor no Collège de France, na esperança de</p><p>corresponder a um dos objetivos da associação: "estimular a edição e a difusão das obras</p><p>já publicadas de Marc Bloch e também as ainda inéditas."</p><p>Prefácio</p><p>Devemos comemorar a publicação dessa nova edição da obra póstuma e</p><p>inacabada de Marc Bloch, Apologia da história ou O ofício de historiador, anotada por</p><p>seu filho primogênito Étienne Bloch.</p><p>Sabemos que o grande historiador — co-fundador, em 1929, da revista Annales</p><p>(então intitulada Annales d'Histoire Économique et Sociale e atualmente Annales</p><p>Êconomies, Sociétés, Civilisations), que havia sido obrigado a se esconder, pois era</p><p>judeu, sob o regime de Vichy — entrou em 1943 na rede Franc-Tireur de la Résistance</p><p>em Lyon, tendo sido fuzilado pelos alemães em 16 de junho de 1944 nos arredores desta</p><p>cidade. Foi uma das vítimas de Klaus Barbie.</p><p>Marc Bloch deixava inacabado em seus papéis um trabalho de metodologia</p><p>histórica composto no final de sua vida, intitulado Apologie de l'histoire, o qual foi</p><p>finalmente publicado em 1949 por Lucien Febvre sob o título Apologie de l'histoire ou</p><p>Métier d'historien.</p><p>* * *</p><p>Não farei aqui um estudo sistemático do texto confrontando-o com a obra</p><p>anterior de Marc Bloch, publicada ou ainda inédita em 1944. Será contudo importante</p><p>avaliar se Apologia da história traduz essencialmente a conformação da metodologia</p><p>aplicada por Marc Bloch em sua obra ou se marca uma etapa nova de sua reflexão e de</p><p>seus projetos.</p><p>Deixarei de lado, portanto, o estudo, que exigiria uma pesquisa de fôlego, sobre</p><p>uma comparação entre esse texto e outros textos metodológicos do final do século XIX</p><p>e da primeira metade do século XX, em particular sobre a oposição entre esse texto e a</p><p>célebre Introdução aos estudos históricos de Langlois e Seignobos (1901), que o próprio</p><p>Marc Bloch considera, como demonstra a nota 1 de seu manuscrito (ver nota à p.41), um</p><p>horror, apesar da homenagem que presta a esses dois historiadores, que foram seus</p><p>professores. Nada de surpreendente nisso, pois os Annales são, desde sua criação,</p><p>apresentados como o órgão de um combate contra a concepção da história definida por</p><p>Langlois e Seignobos.</p><p>15</p><p>16 Apologia da história</p><p>Esforçando-me por ser o discípulo póstumo — já que infelizmente não pude</p><p>conhecer Marc Bloch — desse grande historiador, cuja obra e idéias foram para mim, e</p><p>continuam sendo, as mais importantes em minha formação e minha prática de</p><p>historiador, e honrado por ter me tornado em 1969 — graças a Fernand Braudel, grande</p><p>herdeiro de Lucien Febvre e de Marc Bloch — co-diretor dos Annales, tentarei</p><p>simplesmente, nas páginas que vão se seguir, exprimir as reações de um historiador de</p><p>hoje, um historiador que se situa na tradição de Marc Bloch e dos Annales e que se</p><p>empenha em praticar, no que lhes diz respeito, a fidelidade definida por este último ao</p><p>assinalar, na nota evocada acima, que a fidelidade não exclui a crítica. Minha intenção é</p><p>tentar dizer o que significava esse texto no contexto geral da historiografia, em particular</p><p>da historiografia francesa em 1944, e o que ainda significa atualmente.</p><p>O título e o subtítulo Apologia da história ou Como e por que trabalha um</p><p>historiador exprimem bem as intenções de Marc Bloch. Essa obra é em primeiro lugar</p><p>uma defesa da história. Essa defesa se exerce contra ataques explícitos por ele evocados</p><p>na obra, em especial os de Paul Valéry, mas também contra a evolução real ou possível</p><p>de um conhecimento científico do qual a história seria repelida para as margens ou até</p><p>excluída. Pode-se também pensar que Marc Bloch pretende defendê-la contra os</p><p>historiadores, que, a seu ver, acreditam a ela servir, mas a prejudicam. Enfim, e é, acho,</p><p>um dos pontos fortes da obra, ele faz questão de marcar as distâncias do historiador em</p><p>relação a sociólogos ou economistas cujo pensamento lhe interessa, mas onde enxerga</p><p>também perigos para a disciplina histórica. Será, veremos, o caso de Émile Durkheim ou</p><p>de François Simiand.</p><p>O subtítulo definitivo, O ofício de historiador, que substituirá pertinentemente o</p><p>primeiro subtítulo, ressalta outra preocupação de Marc Bloch: definir o historiador como</p><p>um homem de ofício, investigar suas práticas de trabalho e seus objetivos científicos e,</p><p>como veremos, inclusive para além da própria ciência.</p><p>O que o título não diz, mas o texto sim, é que Marc Bloch não se contenta em</p><p>definir a história e o ofício de historiador, mas quer também assinalar o que deve ser a</p><p>história e como deve trabalhar o historiador.</p><p>* * *</p><p>Antes de resumir minha leitura do texto de Marc Bloch, gostaria de destacar a</p><p>extraordinária capacidade desse historiador de transformar seu presente vivido em</p><p>reflexão histórica. Sabemos que esse grande dom se exprimirá sobretudo na redação de</p><p>L'Étrange défaite, provavelmente o estudo mais perspicaz realizado até</p><p>Prefácio 17</p><p>hoje sobre causas e aspectos da derrota francesa de 1940. Marc Bloch refletiu sobre o</p><p>acontecimento no calor da hora e o analisou praticamente sem dispor de qualquer</p><p>arquivo, qualquer documentação a princípio necessária ao historiador; fez entretanto</p><p>obra</p><p>diante deles a fatura da liberdade.</p><p>[Mas] não basta constatar o embuste. Ê preciso também descobrir seus motivos.</p><p>Mesmo que, a princípio, para melhor rastreá-lo. Enquanto subsistir uma dúvida sobre</p><p>suas origens, ele permanecerá em si mesmo algo de rebelde à análise; por conseguinte, de</p><p>apenas até semi-comprovado. Acima de tudo, uma mentira enquanto tal é34, a seu modo,</p><p>um testemunho35. Provar, sem mais, que o célebre diploma de Carlos Magno para a</p><p>igreja de Aix-la-Chapelle não é autêntico é poupar-se um erro; não é adquirir um</p><p>conhecimento36. Conseguiremos, em contrapartida, determinar que a falsificação foi</p><p>composta pelos círculos de Frederico Barba-Ruiva? Que iria, por todos os motivos,</p><p>servir aos grandes sonhos imperiais? Uma nova visão se abre para vastas perspectivas</p><p>históricas. Eis portanto a crítica levada a buscar, por trás da impostura, o impostor; ou</p><p>seja, conforme à própria divisa da história, o homem.</p><p>Seria pueril pretender enumerar, em sua infinita variedade, as razões que podem</p><p>levar alguém a mentir. Mas os historiadores, naturalmente levados a intelectualizar em</p><p>excesso a humanidade, agirão sensatamente ao lembrar que todas essas razões não são</p><p>sensatas. Em certos seres humanos, a mentira, embora em geral associada, aí também, a</p><p>um complexo de vaidade ou de recalcamento, torna-se quase, segundo a terminologia de</p><p>André Gide, um "ato gratuito". O cientista alemão que mourejou para redigir, em</p><p>excelente grego, a história oriental, cuja paternidade atribuiu ao fictício Sanchoniathon,</p><p>teria adquirido facilmente, a um custo menor, uma estimável reputação de helenista.</p><p>Filho de um membro do</p><p>32 Na primeira redação esta frase era bem mais concretamente desenvolvida: ]Lembro-</p><p>me de pessoalmente já haver subscrito, bem a posteriori, um auto instalado em um liceu</p><p>de província, datado de um dia em que — com conhecimento das autoridades, que, a</p><p>fim de evitar uma ridícula dificuldade administrativa, me ordenaram essa assinatura — eu</p><p>me encontrava retido em Paris, por motivo de doença. [</p><p>33 ]do que nós[</p><p>34 ]também[</p><p>35 ]exprime uma mentalidade; informa sobre as circunstâncias que a inspiraram[</p><p>36 ] positivo [</p><p>A crítica — 99</p><p>Instituto, ele próprio, mais tarde, convocado a se sentar nessa honorável companhia,</p><p>François Lenormant ingressou na carreira, aos 17 anos, mistificando seu próprio pai com</p><p>a falsa descoberta das inscrições de La Chapelle-Saint-Éloi, inteiramente fabricadas por</p><p>suas mãos; [já velho e cercado de honrarias] seu último golpe de mestre foi, dizem,</p><p>publicar, como originárias da Grécia, algumas [banais] antiguidades pré-históricas que ele</p><p>simplesmente recolhera na campagne francesa37.</p><p>Ora, do mesmo modo que indivíduos, existiram épocas mitômanas. Tais como,</p><p>por volta do final do século XVIII e início do XIX, as gerações pré-românticas e</p><p>românticas. Poemas [pseudo-celtas] atribuídos a Ossian; [epopéias, baladas que</p><p>Chatterton imaginou escrever em inglês arcaico;] poesias pretensamente medievais de</p><p>Clotilde de Surville; cantos bretões imaginados por Villemarqué; cantos supostamente</p><p>traduzidos do croata por Mérimée; cantos heróicos tchecos38 de Kravoli-Dvor39 — e</p><p>assim por diante: é,40 de uma extremidade a outra da Europa, durante essas décadas,</p><p>como uma vasta sinfonia de fraudes. A Idade Média41, sobretudo do século VIII ao XII,</p><p>apresenta um outro exemplo dessa epidemia coletiva. Decerto, a maioria dos falsos</p><p>diplomas, dos falsos decretos pontificais, das falsas capitulares,42 então forjados em tão</p><p>grande número, o foi por interesse. Assegurar a uma igreja um bem contestado, apoiar a</p><p>autoridade da Sé romana, defender os monges contra o bispo, os bispos contra os</p><p>metropolitanos, o papa contra os soberanos temporais, o imperador contra o papa [: os</p><p>falsários não enxergavam mais longe]. O fato característico não deixa de ser que</p><p>personagens de uma piedade e, não raro, de uma virtude incontestáveis não hesitavam</p><p>em lançar mão desses embustes. Visivelmente, não ofuscavam a moralidade comum.</p><p>Quanto ao plágio43, parecia [universalmente], nessa época44, o ato mais inocente do</p><p>mundo: o analista, o hagiógrafo apropriavam-se sem remorsos, em passagens inteiras,</p><p>dos escritos de autores mais antigos. [Nada menos "futurista" porém, do que essas duas</p><p>sociedade, além do mais de tipo tão diferente.] Em sua fé como em seu direito, a Idade</p><p>Média não conhecia outro fundamento senão a lição de seus ancestrais. O romantismo</p><p>desejava beber na fonte viva tanto do primitivo como</p><p>37 ]. O curioso é que o gosto da mentira assume às vezes o aspecto de uma verdadeira</p><p>epidemia coletiva [</p><p>38 ]do manuscrito[</p><p>39 ]; crônica inglesa do pseudo-Ingulph; comentário sobre o "sítio da Bretanha",</p><p>atribuído ao pseudo-Richard de Circencesterf</p><p>40 ] quase [</p><p>41 ](já tive oportunidade de assinalar)[</p><p>42 ]que vemos[</p><p>43 ]propriamente dito[</p><p>44 ], como devia parecer por muito tempo ainda [</p><p>100 Apologia da história</p><p>do popular. Assim, os períodos mais ligados à tradição foram também os que45 tomaram</p><p>mais liberdades com sua herança precisa. Como se, por uma singular revanche de uma</p><p>irresistível necessidade de criação, à força de venerar o passado, naturalmente se fosse</p><p>levado a inventá-lo.</p><p>No mês de julho de 1857, o matemático Michel Chasles comunicou à Academia</p><p>das Ciências a existência de todo um lote de cartas inéditas de Pascal, que lhe foram</p><p>vendidas por seu fornecedor habitual, o ilustre falsário Vrain-Lucas. Resultava daí que o</p><p>autor das Provinciales havia formulado, antes de Newton, o princípio da atração</p><p>universal. Um cientista inglês se surpreendeu. Como explicar, dizia em substância46, que</p><p>esses textos estejam a par de medidas astronômicas efetua-das47 muitos anos depois da</p><p>morte de Pascal e das quais o próprio Newton só teve conhecimento uma vez48</p><p>publicadas as primeiras edições de sua obra? Vrain-Lucas não era homem de se</p><p>constranger por tão pouco. [Voltou para sua mesa de trabalho; e] logo, novamente</p><p>abastecido por ele49, Chasles pôde produzir novos autógrafos. Como assinatura tinham,</p><p>dessa vez, Galileu; como destinatário, Pascal. Assim, o enigma estava esclarecido: o</p><p>ilustre astrónomo fornecera as observações; Pascal, os cálculos. Tudo, de ambas as</p><p>partes, sigilosamente. Ê verdade: Pascal, por ocasião da morte de Galileu, tinha apenas</p><p>18 anos. O quê! Era apenas uma razão a mais para se admirar a precocidade de seu</p><p>gênio.</p><p>Eis, no entanto, observou o infatigável objetor, uma outra estranheza: em uma</p><p>dessas cartas, datadas de 1641, vemos Galileu queixar-se de só escrever ao preço de</p><p>muito cansaço para seus olhos. Ora, não sabemos50 que, a partir do final [ano] de 1637,</p><p>ele estava, na realidade, complemente cego? Perdão, replicou pouco depois o bom</p><p>Chasles, todos acreditaram, concordo, nessa cegueira [até aqui]. Muito erradamente.</p><p>Pois, surgida oportunamente para confundir o erro comum, posso, agora, lançar nos</p><p>debates uma peça decisiva. Um outro cientista italiano dava a conhecer a Pascal, em 2 de</p><p>dezembro de 1641: nessa data, Galileu, cuja vista sem dúvida já vinha se enfraquecendo</p><p>há vários anos, acabava justamente de a perder por inteiro51...</p><p>Nem todos os impostores, certamente, exibiram tanta fecundidade quanto</p><p>45 ], por razões aliás diferentes, [</p><p>46 ], esse desmancha-prazeres [</p><p>47 ]apenas[</p><p>48 ]já[</p><p>49 [esse corajoso trabalhador[</p><p>50 ], no entanto, da fonte mais segura[</p><p>51 [alguns dias antes[</p><p>A crítica — 101</p><p>Vrain-Lucas52; nem todos os tolos, a candura de sua lamentável vítima. Mas que o insulto</p><p>à verdade seja uma engrenagem, que toda mentira arraste53 forçosamente com ela, em</p><p>sua esteira, muitas outras, chamadas a se proporcionar, ao menos aparentemente, um</p><p>mútuo apoio, a experiência da vida ensina e a da história o confirma. Eis por que tantas</p><p>falsificações célebres se apresentam em cachos.54 Falsos privilégios da Sé de Canterbury,</p><p>falsos privilégios do ducado de Áustria [— subscritos por tantos grandes soberanos, de</p><p>Júlio César a Frederico Barba-Ruiva —], falsificações, na árvore genealógica,</p><p>do caso</p><p>Dreyfus [: parece (e só quis citar alguns exemplos) que estamos vendo uma disseminação</p><p>de colônias microbianas]. A fraude, por natureza, engendra a fraude.</p><p>Há, enfim, uma forma55 mais insidiosa do embuste. Em lugar da contra-verdade</p><p>brutal, [plena e, se me permitem, franca,] há a soturna manipulação: interpolações em</p><p>documentos autênticos; na narração, acréscimos sobre um fundo toscamente verídico,</p><p>detalhes inventados. [Interpola-se, geralmente, por interesse. Acrescenta-se, com</p><p>frequência, para enfeitar.] As devastações que uma estética falaciosa exerceu sobre a</p><p>historiografia antiga ou medieval foram com frequência denunciadas. Sua parte talvez</p><p>não seja muito menor em nossa imprensa. Mesmo às custas da veracidade, o mais</p><p>modesto romancista instala de bom grado seus personagens segundo as convenções de</p><p>uma retórica cuja idade não consumiu o prestígio àquela época e, em nossas salas de</p><p>redação, Aristóteles e Quintiliano contam mais discípulos do que em geral se acredita.</p><p>Inclusive certas condições técnicas parecem favorecer essas deformações. Quando</p><p>o espião Bolo foi condenado em 1917, um diário, dizem, publicou, a partir de 6 de abril,</p><p>o relato da execução. Primeiro fixada, de fato, para essa data, ela só teve56 lugar57</p><p>[realmente] onze dias mais tarde. O jornalista estabelecera seu "papel" previamente;</p><p>convencido de que o evento se daria no dia previsto, julgou inútil verificar. Não sei o</p><p>que vale o episódio. Certamente erros tão crassos são excepcionais. Mas nada há de</p><p>inverossímil em supor que, para andar mais rápido — pois antes de tudo é preciso que a</p><p>edição saia a tempo —, as reportagens de cenas esperadas sejam às vezes preparadas</p><p>antes da hora. Quase sempre, estejamos certos, o rascunho, depois da observação, será</p><p>modificado [, caso haja necessidade,] em todos os pontos importantes; duvida-se, em</p><p>contrapartida, que muitos</p><p>52 ] (cujas contribuições ao dossiê, espantosamente abundante, do caso Pascal-Newton,</p><p>fui obrigado, para não cansar o leitor, a abreviar um pouco) [</p><p>53 ]quase[</p><p>54 ] Tais como[</p><p>55 ] particular [</p><p>56 ]no entanto [</p><p>57 ], depois de um sursis[</p><p>102 Apologia da história</p><p>retoques sejam feitos nos traços58 acessórios, julgados necessários para dar cor e os quais</p><p>ninguém pensa em controlar. Pelo menos, é o que um leigo acredita entrever.</p><p>Gostaríamos que um homem de ofício nos fornecesse, quanto a isso, luzes sinceras59. O</p><p>jornal [, infelizmente,] ainda não encontrou seu Mabillon ou seu Paper-broeck. [O que é</p><p>certo é que a obediência a um código, um pouco em desuso, de bom gosto literário, o</p><p>respeito a uma psicologia estereotipada, a febre do pitoresco não estão próximos de</p><p>perder seu lugar na galáxia dos geradores de mentiras.]</p><p>Do puro e simples fingimento até o erro inteiramente involuntário, há muitos</p><p>níveis. Quando mais não fosse, em razão da fácil metamorfose pela qual a patranha</p><p>[mais] sincera se transforma, com a colaboração das circunstâncias, em mentira. Inventar</p><p>supõe um esforço que a preguiça de espírito comum à maioria dos homens repele. Quão</p><p>mais cômodo aceitar complacentemente60 uma ilusão, originalmente espontânea, que</p><p>lisonjeie o interesse do momento!</p><p>Vejam o célebre episódio do "avião de Nuremberg". Ainda que a questão jamais</p><p>tenha sido perfeitamente esclarecida, parece de fato que um avião comercial francês</p><p>sobrevoou a cidade poucos dias antes da declaração de guerra. É provável que o tenham</p><p>tomado por um avião militar. Não é inverossímil que, em uma população já presa dos</p><p>fantasmas da escaramuça próxima, o rumor tenha se espalhado como bombas jogadas</p><p>aqui e ali. É certo porém que nenhuma delas foi lançada; que os governantes do Império</p><p>alemão possuíam todos os meios de reduzir esse falso rumor a nada; que, por</p><p>conseguinte, ao acolhê-lo sem controle, para dele fazer um motivo de guerra,</p><p>[propriamente] mentiram. Mas sem nada imaginar. Nem mesmo, talvez61, sem ter</p><p>[inicialmente] uma consciência muito clara de sua impostura. O absurdo rumor cresceu</p><p>porque era útil acreditar nele. De todos os tipos de mentira, aquela que se impinge a si</p><p>mesmo não está entre as menos62 frequentes e a palavra sinceridade envolve um conceito</p><p>um pouco tosco, que só poderia ser manipulado com a introdução de muitas nuances.</p><p>Não é menos verdade que muitas testemunhas se enganam com toda a boa-fé. Eis</p><p>portanto chegado o momento, para o historiador, de tirar proveito dos preciosos</p><p>resultados com que a observação sobre o vivo, há algumas décadas, vem armando</p><p>58 ]um pouco [</p><p>59 ]: um sincero estudo sobre as práticas da reportagem seria mais importante do que</p><p>qualquer outro para a prática da história contemporânea [</p><p>60 ]ou amplificar[</p><p>61 ], pelo menos dentre alguns deles,]</p><p>62 ]perigosas, nem mesmo entre as menos]</p><p>A crítica — 103</p><p>uma disciplina quase63 nova [: a psicologia do testemunho]. Na medida em que interessa</p><p>a nossos estudos, essas aquisições parecem ser, no essencial, as seguintes.</p><p>[A se acreditar em] Guillaume de Saint-Thierry, seu discípulo e amigo, são</p><p>Bernardo ficou um dia muito surpreso ao saber que a capela onde jovem monge seguia</p><p>cotidianamente os ofícios divinos abria-se, ao fundo da nave, em três janelas; sempre</p><p>imaginara que tinha apenas uma. Sobre essa característica64, o hagiógrafo, por sua vez, se</p><p>espanta e admira: que perfeito65 servo de Deus tal desprendimento das coisas da Terra</p><p>não pressagiava! Tudo indica que Bernardo devia sofrer de uma distração pouco comum,</p><p>considerando pelo menos, é verdade, como se conta também, que lhe acontecia margear</p><p>o Léman [durante] um dia inteiro sem percebê-lo. Numerosas provas, entretanto, o</p><p>atestam: para se enganar grosseiramente sobre realidades que deveriam, ao que tudo</p><p>indica, ser mais bem-conhecidas, de modo algum estar entre os príncipes da mística. Os</p><p>alunos do professor Claparède, em Genebra, mostraram-se, durante experiências</p><p>célebres, tão incapazes de descrever corretamente o vestíbulo de sua universidade</p><p>quanto o Doutor "da palavra de mel" a igreja de seu mosteiro. [A verdade é que,] na</p><p>maioria dos cérebros, o mundo circundante só acha medíocres aparelhos gravadores.</p><p>Acrescentem que, sendo os testemunhos apenas a expressão de lembranças, os erros</p><p>primordiais da percepção arriscam-se sempre a complicarem-se graças a erros de</p><p>memória, dessa fluida, dessa "fecunda" memória já denunciada por um de nossos velhos</p><p>juristas66.</p><p>Em certos espíritos, a inexatidão assume aspectos verdadeiramente patológicos —</p><p>seria muito irreverente propor, para essa psicose, o nome de "doença de Lamartine"?</p><p>Todo mundo sabe: essas pessoas não são geralmente as menos prontas a afirmar algo.</p><p>Porém, se assim existem testemunhas mais ou menos suspeitas e seguras, a experiência</p><p>prova que não se encontra uma cujas palavras sejam igualmente dignas de fé sobre todos</p><p>os assuntos e todas as circunstâncias. Duas ordens de causa, principalmente, alteram,</p><p>[até] no homem mais dotado, a veracidade das imagens cerebrais. Algumas se dão na</p><p>condição momentânea do observador: são o cansaço, por exemplo, ou a emoção.</p><p>Outras, no nível de sua atenção.</p><p>63 ]toda[</p><p>64 ]e outras análogas[</p><p>65 A partir das palavras "uma população" (cf. p. precedente) e até "que perfeito", ao lado</p><p>do original, aqui reproduzido, comportando várias correções manuscritas, existe uma</p><p>folha, um carbono sem nenhuma correção manuscrita, numerada 111-14, cujo texto é</p><p>idêntico ao da primeira redação, mas que representa uma nova datilografia.</p><p>66 Pode-se comparar essa passagem com a exposição desses mesmos exemplos feita por</p><p>Marc Bloch em "Réflexions d'un historien sur les fausses nouvelles de la guerre", Revue</p><p>de Synthèse Historique, 1921, republicada na obra de March Bloch, Mélanges</p><p>historiques, t.I, p.42.</p><p>104 Apologia da história</p><p>Com poucas exceções, não se vê, não se ouve bem a não ser o que se esperava de fato</p><p>perceber. Um médico encontra-se na cabeceira de um doente: eu acreditaria nele mais</p><p>facilmente quanto ao aspecto de seu paciente, cujo comportamento examinou</p><p>com</p><p>cuidado, do que quanto aos móveis do quarto, ao qual provavelmente lançou apenas</p><p>olhares distraídos. Eis por que, a despeito de um preconceito bastante comum, os</p><p>objetos mais familiares — como, para são Bernardo, a capela de Citeaux — estão em</p><p>geral entre aqueles sobre os quais é mais difícil obter uma descrição correta: pois a</p><p>familiaridade traz, quase necessariamente, a indiferença.</p><p>Ora, muitos acontecimentos históricos só puderam ser observados em momentos</p><p>de violenta perturbação emotiva ou por testemunhas cuja atenção, ora solicitada tarde</p><p>demais, quando havia surpresa, ora retida pelas preocupações com a ação imediata67, era</p><p>incapaz de incidir com intensidade suficiente sobre as características às quais o</p><p>historiador, com68 razão, atribuiria atualmente um interesse preponderante. Certos casos</p><p>são célebres. O primeiro tiro que, em 25 de fevereiro de 1848, [em frente ao ministério</p><p>das Relações Exteriores,] desencadeou a rebelião da qual devia sair, por sua vez, a</p><p>Revolução, foi disparado da tropa? Ou da multidão? Nunca saberemos de fato.69 Como</p><p>então, por outro lado, levar a sério nos cronistas os grandes trechos descritivos, as</p><p>pinturas [minuciosas] dos costumes, dos gestos, das cerimônias, dos episódios</p><p>guerreiros? Através de qual rotina obstinada conservar a menor ilusão sobre a veracidade</p><p>de todo esse bricabraque, no qual se alimentava a arraia-miúda dos historiadores</p><p>românticos, ao passo que ao nosso redor sequer uma testemunha está em condições de</p><p>reter corretamente, em sua integralidade, os detalhes sobre os quais tão ingenuamente</p><p>foram interrogados os velhos autores? No máximo, esses quadros nos fornecem o</p><p>cenário das ações, tal como, na época do escritor, imaginava-se que devia ser. Isso é</p><p>extremamente instrutivo; não é o gênero de informações que os amantes do pitoresco</p><p>geralmente perguntam a suas fontes.</p><p>Convém perceber, entretanto, a que conclusões essas observações, talvez apenas</p><p>aparentemente pessimistas, levam nossos estudos daqui para frente. Elas não atingem a</p><p>estrutura elementar do passado. A afirmação de Bayle permanece correta. "Jamais se</p><p>objetará algo que esbarre nessa verdade de que César venceu Pompeu e, sobre qualquer</p><p>tipo de princípio que se queira ficar discutindo, não se encontrarão coisas mais</p><p>inabaláveis do que esta proposição: 'César e Pompeu existiram e não foram uma mera</p><p>modificação da alma daqueles que escreveram</p><p>67 ]ou com a segurança [</p><p>68 ]justa[</p><p>69 ]Tampouco a investigação judicial conseguiu determinar se, o .... em Cluses, o diretor</p><p>da fábrica fez uso de sua arma antes ou depois da chuva de pedras lançada pelos</p><p>grevistas.[</p><p>A crítica — 105</p><p>suas vidas'." É verdade: caso devessem subsistir, como confirmados, apenas alguns fatos</p><p>desse tipo, desprovidos de explicação, a história se reduziria a uma série de observações</p><p>toscas, sem grande valor intelectual. Felizmente, não é este o caso. As únicas causas que</p><p>a psicologia do testemunho atinge [assim] com uma frequente incerteza são os</p><p>antecedentes completamente imediatos. Um grande acontecimento pode ser comparado</p><p>a uma explosão. Sob que condições, exatamente, produz-se o último choque molecular,</p><p>indispensável à distensão dos gases? Frequentemente seremos obrigados a nos resignar a</p><p>ignorá-lo. O que é lamentável, sem dúvida (mas estão os químicos sempre melhor</p><p>colocados?). Isso em nada impede que a composição da mistura detonante permaneça</p><p>inteiramente suscetível de análise. Numerosos fatores, muito diversos e muito atuantes,</p><p>que desde logo um Tocqueville soube vislumbrar, haviam preparado há muito tempo a</p><p>revolução de 1848 — esse movimento tão claramente determinado, o qual, por uma</p><p>estranha aberração, certos historiadores acreditaram [poder] transformar em protótipo</p><p>do acontecimento fortuito. O fuzilamento do boulevard des Capucines foi outra coisa</p><p>senão a última pequena fagulha?</p><p>Do mesmo modo, veremos, essas causas próximas não escapam apenas, com</p><p>muita frequência, à observação de nossos fiadores, portanto à nossa. Em si mesmas,</p><p>constituem também a parte privilegiada do imprevisível, do "acaso", na história.</p><p>Podemos nos consolar, sem muita dificuldade, porque as enfermidades do testemunho</p><p>as dissimulam geralmente aos mais sutis de nossos instrumentos. Mesmo mais bem-</p><p>conhecidas, seu encontro com as grandes cadeias causais da evolução representaria o</p><p>resíduo de contingências que nossa ciência jamais conseguirá eliminar [, que ela não tem</p><p>o direito de pretender eliminar]. Quanto aos impulsos íntimos dos destinos humanos, às</p><p>vicissitudes da mentalidade ou da sensibilidade, das técnicas, da estrutura social ou</p><p>econômica, as testemunhas que interrogamos sobre isso não estão sujeitas às fragilidades</p><p>da percepção momentânea. [Por uma feliz coincidência, que Voltaire já entrevira,] o que</p><p>existe em história de mais profundo bem poderia ser também o que existe de mais</p><p>seguro.</p><p>Eminentemente variável de indivíduo para indivíduo, a faculdade de observação</p><p>tampouco é uma constante social. Certas épocas viram-se desprovidas dela mais que</p><p>outras. Por mais medíocre, por exemplo, que permaneça atualmente, para a maioria dos</p><p>homens, a apreciação dos números, ela não é tão universalmente falha quanto entre os</p><p>analistas medievais; nossa percepção, como nossa civilização, impregnou-se de</p><p>matemática. No entanto, se os erros do testemunho fossem determinados, em última</p><p>análise, apenas pelas fraquezas dos sentidos ou da atenção, o historiador só teria, em</p><p>suma, que entregar seu estudo ao psicólogo. Mas, para além desses pequenos acidentes</p><p>cerebrais, de natureza bastante comum, muitos deles remontam a causas muito mais</p><p>significativas de uma atmosfera</p><p>106 Apologia da história</p><p>social particular. Eis por que assumem, frequentemente, por sua vez [, como a mentira],</p><p>um valor documental.</p><p>No mês de setembro de 1917, o regimento de infantaria ao qual eu pertencia</p><p>detinha as trincheiras [do Chemin des Dames], ao norte da cidadezinha de Braisne.</p><p>Numa investida, fizemos um prisioneiro. Era um reservista, negociante de ofício e</p><p>oriundo de Bremen, às margens do Weser. Pouco depois, uma curiosa história nos</p><p>chegou da retaguarda das linhas. "A espionagem alemã", diziam, mais ou menos, esses</p><p>colegas bem-informados, "que maravilha! Tomamos um de seus pequenos postos, no</p><p>coração da França. Com que nos deparamos? Um comerciante estabelecido, durante a</p><p>paz, a alguns quilômetros dali: em Braisne." O disparate parece claro. Evitemos, porém,</p><p>fazer um apanhado tão simplista. Vão apontar, sem mais, um erro de audição? Seria, de</p><p>todo modo, exprimir-se bastante inexatamente. Pois, mais do que mal ouvido, o nome</p><p>verdadeiro havia sido, provavelmente mal compreendido: geralmente desconhecido, ele</p><p>não chamava atenção; por uma tendência natural do espírito, pensava-se captar em seu</p><p>lugar um nome familiar. Mas tem mais: nesse primeiro trabalho de interpretação, um</p><p>segundo, igualmente inconsciente, já se encontrava implicado. A imagem, não raro</p><p>verídica, das astúcias alemãs havia sido popularizada por incontáveis relatos70; lisonjeava</p><p>ao71 vivo a sensibilidade romanesca das massas. A substituição de Bremen por Braisne</p><p>harmonizava-se muito bem com essa obsessão de não se impor, de certo modo,</p><p>espontaneamente.72</p><p>[Ora,] tal é o caso de um grande número de deformações do testemunho. O erro,</p><p>quase sempre, é previamente orientado. Sobretudo, espalha-se, só ganha vida sob a</p><p>condição de se combinar com os partis pris da opinião comum; torna-se então [como] o</p><p>espelho em que a consciência coletiva contempla seus próprios traços. Muitas casas</p><p>belgas apresentam, em suas fachadas, estreitas aberturas, destinadas a facilitar aos</p><p>operários a colocação do reboco; nesses pequenos artifícios de pedreiros, os [soldados]</p><p>alemães, em 1914, jamais imaginaram ver tantas seteiras, preparadas por franco-</p><p>atiradores, se sua imaginação não houvesse sido alucinada, de longa data, pelo medo das</p><p>guerrilhas. As nuvens não mudaram de forma desde a Idade Média. Não percebemos73</p><p>mais, porém, nem cruz nem espada milagrosas. A cauda do cometa observada pelo</p><p>grande Ambroise Paré possivelmente não era nada diferente daquelas que varrem às</p><p>vezes nossos céus. Ele acreditou entretanto [aí] descobrir toda uma panóplia de armas</p><p>estranhas. A</p><p>70 ]; não era apenas espantosa [</p><p>71 ]mais[</p><p>72 Comparar esse § com a passagem correspondente em Mélanges historiques, p.53</p><p>(artigo citado, nota e, p.101).</p><p>73 ], aí,[</p><p>A crítica — 107</p><p>obediência ao preconceito universal triunfara sobre a habitual exatidão de seu olhar; e</p><p>seu testemunho [, como tantos outros,] informa não sobre o que ele viu na realidade,</p><p>mas sobre o que, em sua época, era estimado natural ver.</p><p>No entanto, para que o erro de uma testemunha torne-se o de muitos homens,</p><p>para que uma observação malfeita se metamorfoseie em falso rumor, é preciso também</p><p>que a situação da sociedade favoreça essa difusão. Nem todos os tipos sociais lhe são,</p><p>longe disso, igualmente propícios. Nesse aspecto, os extraordinários distúrbios da vida</p><p>coletiva que nossas gerações viveram constituem outras tantas admiráveis experiências.</p><p>As do momento presente, para dizer a verdade, estão muito próximas de nós para já</p><p>passarem por uma análise exata. A guerra de 1914-18 permite mais o recuo.</p><p>Todos sabem o quanto esses quatro anos mostraram-se fecundos em notícias</p><p>falsas. Sobretudo entre os combatentes. É na particularíssima sociedade das trincheiras</p><p>que a formação dessas notícias parece mais interessante de ser estudada.</p><p>O papel da propaganda e da censura foi, à sua maneira, considerável. Mas</p><p>exatamente o contrário74 do que os criadores dessas instituições esperavam delas75.</p><p>Como disse muito bem um humorista: "Prevalecia nas trincheiras a opinião de que tudo</p><p>podia ser verdade à exceção do que se deixava imprimir." Ninguém acreditava nos</p><p>jornais; tampouco nas cartas; pois, além de chegarem irregularmente, eram consideradas</p><p>muito vigiadas. Daí uma renovação prodigiosa da tradição oral, mãe antiga das lendas e</p><p>dos mitos. Num golpe audacioso, jamais sonhado pelo mais audacioso dos</p><p>experimentadores, os governos, abolindo os séculos decorridos, devolviam o soldado do</p><p>front aos meios de informação e ao estado de espírito dos tempos antigos, antes do</p><p>jornal, antes do informativo, antes do livro.</p><p>Não era, geralmente, na linha de fogo que os rumores nasciam. Para isso, os</p><p>pequenos grupos encontravam-se muito isolados uns dos outros. O soldado não tinha</p><p>direito algum de se deslocar sem ordem; só o fazia, aliás, o mais frequentemente com o</p><p>risco de sua vida. Em alguns momentos circulavam viajantes intermitentes: agentes de</p><p>ligação76, telefonistas consertando suas linhas, observadores de artilharia. Esses</p><p>personagens consideráveis frequentavam pouco o simples soldado. Mas existiam77</p><p>comunicações periódicas, muito mais importantes. Impunham-se pela preocupação com</p><p>a alimentação. A ágora desse pequeno mundo dos abrigos e dos postos de vigilância</p><p>foram as cozinhas. Ali, uma ou duas vezes por</p><p>74 ], a propósito,[</p><p>75 ]Já tive oportunidade de insistir acima sobre essa epidemia de ceticismo em relação ao</p><p>escrito [</p><p>76 ]de toda ordem [</p><p>77 ] também [</p><p>108 Apologia da história</p><p>dia, os abastecedores, vindos dos diversos pontos do setor, encontravam-se e</p><p>tagarelavam entre si ou com os cozinheiros. Estes sabiam muito pois, colocados na</p><p>encruzilhada de todas as unidades, tinham [além disso] o raro privilégio de</p><p>cotidianamente trocar algumas palavras com os condutores do trem regimental, homens</p><p>sortudos que acantonavam na vizinhança dos estados-maiores78. Assim, por um instante,</p><p>em torno das fogueiras sob pleno vento ou das unidades móveis, atavam-se, entre</p><p>círculos singularmente dessemelhantes, vínculos precários. Depois essas equipes</p><p>moviam-se através das pistas e trincheiras e levavam até a dianteira do front, com suas</p><p>marmitas, as informações, verdadeiras ou falsas, em todo caso quase sempre deformadas</p><p>e prontas então para uma nova elaboração. Nos mapas de orientação, um pouco atrás</p><p>dos riscos enlaçados desenhados pelas primeiras posições, podia-se cobrir com hachuras</p><p>uma faixa contínua: isso teria sido a zona de formação das lendas79.</p><p>Ora, a história conheceu mais de uma sociedade regida, em grande parte, por</p><p>condições análogas; com a diferença de que, em lugar de ser o efeito passageiro de uma</p><p>crise toda excepcional, elas ali representariam a trama normal da vida. Ali também, a</p><p>transmissão oral era praticamente a única eficaz. Ali também, entre elementos bastante</p><p>fragmentados, as ligações eram operadas quase exclusivamente por intermediários80</p><p>especializados ou em pontos de conexão definidos. Caixeiros-viajantes, jograis,</p><p>peregrinos, mendigos ocupavam o lugar do pequeno povo errante81 das comunicações</p><p>subterrâneas. Os encontros regulares davam-se nos mercados por ocasião das festas</p><p>religiosas. Assim, por exemplo, durante a alta Idade Média. Feitas a golpe de</p><p>interrogatórios, tendo os passantes como informantes, as crônicas monásticas se</p><p>parecem bastante com os mementos que nossos caporais ordinários poderiam ter</p><p>elaborado, se tivessem tido o gosto. Essas sociedades sempre foram, para as falsas</p><p>notícias, um excelente caldo de cultura. Relações frequentes entre os homens facilitam a</p><p>comparação entre os diversos relatos. Estimulam o senso crítico. Ao contrário, acredita-</p><p>se piamente no narrador que, a longos intervalos, traz, por caminhos difíceis, os rumores</p><p>de terras longínquas.82</p><p>78 ]e, às vezes mesmo, de aldeias ainda povoadas[</p><p>79 ]. Acrescentem, naturalmente, instrumentos de contatos mais distantes: os licenciados</p><p>em seu retorno. Todavia, o que eles traziam vinha do país dos civis, que passava também</p><p>por ser aquele da lavagem cerebral. Desconfiava-se muito disso[</p><p>80 ]de certo modo[</p><p>81 ]e intermitente[</p><p>82 ]Não é preciso, porém, forçar a aproximação. A guerra foi, sob muitos aspectos, uma</p><p>espantosa experiência de regressão. Mas uma regressão jamais é inteiramente completa, e</p><p>não se apaga, de uma só vez, a impressão de vários séculos de evolução mental. A</p><p>credulidade no falso rumor era grande entre a soldadesca de 1914-18. Era, me pareceu,</p><p>de bastante curta duração. Centrada, antes de tudo, como era natural, nos</p><p>acontecimentos que pareciam suscetíveis de afetar seu destino imediato — a troca de</p><p>guarda, a mudança de setor, o ataque próximo —, sua curiosidade não deixava por isso</p><p>de ser sensivelmente mais ampla, sua visão de mundo menos limitada ou menos lacunar</p><p>que a do povo medieval comum. O historiador, já o dissemos, não estuda o presente</p><p>com a esperança de nele descobrir a exata reprodução do passado. Busca nele</p><p>simplesmente os meios de melhor compreender, de melhor senti-lo. É do que as falsas</p><p>notícias da guerra dão, se não me engano, um exemplo muito bom.[</p><p>A crítica — 109</p><p>3. Tentativa de uma lógica do método crítico83</p><p>A crítica do testemunho, que trabalha sobre realidades psíquicas, permanecerá</p><p>sempre uma arte de sensibilidade. Não existe, para ela, nenhum livro de receitas. Mas é</p><p>também uma arte racional, que repousa na prática metódica de algumas grandes</p><p>operações do espírito. Tem, em suma, sua dialética própria, que convém deduzir.</p><p>Suponhamos que, de uma civilização desaparecida, subsista um único objeto; que,</p><p>além disso, as condições de sua descoberta impeçam até de relacioná-lo com</p><p>características alheias ao homem, tais como sedimentações geológicas (pois, nessa busca</p><p>das ligações, a natureza inanimada também pode ter sua participação). Será</p><p>completamente impossível tanto datar esse vestígio único como se pronunciar sobre sua</p><p>autenticidade. Só se estabelece, de fato, uma data, só se controla e, em suma, só se</p><p>interpreta um documento por sua inserção em uma série cronológica ou um conjunto</p><p>sincrônico. Foi aproximando os diplomas merovíngios seja entre si, seja de outros</p><p>textos, de época ou de natureza diferente, que Mabillon fundou a diplomática; foi da</p><p>confrontação dos relatos evangélicos que nasceu a exegese. Na base de quase toda a</p><p>crítica inscreve-se um trabalho de comparação.</p><p>Mas os resultados dessa comparação nada têm de automático. Necessariamente</p><p>acarretam ressaltar tanto semelhanças como diferenças. Ora, segundo o caso, a</p><p>concordância entre um testemunho e os testemunhos vizinhos pode impor conclusões</p><p>exatamente contrárias.</p><p>É preciso considerar em primeiro lugar o caso elementar do relato. Em suas</p><p>Memórias, que fizeram disparar tantos jovens corações, Marbot conta, com grande</p><p>abundância de detalhes, um rasgo de bravura do qual se apresenta como herói: a se</p><p>acreditar nele, teria, na noite de 7 para 8 de maio de 1809, atravessado de barca as ondas</p><p>encapeladas do Danúbio, então em plena cheia, para raptar na outra mar-</p><p>83 A contar desse título até o final dessa redação, as notas de rodapé assinalam as</p><p>modificações introduzidas ao longo da única datilografia entre a versão definitiva, que</p><p>compreende algumas folhas manuscritas intercaladas e folhas datilografadas</p><p>comportando correções manuscritas, e o texto da datilografia sem correções</p><p>manuscritas.</p><p>110 Apologia da história</p><p>gem alguns prisioneiros austríacos. Como verificar o episódio? Recorrendo a outros</p><p>testemunhos. Possuímos as ordens, as cadernetas de viagem, os relatórios dos exércitos</p><p>adversários: atestam que, durante a famosa noite, a unidade austríaca cujos</p><p>acampamentos Marbot pretende ter descoberto na margem esquerda ocupava ainda a</p><p>margem oposta. A própria Correspondência de Napoleão alude ao fato de que, em 8 de</p><p>maio, a subida das águas ainda não começara. Enfim, encontrou-se um pedido de</p><p>promoção elaborado, em 30 de junho de 1809, por Marbot em pessoa; entre os títulos</p><p>que ali invoca, não diz palavra sobre sua suposta façanha do mês precedente. De um</p><p>lado, eis então as Memórias; do outro, todo um lote de textos que as desmentem.</p><p>Convém dirimir essas irreconciliáveis testemunhas. Que alternativa julgar-se-á mais</p><p>verossímil: que naquele momento os esta-dos-maiores, o próprio imperador tenham se</p><p>enganado (a menos que, Deus sabe lá por quê, tenham conscientemente alterado a</p><p>realidade), que o Marbot de 1809, na ausência de uma promoção, tenha pecado por falsa</p><p>modéstia, ou que, bem mais tarde, o velho guerreiro, cujas bravatas são, além disso,</p><p>notórias, tenha dado uma nova rasteira na verdade? Ninguém, certamente, hesitará: as</p><p>Memórias mentiram mais uma vez.</p><p>Aqui, portanto, a constatação de uma discrepância arruinou um dos testemunhos</p><p>opostos. Era preciso que um dos dois sucumbisse. Assim o exigia o mais universal dos</p><p>postulados lógicos; o princípio da contradição proíbe impiedosamente que um</p><p>acontecimento possa ser e não ser ao mesmo tempo. Encontramos, mundo afora,</p><p>eruditos cuja generosidade não descansa até descobrir, entre afirmações antagônicas, um</p><p>meio-termo: isso é imitar o pirralho que, interrogado sobre o quadrado de 2, como um</p><p>de seus vizinhos lhe soprasse "4" e outro "8", acreditou acertar respondendo "6".</p><p>Faltava, depois, escolher o testemunho rejeitado e o que devia subsistir. Uma</p><p>análise psicológica decidiu; pesaram-se as razões presumidas da veracidade, da mentira</p><p>ou do erro em cada um dos testemunhos. Descobriu-se, no caso, que essa apreciação</p><p>trazia uma marca de evidência quase absoluta. Ela não deixará de se mostrar, em outras</p><p>circunstâncias, afetada por um coeficiente de incerteza muito mais forte. Conclusões que</p><p>se fundam numa delicada dosagem de motivos supõem, do infinitamente provável ao</p><p>apenas verossímil, uma longa degradação.</p><p>[Mas eis, agora, exemplos de outro tipo. ] Um documento, que se diz do século</p><p>XIII, está escrito sobre papel, ao passo que todos os originais dessa época até agora</p><p>encontrados o são sobre pergaminho; a forma das letras aparece aí bem diferente do</p><p>desenho observado em outros documentos da mesma data; a língua abunda em palavras</p><p>e figuras de estilo estranhas a seu uso unânime. Ou então as dimensões de uma</p><p>ferramenta, pretensamente paleolítica, revelam procedimentos de fabricação empregados</p><p>apenas em épocas bem mais próximas de nós. Concluire-</p><p>A crítica 111</p><p>mos que o documento e que a ferramenta são falsificações. Como precedentemente, a</p><p>discrepância condena. Mas por razões de natureza bem diferente.</p><p>A idéia que, desta vez, orienta a argumentação reza que, em uma mesma geração</p><p>de uma mesma sociedade, reina uma similitude de hábitos e técnicas muito grande para</p><p>permitir a qualquer indivíduo afastar-se sensivelmente da prática comum. Temos como</p><p>certo que um francês da época de Luís VII desenhava suas letras aproximadamente</p><p>como seus contemporâneos, que se exprimia aproximadamente nos mesmos termos84,</p><p>que se servia dos mesmos assuntos; que, caso um operário das tribos magdalenianas,</p><p>para cortar suas pontas de osso, dispusesse de uma serra mecânica, seus colegas a teriam</p><p>utilizado como ele. O postulado, em resumo, é aí de ordem sociológica. Confirmadas,</p><p>indubitavelmente, em seu valor geral por uma constante experiência da humanidade, as</p><p>noções de endosmose coletiva, de pressão do número, de imperiosa imitação sobre as</p><p>quais ele repousa confundem-se, no final, com o próprio conceito de civilização.</p><p>Não é preciso, no entanto, que a semelhança seja muito grande. Ela deixaria então</p><p>de depor em favor do testemunho. Pronunciaria, ao contrário, sua condenação.</p><p>Alguém que participou da batalha de Waterloo soube que Napoleão fora vencido</p><p>ali. Consideraríamos a testemunha original que negasse a derrota uma falsa testemunha.</p><p>Além disso, que Napoleão tenha sido vencido em Waterloo, admitimos que não haja, em</p><p>francês, muitas maneiras de dizê-lo, por pouco que nos limitemos a essa simples e tosca</p><p>constatação. Mas duas testemunhas, ou que se dizem como tais, descrevem a batalha</p><p>exatamente na mesma linguagem? Ou, ainda que ao preço de uma certa diversidade de</p><p>expressão, exatamente com os mesmos detalhes? Concluiremos, sem hesitar, que um</p><p>deles copiou o outro ou que ambos copiaram um modelo comum. Nossa razão recusa,</p><p>com efeito, admitir que, colocados necessariamente em pontos diferentes do espaço e</p><p>dotados de faculdades de atenção desiguais, dois observadores tenham podido observar,</p><p>ponto a ponto, os mesmos episódios: que, entre as inumeráveis palavras da língua</p><p>francesa, dois escritores, trabalhando independentemente um do outro, tenham</p><p>fortuitamente feito escolha dos mesmos termos, analogamente organizados, para contar</p><p>84 Talvez aqui se situasse a nota de Marc Bloch: "Ouvi, em minha juventude, um</p><p>ilustríssimo erudito, que foi diretor da École des Chartes, nos dizer com muito orgulho:</p><p>'Dato a escrita de um manuscrito com margem de erro de aproximadamente 20 anos.'</p><p>Esquecia-se de uma coisa: muitos homens, escribas, vivem mais de 40 anos e, se as</p><p>escritas às vezes se modificam com o envelhecimento, raramente é para se adaptar às</p><p>novas escritas correntes. Deve ter havido, por volta de 1200, escribas que, sexagenários,</p><p>ainda escreviam como haviam aprendido a fazê-lo em 1150. De fato, a história da escrita</p><p>está atrasada, estranhamente, em relação à da linguagem. Ela espera o seu Diez — ou</p><p>seu Meillet."</p><p>112 Apologia da história</p><p>as mesmas coisas. Se dois relatos se dão como tomados diretamente da realidade, é</p><p>preciso portanto que um dos dois, pelo menos, minta.</p><p>Considerem, em dois monumentos antigos, esculpidas de cada lado da pedra, duas</p><p>cenas guerreiras. Relacionam-se a campanhas diferentes. São representadas, no entanto,</p><p>sob traços quase iguais. O arqueólogo dirá: "Um dos dois artistas certamente plagiou o</p><p>outro, a menos que ambos tenham se contentado em reproduzir uma convenção de</p><p>escola." Pouco importa que os combates tenham sido separados apenas por um curto</p><p>intervalo, que talvez tenham oposto adversários oriundos dos mesmos povos —</p><p>egípcios contra hititas, Assur contra Elam. Revoltamo-nos ante a idéia de que, na imensa</p><p>variedade das atitudes humanas, duas ações distintas, em momentos diversos, tenham</p><p>sido capazes de se renovar exata-mente com os mesmos gestos. Como testemunho dos</p><p>faustos militares que ela finge</p><p>retraçar, uma das duas imagens pelo menos — se não as</p><p>duas — é propriamente uma falsificação.</p><p>Assim, a crítica move-se entre esses dois extremos: a similitude que justifica e a</p><p>que desacredita. Isso porque o acaso dos encontros tem seus limites e o concerto social é</p><p>feito de malhas, afinal, bem frouxas. Em outros termos, estimamos que haja no universo</p><p>e na sociedade bastante uniformidade para excluir a eventualidade de desvios muito</p><p>marcados. Mas essa uniformidade, tal como a representamos, atém-se a características</p><p>bem genéricas. Achamos que ela supõe, de certo modo engloba, mal se penetra um</p><p>pouco mais no real, um número de combinações possíveis muito próximo do infinito</p><p>para que sua repetição espontânea seja concebível: para tal, é preciso um ato voluntário</p><p>de imitação. De modo que, no final das contas, a crítica do testemunho apóia-se numa</p><p>instintiva metafísica do semelhante e do dessemelhante, do Um e do Múltiplo.</p><p>Resta, ao se impor a hipótese da cópia, fixar as direções de influência. Em cada</p><p>par, os dois documentos beberam em uma fonte comum? A supor que um dos dois, ao</p><p>contrário, seja original, em qual reconhecer esse título? Às vezes a resposta será</p><p>fornecida por critérios externos: tais como, por exemplo, as datas relativas, se for</p><p>possível estabelecê-las. Na falta desse apoio, a análise psicológica, com a ajuda das</p><p>características internas do objeto ou do texto, reassumirá seus direitos.</p><p>[É evidente que ela não comporta regras mecânicas. Será preciso, por exemplo,</p><p>erigir em princípio, como certos eruditos parecem fazê-lo, que os remanieurs85</p><p>multiplicam constantemente as novas invenções, de modo que o texto mais sóbrio e o</p><p>menos inverossímil teriam sempre a chance de ser o mais antigo? Isso é verdade,</p><p>algumas vezes. De inscrição em inscrição, vemos o número de</p><p>85 Neologismo.</p><p>A crítica 113</p><p>inimigos caídos sob os golpes de um rei da Assíria crescer desmedidadamente. Mas</p><p>acontece também de a razão se rebelar. A mais fabulosa das Paixões de são Jorge é a</p><p>primeira em data; por conseguinte, retomando o velho relato, os sucessivos redatores</p><p>sacrificaram inicialmente tal característica dela, depois uma outra, cuja extravagante</p><p>fantasia os chocava. Há muitas maneiras diferentes de imitar. Variam segundo o</p><p>indivíduo, às vezes segundo modas comuns a uma geração. Assim como qualquer outra</p><p>atitude mental, não poderiam ser pressupostas sob o pretexto de que nos pareceriam</p><p>"naturais".]</p><p>[Felizmente,} os plagiadores se traem, frequentemente, por suas imperícias.</p><p>Quando não compreendem seu modelo, seus contra-sensos denunciam a fraude.</p><p>Procuram disfarçar seus empréstimos? A inabilidade de seus estratagemas os perde.</p><p>Conheci um liceano que, durante uma composição, o olho fito no dever de seu vizinho,</p><p>transcrevia cuidadosamente suas frases de trás para frente; a seguir, com muita</p><p>espirituosidade, transformava os sujeitos em atributo e a ativa na passiva. Só fez fornecer</p><p>a seu professor um excelente exemplo de crítica histórica.</p><p>Desmascarar uma imitação é, ali onde inicialmente acreditamos lidar com duas ou</p><p>várias testemunhas, deixar subsistir apenas uma. Dois contemporâneos de Marbot, o</p><p>conde de Ségur e o general Pelet, fizeram, sobre a pretensa travessia do Danúbio, um</p><p>relato análogo ao seu. Mas Ségur vinha depois de Pelet; leu-o; só fez copiá-lo. Quanto a</p><p>Pelet, de nada adianta ter escrito antes de Marbot, era seu amigo; sem dúvida alguma,</p><p>escutara-o evocar suas fictícias proezas; pois o incansável fanfarrão preparava-se</p><p>fagueiramente, enganando seus familiares, para mistificar a posteridade. Marbot</p><p>permanece portanto nosso único aval, uma vez que suas aparentes cauções só falaram</p><p>depois dele. Quando Tito Lívio reproduz Políbio, ainda que o ornamentando, é Políbio</p><p>que é nossa única autoridade. Quando Éginhard, sob o pretexto de nos descrever Carlos</p><p>Magno, copia o retrato de Augusto por Suetônio, não existe mais, no sentido próprio,</p><p>nenhuma testemunha.</p><p>Acontece [enfim] de, por trás da suposta testemunha, estar oculto um "soprador",</p><p>que por nada quer se dar a ver. Estudando o processo dos Templários, Robert Lea</p><p>observou que, quando dois acusados pertencentes a duas casas diferentes eram</p><p>interrogados pelo mesmo inquisidor, vemo-los, invariavelmente, confessar as mesmas</p><p>atrocidades e as mesmas blasfêmias. Vindos da mesma casa, eram, ao contrário,</p><p>interrogados por inquisidores diferentes, e as confissões deixavam de concordar. A</p><p>conclusão evidente é que o juiz ditava as respostas. Eis uma característica de que os anais</p><p>judiciais forneceriam, imagino, outros exemplos.</p><p>Em nenhum lugar, provavelmente, o papel desempenhado, no raciocínio crítico,</p><p>pelo que poderíamos chamar de princípio de semelhança limitada aparece sob luz mais</p><p>curiosa do que através de uma das aplicações mais recentes do método: a crítica</p><p>estatística.</p><p>114 Apologia da história</p><p>Estou estudando, suponhamos, a história dos preços entre duas datas</p><p>determinadas, numa sociedade bem coesa, os quais passam por correntes de trocas</p><p>ativas. Depois de mim, um segundo trabalhador, depois um terceiro empreendem a</p><p>mesma pesquisa, mas com ajuda de elementos que, diferentes dos meus, diferem</p><p>igualmente entre si: outros livros de contas, outras mercuriais. Cada um de seu lado,</p><p>estabelecemos nossas médias anuais, nossos números-índices, a partir de uma base</p><p>comum, nossos gráficos. As três curvas praticamente se superpõem. Disso se concluirá</p><p>que cada uma delas fornece uma imagem sumariamente exata do movimento. Por quê?</p><p>A razão não está somente em que, num meio econômico homogêneo, as grandes</p><p>flutuações dos preços deviam necessariamente obedecer a um ritmo sensivelmente</p><p>uniforme. Sem dúvida essa consideração bastaria para lançar suspeita sobre curvas</p><p>brutalmente divergentes; não para nos garantir que, entre todos os traçados possíveis,</p><p>aquele que os três gráficos concordam em apresentar seja, por que nisso concordam,</p><p>forçosamente o verdadeiro. Três pesagens, com balanças parelhamente adulteradas,</p><p>fornecerão o mesmo número, e esse número será falso. Todo o raciocínio repousa aqui</p><p>numa análise do mecanismo dos erros. Nenhuma das três listas de preços poderia ser</p><p>considerada isenta desses erros de detalhe. Em matéria de estatística, eles são</p><p>praticamente inevitáveis. Suponhamos mesmo eliminados os erros pessoais do</p><p>pesquisador (sem falar de equívocos mais grosseiros, quem de nós ousará dizer-se seguro</p><p>de nunca ter tropeçado no terrível dédalo das medidas antigas?). Por mais</p><p>maravilhosamente atento que imaginemos o erudito, restarão sempre as armadilhas</p><p>engendradas pelos próprios documentos: certos preços poderiam ter sido, por</p><p>leviandade ou má-fé, inexatamente inscritos; outros serão excepcionais (preços de</p><p>"amigos" por exemplo, ou, inversamente, preços de tolos), com isso bastante adequados</p><p>a distorcer as médias; as mercuriais, que registravam as taxas médias praticadas nos</p><p>mercados, nem sempre terão sido elaboradas com um cuidado rigoroso. Mas, para um</p><p>grande número de preços, esses erros se compensam. Pois seria altamente improvável</p><p>que fossem sempre no mesmo sentido. Se portanto a concordância dos resultados,</p><p>obtidos com ajuda de dados diferentes, os confirma uns pelos outros, é que na base a</p><p>concordância nas negligências, nos mínimos enganos, nas mínimas complacências nos</p><p>parece, a justo título, inconcebível. O que há de irredutivelmente diverso nos</p><p>testemunhos levou a concluir que sua concordância final só pode advir de uma realidade</p><p>cuja unidade essencial era, nesse caso, fora de dúvida.</p><p>Os reagentes da prova do testemunho não são feitos para serem brutalmente</p><p>manipulados. Quase todos os princípios racionais, quase todas as experiências que a</p><p>guiam, encontram, por pouco que se os leve a fundo, seus limites em princípios</p><p>A crítica — 115</p><p>ou experiências contrários. Como toda lógica fidedigna, a crítica histórica tem suas</p><p>antinomias, ao menos aparentes.</p><p>Para que um testemunho seja reconhecido como autêntico, o método, vimos isso,</p><p>exige que ele apresente uma certa similitude com os testemunhos vizinhos. Se</p><p>aplicarmos, entretanto, esse preceito ao pé da letra, o que seria da descoberta? Pois quem</p><p>diz descoberta diz surpresa, e dessemelhança. Uma ciência que se limitasse a constatar</p><p>que tudo acontece sempre como se esperava não teria uma prática proveitosa, nem</p><p>divertida. Até agora não se encontrou documento redigido em francês (em vez de sê-lo,</p><p>como precedentemente, em latim) anterior ao ano 1204. Imaginemos que amanhã um</p><p>pesquisador produza um documento francês datado de 1180. Concluiremos86 daí que o</p><p>documento é falso? Ou que nossos conhecimentos eram insuficientes?</p><p>Não apenas, aliás, a impressão de uma contradição entre um testemunho novo e</p><p>seus similares arrisca-se a ter como origem apenas uma temporária enfermidade de nosso</p><p>saber, como acontece de a discrepância residir, autenticamente, nas coisas. A</p><p>uniformidade social não detém tanta força que dela não consigam escapar certos</p><p>indivíduos ou pequenos grupos. Sob o pretexto de que Pascal não escrevia como</p><p>Arnauld, que Cézanne não pintava como Bouguereau, nos negaremos a admitir as datas</p><p>reconhecidas das Provinciales ou da Montagne Sainte-Victoire? Acusaremos de</p><p>falsificações os mais antigos artefatos de bronze pela razão de que a maioria das jazidas</p><p>da mesma época não nos fornece senão artefatos de pedra?</p><p>Essas falsas conclusões nada têm de imaginárias e a lista dos fatos que a rotina</p><p>erudita inicialmente negou porque eram surpreendentes será longa. Desde a zoolatria</p><p>egípcia, que divertia muito Voltaire, até os vestígios humanos da era terciária. Olhando</p><p>mais de perto, porém, o paradoxo metodológico é somente de superfície. O argumento</p><p>de semelhança não perde seus direitos. Acarreta apenas que uma análise mais exata</p><p>discirna, dos possíveis desvios, os pontos de similitude necessários. Pois toda</p><p>originalidade individual tem seus limites. O estilo de Pascal não pertence senão a ele; mas</p><p>sua gramática e a base de seu vocabulário são de seu tempo. Pelo emprego que faz de</p><p>uma língua inusitada, em vão nosso suposto documento de 1180 irá diferir dos</p><p>documentos de mesma data até aqui conhecidos; para que seja julgado aceitável, será</p><p>preciso que seu francês se conforme, grosso modo, à situação da linguagem atestada,</p><p>nessa época, pelos textos literários, e que as instituições mencionadas correspondam</p><p>àquelas do momento.</p><p>Do mesmo modo, aproximar os testemunhos num mesmo plano de duração não</p><p>satisfaz a comparação crítica competente. Um fenômeno humano é sempre</p><p>86 ]sem maiores preocupações[</p><p>116 Apologia da história</p><p>um elo de uma série que atravessa as eras. No dia em que um novo Vrain-Lucas,</p><p>lançando sobre a mesa da Academia um punhado de autógrafos, pretender nos provar</p><p>que Pascal inventou a relatividade geral antes de Einstein, estejamos logo certos de que</p><p>as peças serão falsas. Não é que Pascal fosse incapaz de descobrir o que seus</p><p>contemporâneos não descobriam. Mas a teoria da relatividade tem seu ponto de partida</p><p>num longo e prévio desenvolvimento de especulações matemáticas; grande que fosse,</p><p>nenhum homem podia, apenas pela força de seu gênio, substituir gerações nesse</p><p>trabalho. Quando, em contrapartida, diante das primeiras descobertas de pinturas</p><p>paleolíticas, vemos certos cientistas contestar sua autenticidade ou data, sob o pretexto</p><p>de que arte semelhante seria incapaz de florescer e depois desaparecer, esses céticos</p><p>raciocinavam mal: há cadeias que se rompem e as civilizações são mortais.</p><p>Ao ler, escreve em substância o padre Delahaye, que a Igreja celebra, no mesmo</p><p>dia, a festa de dois de seus servos mortos, ambos na Itália; que a conversão dos dois foi</p><p>resultado da leitura da vida dos santos; que fundaram cada um uma ordem religiosa, sob</p><p>o mesmo vocábulo; que essas duas ordens, enfim, foram suprimidas por dois papas</p><p>homônimos, não há ninguém que não fique tentado a exclamar que um único indivíduo,</p><p>duplicado por engano, foi inscrito no martirológio sob dois nomes distintos. Porém, é</p><p>verdade que, similarmente guiado para a vida religiosa pelo exemplo de piedosas</p><p>biografias, são João Colombani estabeleceu a ordem dos jesuatas e Inácio de Loyola a</p><p>dos jesuítas; que morreram ambos num 31 de julho, o primeiro perto de Siena, em 1367,</p><p>o segundo em Roma em 1556; que os jesuatas foram dissolvidos pelo papa Clemente IX</p><p>e a Companhia de Jesus por Clemente XIV. O exemplo é divertido. Provavelmente não</p><p>é o único. Se um dia um cataclisma deixar que subsistam apenas alguns magros</p><p>delineamentos destes últimos séculos, quantos escrúpulos de consciência não irá</p><p>preparar para os eruditos do futuro a existência de dois pensadores que, ambos ingleses</p><p>e ambos portadores do nome Bacon87, coincidiram ao dar, com suas doutrinas, uma</p><p>grande contribuição ao conhecimento experimental? O sr. Pais condenou como</p><p>lendárias muitas das antigas tradições romanas pela única razão, ou quase isso, de que</p><p>nela vemos repassarem os mesmos nomes, associados a episódios bem parecidos.</p><p>Mesmo desagradando à crítica do plágio, cuja alma é a negação das repetições</p><p>espontâneas de acontecimentos ou de palavras, a coincidência é uma das bizarrices que</p><p>não se deixam eliminar da história.</p><p>Mas não basta reconhecer evasivamente a possibilidade de encontros fortuitos.</p><p>Reduzida a essa simples constatação, a crítica oscilaria eternamente entre o</p><p>87 ]que — a mais de 300 anos de distância, na verdade, mas ninguém deixará de julgar</p><p>essas datas controversas —]</p><p>A crítica 117</p><p>pró e o contra. Para que a dúvida se torne instrumento de conhecimento, é preciso que,</p><p>em cada caso particular, o grau de verossimilhança da combinação possa ser sopesado</p><p>com alguma exatidão. Aqui, a pesquisa histórica, como tantas outras disciplinas do</p><p>espírito, cruza seu caminho com a via régia da teoria das probabilidades.</p><p>Avaliar a probabilidade de um acontecimento é estimar as chances que tem de se</p><p>produzir88. Posto isto, será legítimo falar da possibilidade de um fato passado? No</p><p>sentido absoluto, evidentemente não. Só o futuro é aleatório. O passado é um dado que</p><p>não deixa mais lugar para o possível. Antes do lance de dados, a probabilidade para</p><p>qualquer das faces era de um sobre seis; lançados os dados, o problema desaparece. Pode</p><p>ser que hesitemos mais tarde, se nesse dia desse o três ou então o cinco. A incerteza está</p><p>portanto em nós, em nossa memória ou na de nossas testemunhas. Não nas coisas.</p><p>Analisando com calma, no entanto, o uso que a pesquisa histórica faz da noção do</p><p>provável nada tem de contraditório89. Com efeito, o que tenta o historiador que se</p><p>interroga sobre a probabilidade de um acontecimento ocorrido senão transportar-se, por</p><p>um movimento ousado do espírito, para antes desse próprio acontecimento, para</p><p>ponderar sobre suas chances tal como se apresentavam às vésperas de sua realização? A</p><p>probabilidade permanece, portanto, de fato no futuro. Mas tendo sido a linha do</p><p>presente, de certo modo, imaginariamente recuada, trata-se de um futuro de outrora,</p><p>construído com um pedaço daquilo que, para nós, é atualmente o passado. Se o fato</p><p>aconteceu de maneira incontestável, essas especulações não têm valor senão de jogos</p><p>metafísicos. Qual era a probabilidade de Napoleão nascer? De Adolf Hitler, soldado em</p><p>1914, escapar das balas francesas? Não é proibido divertir-se com tais perguntas. Sob a</p><p>condição de considerá-las apenas pelo que realmente são: simples artifícios de linguagem</p><p>destinados a trazer à luz, na marcha da humanidade, a parte de contingência e de</p><p>imprevisibilidade. Elas nada têm a ver com a crítica do testemunho. A própria existência</p><p>do fato parece incerta, ao contrário? Duvidamos, por exemplo, de que um autor, sem ter</p><p>copiado um relato alheio, esteja em condições de repetir, espontaneamente, muitos de</p><p>seus episódios e muitas de suas palavras; que só o acaso ou não sei que harmonia</p><p>divinamente preestabelecida bastem para explicar, desde os Protocolos dos sábios de</p><p>Sião até os panfletos de um obscuro polemista do</p><p>Segundo</p><p>88 Esse § e os sete seguintes são objeto de três folhas manuscritas, numeradas III-32, III-</p><p>33 e III-34, que foram utilizadas para a datilografia e cujo texto é idêntico à datilografia</p><p>não corrigida.</p><p>89 ]com as definições que precedem[</p><p>118 Apologia da história</p><p>Império, semelhança tão espantosa? Conforme a coincidência pareça afetada por um</p><p>maior ou menor coeficiente de probabilidade, antes de o relato ter sido composto,</p><p>admitiremos sua verossimilhança hoje ou a rejeitaremos.</p><p>A matemática do acaso, no entanto, repousa numa ficção. Em todos os casos</p><p>possíveis, postula, de saída, a imparcialidade das condições: uma causa particular que,</p><p>previamente, favorecesse um ou outro seria um corpo estranho no cálculo. O dado dos</p><p>teóricos é um cubo perfeitamente equilibrado; se sob uma de suas faces insinuássemos</p><p>um grão de chumbo, as chances dos jogadores deixariam de ser iguais. Mas, na crítica do</p><p>testemunho, todos os dados estão viciados. Pois elementos muito delicados intervêm</p><p>constantemente para fazer a balança pender para uma eventualidade privilegiada.</p><p>Uma disciplina histórica, a bem da verdade, faz exceção. Ê a linguística, ou pelo</p><p>menos aquela de suas ramificações que se empenha em estabelecer os parentescos entre</p><p>as línguas. Bem diferente, por seu alcance, das operações propriamente críticas, essa</p><p>investigação não deixa de ter com muitas delas, como característica comum, o esforço de</p><p>descobrir filiações. Ora, as condições sob as quais ela raciocina estão excepcionalmente</p><p>próximas da convenção primordial de igualdade, familiar à teoria do acaso. Ela deve essa</p><p>prerrogativa às próprias particularidades dos fenômenos da linguagem. Não apenas, com</p><p>efeito, o imenso número de combinações possíveis entre os sons reduz a um valor</p><p>ínfimo a probabilidade de sua repetição fortuita, em grande quantidade, em diferentes</p><p>falares. Coisa ainda muito mais importante: deixando de lado algumas raras harmonias</p><p>imitativas, as significações atribuídas a essas combinações são completamente arbitrárias.</p><p>Nenhuma associação de imagens impõe que as associações vocais bastante vizinhas tu</p><p>ou tou ("tu" pronunciado à francesa ou à latina) sirvam para notar a segunda pessoa</p><p>[muito evidentemente]. Se portanto constatamos que têm esse papel, ao mesmo tempo,</p><p>em francês, italiano, espanhol e romeno; se observamos, ao mesmo tempo, entre essas</p><p>línguas, uma multiplicidade [de outras] correspondências, igualmente irracionais, a única</p><p>explicação sensata será que o francês, o italiano, o espanhol e o romeno têm uma origem</p><p>comum. Porque os diversos possíveis eram humanamente indistintos, um cálculo das</p><p>chances quase puro impôs a decisão.</p><p>Mas falta muito para que tal simplicidade seja usual.</p><p>Vários diplomas de um soberano medieval, tratando de assuntos diferentes,</p><p>reproduzem as mesmas palavras e os mesmos maneirismos. Isso quer dizer portanto,</p><p>afirmam os adeptos da Stilkritik (fanáticos pela "crítica dos estilos"), que um mesmo</p><p>notário os redigiu. De acordo, se só o acaso estivesse em questão. Mas não é o caso.</p><p>Cada sociedade e, mais ainda, cada pequeno grupo profissional tem seus hábitos de</p><p>linguagem. Não bastava portanto enumerar os pontos de similitude. Era ainda preciso</p><p>distinguir, entre eles, o raro do usual. Apenas as expressões</p><p>A crítica 119</p><p>verdadeiramente excepcionais podem denunciar um autor: supondo, naturalmente, que</p><p>suas repetições sejam numerosas o bastante. O erro aqui é atribuir a todos os elementos</p><p>do discurso um peso igual, como se os variáveis coeficientes de preferência social de que</p><p>cada um deles se acha afetado não fossem os grãos de chumbo que contrariam a</p><p>equivalência das chances.</p><p>Toda uma escola de eruditos se dedicou, a partir do início do século XIX, a</p><p>estudar a transmissão dos textos literários. O princípio é simples: sejam três manuscritos</p><p>de uma mesma obra: B, C e D. Constata-se que todos os três apresentam as mesmas</p><p>lições, evidentemente errôneas (é o métodos dos erros, o mais antigo, o de Lachman).</p><p>Ou então, mais geralmente, extraímos daí as mesmas lições, boas ou más, mas diferentes</p><p>em sua maioria em relação às de outros manuscritos (é o recenseamento integral das</p><p>variantes, preconizado por dom Quentin). Decidir-se-á que são "aparentados".</p><p>Entendam, conforme o caso, ou que foram copiados uns sobre os outros, segundo uma</p><p>ordem que resta determinar, ou que remontam todos, por filiações particulares, a um</p><p>modelo comum. É certíssimo, com efeito, que um encontro assim sustentado não</p><p>poderia ser fortuito. Entretanto, duas observações, que passaram a ser levadas em conta</p><p>bem recentemente, obrigaram a crítica textual a abandonar muito do rigor, quase</p><p>mecânico, de suas primeiras conclusões.</p><p>Os copistas às vezes corrigiam seu modelo. Mesmo trabalhando</p><p>independentemente um do outro, hábitos de espírito comuns devem, com muita</p><p>frequência, ter-lhes sugerido conclusões semelhantes. Terêncio usa em algum lugar a</p><p>palavra raptio, que é excessivamente rara. Não a compreendendo, dois escribas a</p><p>substituíram por ratio, o que é um contra-senso, mas lhes era familiar. Tinham</p><p>necessidade, para isso, de combinarem entre si ou de se imitarem? Eis então um gênero</p><p>de erros que é impotente demais para nos ensinar alguma coisa sobre a "genealogia" dos</p><p>manuscritos. Tem mais. Por que o copista só teria utilizado um modelo único? Não lhe</p><p>era proibido, se conseguisse, confrontar vários exemplares a fim de escolher o melhor</p><p>possível entre suas variantes. O caso foi certamente muito excepcional na Idade Média,</p><p>cujas bibliotecas eram pobres. Bem mais frequente, em contrapartida, segundo tudo</p><p>indica, na Antiguidade. Sobre as belas árvores de Jefté, que é praxe dispor no umbral das</p><p>edições críticas, que lugar atribuir a esses incestuosos produtos de diversas tradições</p><p>diferentes? No jogo das coincidências, a vontade do indivíduo, como a pressão das</p><p>forças coletivas, trapaceia com o acaso.</p><p>[Quando, ainda há pouco, reconhecíamos na coincidência das curvas estatísticas a</p><p>prova dos nove de sua exatidão, o que fazíamos senão um raciocínio de probabilidades?</p><p>A compensação dos erros é um dos capítulos clássicos da teoria do acaso. Também aqui,</p><p>no entanto, tomemos cuidado, porque o querer humano pode perturbar a partida.</p><p>Supúnhamos erros de sentido variável. É, com efeito, o</p><p>120 Apologia da história</p><p>caso normal, entre os documentos, das cadernetas de contas ou das mercuriais. Mas</p><p>existem também erros combinados. Na França dos séculos XVII e XVIII, certos</p><p>encargos camponeses, estipulados em produtos, haviam, com o correr do tempo,</p><p>deixado de ser pagos a não ser em numerário. Para permitir a percepção disso, quadros</p><p>de equivalência eram estabelecidos anualmente, em princípio segundo as cotações dos</p><p>mercados: este ano, diziam, para cada alqueire de trigo, por exemplo, tantas libras e</p><p>vinténs serão devidos. Os senhores, naturalmente, levavam vantagem por terem fixado</p><p>preços mais elevados do que a realidade. Onde a autoridade encarregada de elaborar a</p><p>tabela estava sob a dependência deles ou partilhava de seus interesses, os números eram</p><p>então falseados. Será que nos servimos atual-mente, para reconstituir os preços antigos,</p><p>de fontes desse tipo? A coincidência das curvas arrisca-se a traduzir apenas uma mera</p><p>tomada de posição comum; ou seus movimentos bruscos meras disposições cambiantes</p><p>de pequenas judicaturas da província. Observações análogas atingem mais de uma</p><p>estatística aduaneira; ou ainda os cálculos dos preços de imóveis a serem consultados nos</p><p>atos registrados de venda; a fim de escapar ao fisco, as somas realmente despendidas são</p><p>ali corriqueiramente abaixadas. O que seriam as leis do sorteio se as bolas brancas ou</p><p>vermelhas tivessem a faculdade de se entender, sob a mão que remexe no saco, para</p><p>combinarem a ordem de seu surgimento?]90</p><p>Assim, como já percebera a filosofia do século XVIII, com Volney, a maioria dos</p><p>problemas da crítica histórica consiste de fato em problemas de probabilidade; mas tais</p><p>que o cálculo</p><p>mais sutil deve declarar-se incapaz de resolvê-los. Não é apenas que os</p><p>dados aí sejam de uma extraordinária complexidade. Em si mesmos permanecem, o mais</p><p>das vezes, rebeldes a qualquer tradução matemática. Como numerar, por exemplo, o</p><p>favor particular concedido por uma sociedade a uma palavra ou a um costume? Não nos</p><p>desvencilharemos de nossas dificuldades em relação à arte de Fermat, de Laplace ou de</p><p>Émile Borel. Ao menos, já que ela se coloca de certo modo no limite inacessível de</p><p>nossa lógica, podemos pedir-lhe que nos ajude, de cima, a melhor analisar nossas</p><p>argumentações e a melhor conduzi-las.</p><p>Quem não tem prática direta com os eruditos mal se dá conta de como lhes</p><p>repugna, em geral, aceitar a inocência de uma coincidência. Porque duas expressões</p><p>semelhantes encontram-se na lei sálica e num édito de Clóvis, não vimos um ilustre</p><p>cientista alemão afirmar que a lei devia ser desse príncipe? Deixemos de</p><p>90 Esse § entre colchetes foi, por razões desconhecidas, omitido na edição preparada por</p><p>Lucien Febvre. Ele figura no manuscrito em um original e um carbono, ambos sem</p><p>nenhuma correção manuscrita, que não passam da datilografia de uma folha manuscrita,</p><p>numerada III-37 bis, cujo texto é idêntico.</p><p>A crítica — 121</p><p>lado a banalidade das palavras e de outros usos. Um simples verniz da teoria matemática</p><p>teria bastado para prevenir o passo em falso. Quando o acaso age livremente, a</p><p>probabilidade de uma descoberta única ou de um pequeno número de achados</p><p>raramente é da ordem do impossível. Pouco importa que pareçam espantosas; as</p><p>surpresas do senso comum raramente são impressões de muito valor.</p><p>Podemos nos divertir calculando a probabilidade do lance do acaso que, em dois</p><p>anos diferentes, fixa no mesmo dia do mesmo mês as mortes de personagens</p><p>completamente distintos. Ela é de 1/3652.91 Admitamos agora (apesar do absurdo do</p><p>postulado) como certo de antemão que as instituições de Colombani e de Inácio de</p><p>Loyola tivessem sido suprimidas pela Igreja romana. O exame das listas pontificais</p><p>permite estabelecer que a probabilidade para que a abolição fosse pronunciada por dois</p><p>papas do mesmo nome era de 11/13. A probabilidade combinada ao mesmo tempo de</p><p>uma mesma data de dia e de mês, para as mortes, e de dois papas homônimos como</p><p>autores das condenações, situa-se entre l/105 e l/106 (um cem milésimos e um cem mil</p><p>avos)92. Um apostador, provavelmente, não se contentaria com isso. Mas as ciências da</p><p>natureza só consideram como próximo do realizável, na escala terrestre, as possibilidades</p><p>da ordem de l/1015. Estamos, como se vê, em pleno engano. Por todos os motivos,</p><p>como testemunha o exemplo seguramente comprovado dos dois santos.</p><p>Essas são apenas concordâncias acumuladas cuja probabilidade torna-se</p><p>praticamente desprezível: pois, em virtude de um teorema bem-conhecido, as</p><p>probabilidades dos casos elementares multiplicam-se então para fornecer a probabilidade</p><p>da combinação e, sendo as probabilidades frações, seu produto é, por definição,</p><p>91 Nota de Marc Bloch: "Supondo que as chances de mortalidade para cada um dos dias</p><p>do ano sejam iguais. O que não é exato {existe uma curva anual da mortalidade) mas</p><p>pode ser, sem inconveniente, postulado aqui."</p><p>92 Nota de Marc Bloch: "Desde a morte de Columbano até nossos dias, 65 papas</p><p>governaram a Igreja (incluindo a dupla e tripla série da época do Grande Cisma); 38 se</p><p>sucederam desde a morte de Inácio. A primeira lista oferece 55 homônimos com a</p><p>segunda, onde esses mesmos nomes se repetem exatamente 38 vezes (os papas tendo,</p><p>como se sabe, o costume de assumir nomes já consagrados pelo uso). A probabilidade</p><p>para que os jesuatas fossem suprimidos por um desses papas homônimos era portanto</p><p>de 55/65 ou 11/13; para os jesuítas, subia a 38/38 ou 1; em outras palavras, tornava-se</p><p>certeza. A probabilidade combinada é de 11/13 x 1 ou 11/13. Enfim, 1/3652 ou</p><p>1/133.225 x 11/13 dá 11/1.731.925, ou seja, um pouco mais de 11/157.447. Para ser</p><p>totalmente exato, seria preciso levar em conta as durações respectivas dos pontificados.</p><p>Mas a natureza desse passatempo matemático, cujo único objetivo é trazer à luz uma</p><p>ordem de grandeza, pareceu-me autorizar a simplificar os cálculos." (Esta nota de Marc</p><p>Bloch subsiste em dois exemplares datilografados: um original sem correções</p><p>manuscritas e um carbono com algumas correções manuscritas, aqui reproduzido.)</p><p>122 Apologia da história</p><p>inferior a seus componentes. É célebre o exemplo da palavra bad, que, em inglês como</p><p>em persa, quer dizer "mau" sem que o termo inglês e o termo persa tenham</p><p>absolutamente uma origem comum. Quem, sobre essa correspondência única,</p><p>pretendesse fundamentar uma filiação pecaria contra a lei tutelar de toda crítica das</p><p>coincidências: apenas os grandes números têm vez.</p><p>As concordâncias ou discordâncias abundantes são feitas de uma multiplicidade</p><p>de casos particulares. No total, as influências acidentais são destruídas. Consideramos, ao</p><p>contrário, cada elemento independentemente dos outros? A ação dessas variáveis não</p><p>pode mais ser eliminada. Mesmo se os dados estivessem viciados, o lance isolado</p><p>permaneceria sempre mais difícil de prever do que o desfecho da partida; por</p><p>conseguinte, uma vez lançado, sujeito a uma diversidade de explicações bem maior. Eis</p><p>por que, à medida que se penetrou mais no detalhe, as verossimilhanças da crítica vão se</p><p>degradando. Não há, na Oréstia tal como a lemos hoje, quase nenhuma palavra, tomada</p><p>à parte, que estejamos seguros de ler como Ésquilo a escrevera. Não duvidemos, a</p><p>despeito disso, que em seu conjunto nossa Oréstia seja de fato aquela de Ésquilo. Há</p><p>mais certeza no todo do que em seus componentes.</p><p>Em que medida, entretanto, nos é permitido pronunciar essa palavra grandiosa,</p><p>certeza? A crítica dos documentos não seria capaz de atingir a certeza "metafísica" jáo</p><p>estava errado. É apenas por simplificação que substituímos algumas vezes uma</p><p>linguagem de probabilidade por uma linguagem de evidência. Mas, sabemos isso hoje</p><p>melhor do que na época de Mabillon, essa convenção não nos é absolutamente</p><p>exclusiva. Não é, no sentido absoluto do termo, "impossível" que a Doação de</p><p>Constantino seja autêntica; que a Germânia de Tácito — segundo a mania de alguns</p><p>eruditos — seja uma falsificação. No mesmo sentido tampouco é "impossível" que,</p><p>batendo ao acaso no teclado de uma máquina de escrever, um macaco consiga</p><p>fortuitamente reconstituir, letra por letra, a Doação ou a Germânia. "O acontecimento</p><p>fisicamente impossível" disse Cournot, "não é outra coisa senão o acontecimento cuja</p><p>probabilidade é infinitamente pequena". Limitando sua parcela de garantia a dosar o</p><p>provável e o improvável, a crítica histórica não se distingue da maioria das ciências do</p><p>real senão por um escalonamento sem dúvida mais nuançado dos graus.</p><p>Avaliamos93 sempre com exatidão o ganho imenso que foi o advento de um</p><p>método racional de crítica, aplicado ao testemunho humano? Entendo ganho não apenas</p><p>para o conhecimento histórico, mas para o conhecimento tout court.</p><p>93 Uma folha manuscrita, numerada ÍII-37, começando por esse §, representa a versão</p><p>manuscrita que serviu para a datilografia antes das correções manuscritas. Seu texto é</p><p>idêntico ao aqui reproduzido.</p><p>A crítica — 123</p><p>Antigamente, a menos que se tivesse previamente razões bem fortes para suspeitar</p><p>de mentira suas testemunhas ou seus narradores, todo fato afirmado era, em três quartos</p><p>das ocasiões, um fato aceito. Não estamos falando: isso aconteceu há muito tempo.</p><p>Lucien Febvre mostrou isso, excelentemente, para o Renascimento: não se pensava, não</p><p>se agia de maneira diferente em épocas bastante próximas [de nós] para que suas obras-</p><p>primas permanecessem para nós ainda um alimento vivo. Não estamos falando: esta era</p><p>naturalmente a atitude daquela multidão crédula da qual, até os dias em que vivemos, a</p><p>grande massa, infelizmente mesclada a mais de um semi-erudito, ameaça constantemente</p><p>arrastar nossas frágeis civilizações rumo a terríveis abismos</p><p>de ignorância ou de loucuras.</p><p>As mais firmes inteligências não escapavam então, não podiam escapar ao preconceito</p><p>comum. Contava-se que caíra uma chuva de sangue? Então é que havia chuvas de</p><p>sangue. Montaigne lia, em seus caros Antigos, esta ou aquela lorota sobre o país cujos</p><p>habitantes nascem sem cabeça ou sobre a força prodigiosa do peixe rêmora?. Ele as</p><p>inscrevia sem pestanejar entre os argumentos de sua dialética [: por mais capaz que fosse</p><p>de desmontar engenhosamente o mecanismo de um falso rumor, as idéias feitas o</p><p>deixavam bem mais desconfiado do que supostos fatos atestados]. Assim, reinava,</p><p>segundo o mito rabelaisiano, o velho Ouvir-Dizer. No mundo físico como no mundo</p><p>dos homens. No mundo físico talvez mais ainda do que no mundo dos homens. Pois,</p><p>instruído por uma experiência mais direta, duvidava-se mais de um acontecimento</p><p>humano do que de um meteoro ou de um pretenso acidente da vida orgânica. A filosofia</p><p>de vocês repelia o milagre? Ou a religião de vocês repelia os milagres das outras</p><p>religiões? Seria preciso que se esforçassem penosamente para descobrir para essas</p><p>surpreendentes manifestações causas supostamente inteligíveis que, na verdade ações</p><p>demoníacas ou influxos ocultos, continuavam a aderir a um sistema de idéias ou imagens</p><p>completamente estranho ao que chamaríamos hoje de pensamento científico. Negar a</p><p>própria manifestação, tal audácia não ocorria ao espírito. [Corifeu dessa escola paduana</p><p>tão estranha ao sobrenatural cristão,] Pomponazzi não acredita que reis, mesmo ungidos</p><p>pelo crisma da santa ampola, pudessem, porque eram reis, curar doentes ao tocá-los. No</p><p>entanto, não contestava absolutamente as94 curas. Admitía-as a título de uma</p><p>propriedade fisiológica por ele concebida como hereditária95: o glorioso privilégio da</p><p>função sagrada era associado às virtudes curativas de uma saliva dinástica.</p><p>94 Aqui termina a folha manuscrita numerada III-37.</p><p>95 ]. O médico real, supunha ele, molhando todas as vezes seu dedo antes de tocá-lo[</p><p>124 Apologia da história</p><p>Ora, se nossa imagem do universo pôde, hoje, ser limpa de tantos fictícios</p><p>prodígios — porém confirmados, parece, pela concordância das gerações —, certamente</p><p>devemos isso antes de tudo à noção, lentamente deduzida, de uma ordem natural</p><p>comandada por leis imutáveis. Mas essa própria noção não conseguiu se estabelecer tão</p><p>solidamente, as observações que pareciam contradizê-la só puderam ser eliminadas</p><p>graças ao paciente trabalho de uma experiência crítica empreendida pelo próprio homem</p><p>enquanto testemunha. Somos agora capazes ao mesmo tempo de desvendar e de explicar</p><p>as imperfeições do testemunho. Adquirimos o direito de não acreditar sempre, porque</p><p>sabemos, melhor do que pelo passado, quando e por que aquilo não deve ser digno de</p><p>crédito. E foi assim que as ciências conseguiram rejeitar o peso morto de muitos falsos</p><p>problemas.</p><p>Mas o conhecimento puro não é aqui, mais que em outro lugar, dissociado da</p><p>conduta.</p><p>Richard Simon, cujo nome na geração de nossos fundadores tem lugar destacado,</p><p>não nos deixou apenas admiráveis lições de exegese. Certo dia o vimos empregar a</p><p>acuidade de sua inteligência para salvar alguns inocentes, perseguidos pela estúpida</p><p>acusação de crime ritual. O encontro nada tinha de arbitrário. Das duas partes, a</p><p>exigência de dignidade intelectual era a mesma. Um mesmo instrumento, a cada vez,</p><p>permitia satisfazê-la. Constantemente levada a guiar-se pelas referências dos outros, a</p><p>ação é tão interessada quanto a investigação em verificar sua exatidão. Não dispõe, para</p><p>isso, de meios diferentes. Sejamos mais claros: seus meios são aqueles que a erudição</p><p>havia inicialmente forjado. Na arte de dirigir proveitosamente a dúvida, a prática</p><p>judiciária só fez seguir os passos, não sem atraso, dos bollandistas e dos beneditinos; e os</p><p>próprios psicólogos só se deram conta de encontrar no testemunho, diretamente</p><p>observado e provocado, um objeto de ciência muito tempo depois que a turva memória</p><p>do passado havia começado a ser submetida a uma prova de raciocínio. Em nossa época,</p><p>mais que nunca exposta às toxinas da mentira e do falso rumor, que escândalo o método</p><p>crítico não figurar nem no menor cantinho dos programas de ensino! Pois ele deixou de</p><p>ser apenas o humilde auxiliar de alguns trabalhos de oficina. Doravante vê abrirem-se</p><p>diante de si horizontes bem mais vastos: e a história tem o direito de contar entre suas</p><p>glórias mais seguras ter assim, ao elaborar sua técnica, aberto aos homens um novo</p><p>caminho rumo à verdade e, por conseguinte, àquilo que é justo.</p><p>Capítulo IV</p><p>A análise histórica</p><p>1. Julgar ou compreender?</p><p>A fórmula do velho Ranke é célebre: o historiador propõe apenas descrever as</p><p>coisas "tais como aconteceram, wie es eigentlich geweserí'. Heródoto o dissera antes</p><p>dele, "ta eonta legein, contar o que foi". O cientista, em outros termos, é convidado a se</p><p>ofuscar diante dos fatos. Como muitas máximas, esta talvez deva sua fortuna apenas à</p><p>sua ambiguidade. Podemos ler aí, modestamente, um conselho de probidade: este era,</p><p>não se pode duvidar, o sentido de Ranke. Mas também um conselho de passividade. De</p><p>modo que eis, colocados de chofre, dois problemas: o da imparcialidade histórica; o da</p><p>história como tentativa de reprodução ou como tentativa de análise.</p><p>Mas haverá então um problema da imparcialidade? Ele só se coloca porque a</p><p>palavra, por sua vez, é equívoca.</p><p>Existem duas maneiras de ser imparcial: a do cientista e a do juiz. Elas têm uma</p><p>raiz comum, que é a honesta submissão à verdade. O cientista registra, ou melhor,</p><p>provoca o experimento que, talvez, inverterá suas mais caras teorias. Qualquer que seja o</p><p>voto secreto de seu coração, o bom juiz interroga as testemunhas sem outra</p><p>preocupação senão conhecer os fatos, tais como se deram. Trata-se, dos dois lados, de</p><p>uma obrigação de consciência que não se discute.</p><p>Chega um momento, porém, em que os caminhos se separam. Quando o cientista</p><p>observou e explicou, sua tarefa está terminada. Ao juiz resta ainda declarar sua sentença.</p><p>Calando qualquer inclinação pessoal, pronuncia essa sentença segundo a lei? Ele se</p><p>achará imparcial. Sê-lo-á, com efeito, no sentido dos juízes. Não no sentido dos</p><p>cientistas. Pois não se poderia condenar ou absolver sem tomar partido por uma tábua</p><p>de valores, que não depende de nenhuma ciência positiva. Que um homem tenha</p><p>matado um outro é um fato eminentemente suscetível de prova. Mas castigar o assassino</p><p>supõe que se considere o assassino culpado: o que, feitas as contas, é apenas uma</p><p>opinião sobre a qual todas as civilizações não entraram num acordo.</p><p>Ora, por muito tempo o historiador passou por uma espécie de juiz dos Infernos,</p><p>encarregado de distribuir o elogio ou o vitupério aos heróis mortos.</p><p>125</p><p>126 Apologia da história</p><p>Acreditamos que essa atitude corresponda a um instinto poderosamente</p><p>enraizado. Pois todos os professores que tiveram de corrigir trabalhos de estudantes</p><p>sabem o quão pouco esses jovens se deixam dissuadir de brincar, do alto de suas</p><p>carteiras, de Minos ou Osíris. São, mais que nunca, as palavras de Pascal: "Todo mundo</p><p>age como deus ao julgar: isto é bom ou ruim." Esquecemos que um juízo de valor1 tem</p><p>sua única razão como preparação de um ato e com sentido apenas em relação a um</p><p>sistema de referências morais, deliberadamente aceito. Na vida cotidiana, as exigências</p><p>do comportamento nos impõem essa rotulagem, geralmente bastante sumária. Ali onde</p><p>nada mais podemos, ali onde os ideais comumente recebidos diferem profundamente</p><p>dos nossos, ela é apenas um estorvo. Então estaríamos tão seguros sobre nós mesmos e</p><p>sobre nossa época para separar, na trupe de nossos pais, os justos dos malditos?</p><p>Elevando ao absoluto os critérios, todos relativos, de um indivíduo, de um partido ou de</p><p>uma geração, que brincadeira infligir suas normas à maneira como Sila governou Roma</p><p>ou Richelieu os Estados do rei Cristianíssimo! Como aliás nada é mais variável, por</p><p>natureza, que semelhantes decretos, submetidos</p><p>de história e não de jornalista. Pois mesmo os melhores jornalistas permanecem</p><p>"colados" ao acontecimento. Ora, desde junho de 1940, quando se encontra na Rennes</p><p>ocupada, longe de qualquer biblioteca, Bloch aproveita "lazeres ameaçadores preparados</p><p>para ele por um estranho destino" para refletir — em um texto que, como escreve,</p><p>assume necessariamente, nas circunstâncias em que é elaborado, o aspecto de um</p><p>testamento — sobre o problema da legitimidade da história e esboçar algumas das</p><p>idéias-chave do que será a Apologia da história.</p><p>Irei me deter um pouco na Introdução desse texto, pois ela enuncia algumas das</p><p>idéias-força da obra projetada. Como ponto de partida, Marc Bloch toma a interrogação</p><p>de um filho lhe perguntando para que serve a história. Essa confidência não apenas nos</p><p>mostra um homem tanto pai de família como servo de sua obra, como nos introduz ao</p><p>cerne de uma de suas convicções: a obrigação de o historiador difundir e explicar seus</p><p>trabalhos. Ele deve, diz, "saber falar, no mesmo tom, aos doutos e aos estudantes", e</p><p>salienta que "simplicidade tão apurada é privilégio de alguns raros eleitos". Nem que</p><p>fosse por essa única afirmação, essa obra permanece hoje em dia, quando o jargão</p><p>também invadiu tantos livros de história, de uma atualidade espantosa.</p><p>A própria expressão "legitimidade da história", empregada por Marc Bloch desde</p><p>as primeiras linhas, mostra que para ele o problema epistemológico da história não é</p><p>apenas um problema intelectual e científico, mas também um problema cívico e mesmo</p><p>moral. O historiador tem responsabilidades e deve "prestar contas". Marc Bloch coloca</p><p>assim o historiador entre os artesãos que devem dar provas de consciência profissional,</p><p>mas, e aí está a marca de seu gênio ao pensar imediatamente na longa duração histórica,</p><p>"o debate ultrapassa, em muito, os pequenos escrúpulos de uma moral corporativa.</p><p>Nossa civilização ocidental inteira está interessada nele." Eis simultaneamente afirmadas</p><p>a civilização como objeto privilegiado do historiador e a disciplina histórica como</p><p>testemunha e parte integrante da civilização.</p><p>E imediatamente, numa perspectiva de história comparativa, Marc Bloch assinala</p><p>que, "diferentemente de outros tipos de cultura, a civilização ocidental sempre esperou</p><p>muito de sua memória", e assim é introduzido um par fundamental para o historiador e</p><p>para o amante da história: história e memória — memória que é uma das principais</p><p>matérias-primas da história, mas que não se identifica com ela. Logo a seguir é</p><p>apresentada a explicação de um fenômeno que não é apenas constatado. Essa atenção</p><p>em relação à memória é ao mesmo tempo, para o Ocidente, herança da Antiguidade e</p><p>herança do cristianismo.</p><p>18 Apologia da história</p><p>Seguem-se algumas linhas resumidas por uma fórmula lapidar, da qual talvez ainda</p><p>não se tenha extraído toda a fecundidade: "O cristianismo é uma religião de</p><p>historiadores." A esse propósito, Marc Bloch menciona dois fenômenos que para ele</p><p>estão no cerne da história: a duração, de um lado, matéria concreta do tempo, e a</p><p>aventura, de outro, forma individual e coletiva da vida dos homens, arrastados ao</p><p>mesmo tempo pelos sistemas que os superam e confrontados a um acaso no qual se</p><p>exprime com frequência a mobilidade da história. Marc Bloch também falará mais</p><p>adiante das "aventuras do corpo".</p><p>Embora depois Marc Bloch estime que os franceses mostram menos interesse por</p><p>sua história do que os alemães pela sua, não estou seguro de que tenha razão. Mas creio</p><p>que temos aí a expressão de um sentimento profundo de Marc Bloch a respeito dos</p><p>alemães, sentimento que advém tanto da experiência de sua temporada estudantil na</p><p>Alemanha em 1907-8 como de sua experiência de historiador. Há na historiografia alemã</p><p>e na própria história alemã (Marc Bloch, não esqueçamos, escreveu durante a guerra)</p><p>uma orientação perigosa vinda do passado, vinda da história.</p><p>Esse juízo emitido sobre as relações dos franceses com sua história também é</p><p>marcado pela angústia da derrota, e o pessimismo no qual vive Marc Bloch o leva a</p><p>previsões apocalípticas. Segundo ele, se os historiadores não ficarem vigilantes, a história</p><p>arrisca-se a naufragar no descrédito e desaparecer de nossa civilização. Trata-se,</p><p>naturalmente, da história como disciplina histórica, e Marc Bloch tem consciência de</p><p>que, diferentemente da história, co-extensiva à vida humana, a ciência histórica é um</p><p>fenômeno ele mesmo histórico, submetido às condições históricas. Legitimidade da</p><p>história, mas também fragilidade da história.</p><p>Entretanto, mal Marc Bloch evocou esse apocalíptico fim da história, seu olhar</p><p>mais lúcido de historiador, alimentado pelo otimismo fundamental do homem, propõe</p><p>uma visão dos acontecimentos históricos mais serena e mais esperançosa. "Nossas tristes</p><p>sociedades", diz, e a proximidade com os Tristes trópicos de Claude Lévi-Strauss me</p><p>parece impressionante, "põem-se a duvidar de si próprias" e se perguntam se o passado</p><p>não é culpado, seja por tê-las enganado, seja por não terem sabido interrogá-lo. Mas a</p><p>explicação de suas angústias é que essas "tristes sociedades" estão "em perpétua crise de</p><p>crescimento": ali onde outros historiadores teriam falado de declínio, de decadência,</p><p>Marc Bloch, que analisou tanto períodos de crise como períodos de mutação, de</p><p>crescimento, confere de novo um sentido positivo e uma esperança a essas sociedades e</p><p>aos movimentos da história.</p><p>Entrar no teor deste livro é portanto grave. Trata-se de um tema sério, abordado</p><p>em uma situação dramática. No entanto, Marc Bloch logo reencontra e repete uma das</p><p>virtudes da história: ela "distrai". Antes do desejo de conhecimento, ela é estimulada</p><p>pelo "simples gosto". E eis reabilitados, num lugar decerto marginal,</p><p>Prefácio 19</p><p>limitado, a curiosidade e o romance histórico colocados a serviço da história: os leitores</p><p>de Alexandre Dumas talvez não sejam senão "historiadores em potencial". É preciso,</p><p>portanto, para fazer a boa história, para ensiná-la, para fazê-la ser amada, não esquecer</p><p>que, ao lado de suas "necessárias austeridades", a história "tem seus gozos estéticos</p><p>próprios". Do mesmo modo, ao lado do necessário rigor ligado à erudição e à</p><p>investigação dos mecanismos históricos, existe a "volúpia de apreender coisas</p><p>singulares"; daí esse conselho, que me parece também muito benvindo ainda hoje:</p><p>"Evitemos retirar de nossa ciência sua parte de poesia."</p><p>Escutemos bem Marc Bloch. Ele não diz: a história é uma arte, a história é</p><p>literatura. Frisa: a história é uma ciência, mas uma ciência que tem como uma de suas</p><p>características, o que pode significar sua fraqueza mas também sua virtude, ser poética,</p><p>pois não pode ser reduzida a abstrações, a leis, a estruturas.</p><p>Buscando definir "a utilidade" da história, Marc Bloch encontra então o ponto de</p><p>vista dos "positivistas" (e, sempre preocupado em distinguir os historiadores peculiares</p><p>dos historiadores sistemáticos, acrescenta "de estrita observância").</p><p>Seria preciso um estudo aprofundado desse termo e de seu uso por Marc Bloch e</p><p>pelos historiadores dos Annales. Hoje em dia ele provoca reticência e até mesmo</p><p>hostilidade, inclusive em historiadores abertos ao espírito dos Annales. Apenas posso</p><p>esboçar aqui as orientações de uma pesquisa e de uma reflexão. Os historiadores</p><p>"positivistas" visados por Marc Bloch são marcados pela filosofia "positivista" do final</p><p>do século XIX, a escola de Augusto Comte — que era uma filosofia ainda dominante</p><p>através de nuances muitas vezes profundas (pois Renouvier, por exemplo, morto em</p><p>1903, muitas vezes qualificado de "positivista", é bem diferente de um simples discípulo</p><p>de Comte) e que constituía o fundo da ideologia filosófica na França na época em que</p><p>Marc Bloch era estudante. Mas também elaboraram um pensamento específico no</p><p>domínio da história, e esse pensamento, que tinha o mérito, que Marc Bloch não lhe</p><p>negava, de buscar dar fundamentos objetivos, "científicos", à demarche histórica,</p><p>apresentava sobretudo o grande</p><p>a todas as flutuações da consciência</p><p>coletiva ou do capricho pessoal, a história, ao permitir muito frequentemente que o</p><p>quadro de honra prevaleça sobre a caderneta de experiências, gratuitamente deu-se ares</p><p>da mais incerta das disciplinas: às ocas acusações sucedem as incontáveis vãs</p><p>reabilitações. Robespierristas, anti-robespierristas, nós vos imploramos: por piedade,</p><p>dizei-nos simplesmente quem foi Robespierre.</p><p>Além disso, se o julgamento apenas acompanhava a explicação, o leitor estará livre</p><p>para pular a página. Por infelicidade, à força de julgar, acaba-se, quase fatalmente, por</p><p>perder até o gosto de explicar. Com as paixões do passado misturando seus reflexos aos</p><p>partis pris do presente, o olhar se turva sem remédio e, assim como o mundo dos</p><p>maniqueus, a humana realidade vira apenas um quadro em preto e branco. Montaigne já</p><p>nos chamara a atenção: "A partir do momento em que o julgamento pende para um</p><p>lado, não se pode evitar de contornar e distorcer a narração nesse viés." Do mesmo</p><p>modo, para penetrar uma consciência estranha separada de nós pelo intervalo das</p><p>gerações, é preciso quase se despojar de seu próprio eu. Para lhe dizer algumas verdades,</p><p>basta permanecer o que se é. O esforço é certamente menos rude. Assim como é muito</p><p>mais fácil escrever pró ou contra Lutero do que escrutar sua alma; acreditar que o papa</p><p>Gregório VII está acima do imperador Henrique IV ou Henrique IV acima de Gregório</p><p>VII do que desemaranhar as razões profundas de um dos grandes dramas da civilização</p><p>1 Três folhas manuscritas, respectivamente numeradas IV-2, IV-3, IV-4, contêm, a partir</p><p>das palavras "que um juízo de valor" até o título da segunda seção do capítulo "Da</p><p>diversidade dos fatos humanos à unidade de consciência" o texto aqui reproduzido, que</p><p>serviu para a datilografia.</p><p>A análise histórica — 127</p><p>ocidental! Vejam ainda, fora do plano individual, a questão dos bens nacionais.</p><p>Rompendo com a legislação anterior, o governo revolucionário resolve vendê-los em</p><p>parcelas e sem licitação. Era, incontestavelmente, comprometer gravemente os interesses</p><p>do Tesouro. Certos eruditos, em nossos dias, ergueram-se veementemente contra essa</p><p>política. Que coragem caso, presentes na Convenção, ali tivessem ousado falar nesse</p><p>tom! Longe da guilhotina, essa violência sem perigo diverte. Mais vale investigar o que</p><p>queriam, realmente, os homens do ano III. Almejavam, antes de tudo, favorecer a</p><p>aquisição da terra por seu pequeno povo da província; ao equilíbrio do orçamento,</p><p>preferiam consolar os camponeses pobres, garante de sua fidelidade a uma nova ordem.</p><p>Estavam errados? Ou tinham razão? Quanto a isso, o que me importa a decisão</p><p>retardatária de um historiador? Apenas lhe pedimos que não se deixe hipnotizar por sua</p><p>própria escolha a ponto de não mais conceber que uma outra, outrora, tenha sido</p><p>possível. A lição do desenvolvimento intelectual da humanidade é no entanto clara: as</p><p>ciências sempre se mostraram mais fecundas e, por conseguinte, muito mais proveitosas,</p><p>enfim, para a prática, na medida em que abandonavam mais deliberadamente o velho</p><p>antropocentrismo do bem e do mal. Hoje riríamos de um químico que separasse os</p><p>gases ruins, como o cloro, dos bons, como o oxigênio. Mas se a química, em seus</p><p>primórdios, tivesse adotado essa classificação, teria corrido o sério risco de nela</p><p>chafurdar, em grande detrimento do conhecimento dos corpos.</p><p>Resguardemo-nos, contudo, de precipitar a analogia. A nomenclatura de uma</p><p>ciência dos homens terá sempre seus traços específicos. A das ciências do mundo físico</p><p>exclui o finalismo. Palavras como sucesso ou acaso, inabilidade ou habilidade, apenas</p><p>seriam capazes de desempenhar aí, no melhor dos casos, o papel de ficções, sempre</p><p>prenhes de perigos. Elas pertencem, ao contrário, ao vocabulário normal da história.</p><p>Pois a história lida com seres capazes, por natureza, de fins conscientemente</p><p>perseguidos.</p><p>Podemos admitir que um comandante de exército que trava uma batalha</p><p>empenhe-se, ordinariamente, em vencê-la. Caso a perca, sendo as forças, de ambos os</p><p>lados, aproximadamente iguais, será perfeitamente legítimo dizer que manobrou mal.</p><p>Era-lhe habitual um acidente assim? Tampouco escaparemos do mais escrupuloso</p><p>julgamento de fato observando que este não era provavelmente um estratagema muito</p><p>bom. Seja ainda uma mudança monetária, cujo objeto era, suponhamos, favorecer os</p><p>devedores à custa dos credores. Qualificá-la de excelente ou deplorável seria tomar</p><p>partido em favor de um dos dois grupos; por conseguinte, transportar arbitrariamente,</p><p>para o passado, uma noção toda subjetiva do bem público. Mas imaginemos que,</p><p>casualmente, a operação destinada a aliviar o peso das dívidas tenha desembocado, na</p><p>prática — isso foi visto —, em um resultado oposto. "Fracassou" dizemos, sem nada</p><p>fazer com isso senão constatar, honestamente, uma realidade. O ato falho é um dos</p><p>elementos essenciais da evolução humana. Assim como de toda psicologia.</p><p>128 Apologia da história</p><p>E mais. Nosso general, por acaso, conduziu voluntariamente suas tropas à</p><p>derrota? Ninguém hesitará em declarar que traiu: porque, sem rodeios, é assim que a</p><p>coisa se chama. Mostrar-se-ia, por parte da história, uma delicadeza algo pedante em</p><p>recusar o socorro do simples e correto léxico do uso comum. Restará depois investigar o</p><p>que a moral comum da época ou do grupo pensava de tal ato. A traição pode ser, a seu</p><p>modo, um conformismo: como testemunham os condottieri da antiga Itália.</p><p>Uma palavra, para resumir, domina e ilumina nossos estudos: "compreender".</p><p>Não digamos que o historiador é alheio às paixões; ao menos, ele tem esta. Palavra, não</p><p>dissimulemos, carregada de dificuldades, mas também de esperanças. Palavra, sobretudo,</p><p>carregada de benevolência. Até na ação, julgamos um pouco demais. É cômodo gritar "à</p><p>forca!". Jamais compreendemos o bastante. Quem difere de nós — estrangeiro,</p><p>adversário político — passa, quase necessariamente, por mau. Inclusive, para travar as</p><p>inevitáveis lutas, um pouco mais de compreensão das almas seria necessário; com mais</p><p>razão ainda para evitá-las, enquanto ainda há tempo. A história, com a condição de ela</p><p>própria renunciar a seus falsos ares de arcanjo, deve nos ajudar a curar esse defeito. Ela é</p><p>uma vasta experiência de variedades humanas, um longo encontro dos homens. A vida,</p><p>como a ciência, tem tudo a ganhar se esse encontro for fraternal.</p><p>2. Da diversidade dos fatos humanos à unidade da consciência</p><p>Compreender, no entanto, nada tem de uma atitude de passividade. Para fazer</p><p>uma ciência, será sempre preciso duas coisas: uma realidade, mas também um homem. A</p><p>realidade humana, como a do mundo físico, é enorme e variegada. Uma simples</p><p>fotografia, supondo mesmo que a idéia dessa reprodução mecanicamente integral tivesse</p><p>um sentido, seria ilegível. Dirão que, entre o que foi e nós, os documentos já interpõem</p><p>um primeiro filtro? Sem dúvida, eliminam, frequentemente a torto e a direito. Quase</p><p>nunca, em contrapartida, organizam de acordo com as exigências de um entendimento</p><p>que quer conhecer. Assim como todo cientista, como todo cérebro que, simplesmente,</p><p>percebe, o historiador escolhe e tria. Em uma palavra, analisa.</p><p>Tenho sob os olhos uma inscrição funerária romana: texto de um único bloco,</p><p>estabelecido com uma só intenção. Porém, os testemunhos que esperam pela varinha de</p><p>condão do erudito são de natureza bastante diferente2. Dedicamo-nos</p><p>2 Essa frase é resultado de uma correção manuscrita que figura abaixo do texto</p><p>datilografado, de tal modo rasurada que torna impossível sua leitura. Não podemos</p><p>portanto apresentar a versão antes da correção.</p><p>A análise histórica 129</p><p>aos fatos de linguagem? As palavras, a sintaxe dirão o estado do latim tal as pessoas</p><p>esforçavam-se por escrevê-lo nessa época e nesse lugar e, transparentemente, através</p><p>dessa língua semiculta, transparecerá o falar de todo dia. Nossa predileção dirige-se às</p><p>crenças? Estamos em pleno coração das esperanças no além-túmulo.</p><p>À vida política?</p><p>Um nome de imperador, uma data de magistratura nos deixarão satisfeitíssimos. À</p><p>economia? O epitáfio revelará, talvez, um ofício ignorado. E paro por aqui. Em lugar de</p><p>um documento isolado, consideremos agora, conhecido por documentos numerosos e</p><p>variados, um momento qualquer no desenrolar de uma civilização. Dos homens que</p><p>viviam então, não havia um que não participasse, quase simultaneamente, de múltiplos</p><p>aspectos do destino humano: que não falasse e não se fizesse entender por seus vizinhos;</p><p>que não tivesse seus deuses; que não fosse produtor, traficante ou simples consumidor;</p><p>que, não tendo papel nos acontecimentos políticos, não sofresse pelo menos seus</p><p>desdobramentos. Será possível retraçar todas essas diversas atividades, cujo conjunto</p><p>compõe uma sociedade, de roldão, voando incessantemente de uma para outra, no</p><p>próprio emaranhado, em suma, em que são apresentadas por cada documento ou cada</p><p>vida, individual ou coletiva? Isso seria sacrificar a clareza, não em detrimento da ordem</p><p>verdadeira do real, que é feita de afinidades naturais e ligações profundas, mas da ordem</p><p>puramente aparente do sincronismo. Uma caderneta de experiências não se confunde</p><p>com o diário, minuto por minuto, do que acontece dentro do laboratório.</p><p>Do mesmo modo, quando, ao longo da evolução humana, acreditamos discernir</p><p>entre certos fenômenos o que chamamos um parentesco, o que entendemos por isso</p><p>senão que cada tipo de instituições, de crenças, de práticas, ou mesmo de</p><p>acontecimentos assim distinguidos, parece exprimir uma tendência particular e, até certo</p><p>ponto, estável do indivíduo ou da sociedade? Negaremos por exemplo que, através de</p><p>todos os contrastes, não haja algo de comum entre as emoções religiosas? Resulta daí</p><p>necessariamente que compreenderemos sempre melhor um fato humano, qualquer que</p><p>seja, se já possuirmos a compreensão de outros fatos do mesmo gênero. O uso que a</p><p>primeira época feudal fazia da moeda como padrão dos valores, bem antes que como</p><p>meio de pagamento, diferia profundamente daquele que lhe atribuía a economia</p><p>ocidental por volta de 1850; entre o regime monetário de meados do século XIX e o</p><p>nosso, os contrastes, por sua vez, não são menos vivos. No entanto, não acho que um</p><p>erudito, que só tivesse descoberto a moeda por volta do ano mil, conseguisse apreender</p><p>facilmente as próprias originalidades de seu emprego, nessa data. É o que justifica certas</p><p>especializações, de certo modo, verticais: no sentido, é evidente, infinitamente modesto</p><p>em que as especializações nunca são legítimas, isto é, como remédios contra a falta de</p><p>extensão de nosso espírito e a brevidade de nossos destinos.</p><p>Tem mais. Ao deixar de classificar racionalmente uma matéria que nos foi</p><p>entregue toda bruta, acabaríamos, afinal de contas, por negar apenas o tempo, por</p><p>130 Apologia da história</p><p>conseguinte a própria história. Pois esse estado do latim, poderemos compreendê-lo se</p><p>não o desligarmos do desenvolvimento anterior da língua? Essa estrutura da</p><p>propriedade, essas crenças não eram, certamente, começos absolutos. Na medida em que</p><p>sua determinação é operada do mais antigo para o mais recente, os fenômenos humanos</p><p>se orientam, antes de tudo, por cadeias de fenômenos semelhantes. Classificá-los por</p><p>gêneros é portanto desvelar linhas de força de uma eficácia capital.</p><p>Mas, exclamarão alguns, as linhas3 que você estabelece entre os diversos modos da</p><p>atividade humana estão apenas em seu espírito; não estão na realidade, onde tudo se</p><p>confunde. Você usa portanto de "abstração". De acordo. Por que temer as palavras?</p><p>Nenhuma ciência seria capaz de prescindir da abstração. Tampouco, aliás, da</p><p>imaginação. É significativo, seja dito de passagem, que os mesmos espíritos, que</p><p>pretendem banir a primeira, manifestem geralmente um igual mau humor pela segunda.</p><p>É, das duas partes, o mesmo positivismo mal-compreendido. As ciências do homem não</p><p>são exceção. François Simiand ergueu-se, há tempos, com justo vigor, contra as</p><p>"brincadeiras nominalistas" cujo "singular privilégio" pretendia-se-lhes reservar. Em que</p><p>a função clorofílica é mais "real" no sentido do extremo realismo, que a função</p><p>econômica? Um nome abstrato jamais representa senão um rótulo de classificação. Tudo</p><p>o que se tem direito de exigir dele é que agrupe os fatos segundo uma ordem útil para</p><p>seu conhecimento. Apenas as classificações arbitrárias são funestas. Cabe ao historiador</p><p>experimentar incessantemente as suas para revisá-las, se for o caso, e, sobretudo,</p><p>flexibilizá-las. Aliás, elas são necessariamente de natureza bastante variável.</p><p>Vejam, por exemplo, o que se chama usualmente de "história do direito". O</p><p>ensino e o manual, que são admiráveis instrumentos de esclerose, vulgarizaram o nome.</p><p>Vejamos mais de perto, porém, o que este abrange. Uma regra de direito é uma norma</p><p>social, explicitamente imperativa; sancionada, além disso, por uma autoridade capaz de</p><p>impor seu respeito com a ajuda de um sistema preciso de coerções e de punições. Na</p><p>prática, tais preceitos podem reger as atividades mais diversas. Nunca são os únicos a</p><p>governá-las: obedecemos, constantemente, em nosso comportamento cotidiano, a</p><p>códigos morais, profissionais, mundanos, não raro muito mais imperiosos que o Código</p><p>puro e simples. As fronteiras deste oscilam incessantemente, aliás; e para ser ou não</p><p>inserida nele, uma obrigação socialmente reconhecida não muda evidentemente de</p><p>natureza. O direito, no sentido estrito do termo, é portanto o envoltório formal de</p><p>realidades em si</p><p>3 Depois de "alguns", três ou quatro palavras estão riscadas, de modo que são</p><p>indecifráveis. O texto datilografado legível retoma em "que". Além disso, a palavra</p><p>"linhas" não apresenta um caráter de certeza.</p><p>A análise histórica 131</p><p>mesmas extremamente variadas para fornecer, com proveito, o objeto de um estudo</p><p>único; e não esgota nenhum deles. Será que para explorar a vida da família, quer se trate</p><p>da pequena família matrimonial de hoje, vivendo perpétuas sístoles e diástoles, ou da</p><p>grande linhagem medieval — essa coletividade cimentada por uma rede fortíssima de</p><p>sentimentos e de interesses —, basta enumerar uns depois dos outros os artigos de um</p><p>direito de família qualquer? Parece que às vezes já se acreditou nisso: com alguns</p><p>decepcionantes resultados, a impotência em que hoje permanecemos de retraçar a íntima</p><p>evolução da família francesa o denuncia com clareza. No entanto, há, na noção do fato</p><p>jurídico como distinto dos outros, algo de exato. É que, ao menos em numerosas</p><p>sociedades, a aplicação e, em larga medida, a própria elaboração das regras de direito</p><p>foram obra própria de um grupo de homens relativamente especializado e, nesse papel</p><p>(que seus membros podiam naturalmente combinar com outras funções sociais),</p><p>suficientemente autônoma para possuir suas tradições próprias e, com frequência, até</p><p>uma lógica de raciocínio particular. A história do direito, em suma, poderia muito bem</p><p>só ter existência separada como história dos juristas: o que não é, para um ramo de uma</p><p>ciência dos homens, maneira tão ruim de existir. Entendida nesse sentido, ela lança sobre</p><p>fenômenos bastante diversos, mas submetidos a uma ação humana comum, luzes</p><p>forçosamente incompletas, mas, em seus limites, bastante reveladoras. Ela apresenta um</p><p>ponto de vista sobre o real.</p><p>Um gênero completamente diferente de divisão é fornecido pela disciplina que se</p><p>adotou chamar "geografia humana" Aqui, o ângulo de visada não é focado na ação de</p><p>uma mentalidade de grupo, como é o caso, sem que ela nem sempre se dê conta, para a</p><p>história do direito; nem, tampouco, como para a história religiosa ou a história</p><p>econômica, na natureza específica de um fato humano: crenças, emoções, elãs do</p><p>coração e frêmitos da alma, inspirados pela imagem de forças alheias à humanidade, ou</p><p>esforços para satisfazer e organizar as necessidades materiais. A busca centra-se em um</p><p>tipo de ligações comuns a um grande número de fenômenos sociais. "A</p><p>antropogeografia" estuda</p><p>as sociedades em suas relações com o meio físico: trocas de</p><p>sentido duplo, isso é claro, em que o homem age incessantemente sobre as coisas ao</p><p>mesmo tempo que estas sobre ele. Aqui, portanto, nada mais nada menos que uma</p><p>perspectiva, que outras perspectivas deverão completar. Este é, com efeito, em qualquer</p><p>ordem de investigação, o papel de uma análise. A ciência decompõe o real apenas a fim</p><p>de melhor observá-lo, graças a um jogo de fogos cruzados cujos raios constantemente se</p><p>combinam e interpenetram. O perigo começa quando cada projetor pretende ver tudo</p><p>sozinho; quando cada canto do saber é tomado por uma pátria.</p><p>Mais uma vez, contudo, desconfiemos de postular, entre as ciências da natureza e</p><p>uma ciência dos homens, não sei que paralelismo falsamente geométrico. Na vista</p><p>132 Apologia da história</p><p>que tenho de minha janela, cada cientista pega o seu quinhão, sem muito se ocupar do</p><p>conjunto. O físico explica o azul do céu, o químico a água do riacho, o botânico a relva.</p><p>O cuidado de recompor a paisagem, tal como a percebo e me comove, eles deixam para</p><p>a arte, se o pintor ou o poeta houverem por bem dela se encarregar. É que a paisagem,</p><p>como unidade, existe apenas em minha consciência e o que é próprio do método</p><p>científico — como essas formas do saber o praticam e, pelo sucesso que fazem, o</p><p>justificam — é abandonar deliberadamente o contemplador para conhecer apenas os</p><p>objetos contemplados. Os laços que nosso espírito tece entre as coisas lhes parecem</p><p>arbitrários; elas os rompem, preconcebidamente, para restabelecer uma diversidade a seu</p><p>ver mais autêntica. Logo, entretanto, o mundo orgânico estará formulando problemas</p><p>mais delicados para seus analistas. O biólogo pode efetivamente, por maior comodidade,</p><p>estudar à parte a respiração, a digestão, as funções motoras; não ignora que, acima disso</p><p>tudo, há o indivíduo do qual é preciso dar conta. Mas as dificuldades da história são</p><p>também de uma outra essência. Pois, em última instância, ela tem como matéria</p><p>precisamente consciências humanas. As relações estabelecidas através destas, as</p><p>contaminações, até mesmo as confusões da qual são terreno constituem, a seus olhos, a</p><p>própria realidade.</p><p>Ora, homo religiosus, homo oeconomicus, homo politicus, toda essa ladainha de</p><p>homens em us, cuja lista poderíamos estender à vontade, evitemos tomá-los por outra</p><p>coisa do que na verdade são: fantasmas cômodos, com a condição de não se tornarem</p><p>um estorvo. O único ser de carne e osso é o homem, sem mais, que reúne ao mesmo</p><p>tempo tudo isso.</p><p>Certamente as consciências têm seus biombos interiores, que alguns dentre nós</p><p>mostram-se particularmente hábeis em erguer. Gustave Lenotre não cansava de se</p><p>espantar com a presença de tantos pais de família entre os Terroristas. Mesmo que</p><p>nossos grandes revolucionários tenham sido autênticos bebedores de sangue cuja</p><p>descrição causava pruridos tão agradáveis em um público confortavelmente</p><p>aburguesado, esse espanto não deixa de trair uma psicologia bem tacanha. Quantos</p><p>homens levam, em três ou quatro planos diferentes, diversas vidas que almejavam</p><p>distintas e conseguem algumas vezes manter como tais! Daí, porém, a negar a unidade</p><p>essencial do eu e as constantes interpenetrações dessas diversas atitudes vai uma grande</p><p>distância. Eram dois estranhos um para o outro, Pascal matemático e Pascal cristão?</p><p>Nunca cruzavam seus caminhos o douto médico François Rabelais e mestre Alcofribas</p><p>de pantagruélica memória? No exato momento em que os papéis alternadamente</p><p>assumidos pelo ator único parecerem se opor tão brutalmente quanto os personagens</p><p>estereotipados de um melodrama, é possível que, ao examinarmos melhor, essa antítese</p><p>seja apenas a máscara de uma solidariedade mais profunda. Zombou-se do elegíaco</p><p>Floriano, que, parece, batia em suas amantes; talvez não espalhasse em seus versos tanta</p><p>A análise histórica 133</p><p>doçura senão para melhor se consolar por não conseguir colocá-la em prática em sua</p><p>conduta. Quando o comerciante medieval, depois de haver, ao longo do dia, violado os</p><p>mandamentos da Igreja sobre a usura e o preço justo, ia rezar para Nossa Senhora, e</p><p>depois, no crepúsculo de sua vida, assumia funções pias e esmoleres; quando o grande</p><p>manufaturador dos "tempos difíceis" construía hospitais com o dinheiro poupado sobre</p><p>os miseráveis salários de crianças em andrajos, buscavam eles apenas, como em geral se</p><p>diz, garantir, contra os raios celestes, um certo grau de proteção, ou então, com essas</p><p>explosões de fé ou de caridade, também não satisfaziam, sem demasiadamente exprimi-</p><p>lo, necessidades secretas do coração que a dura prática cotidiana os havia condenado a</p><p>recalcar? Há contradições que se parecem muito com fugas4.</p><p>Prescinde-se dos homens na sociedade? Como esta, de qualquer maneira que se a</p><p>considere, só poderia ser, no final das contas, não diremos uma soma (seria, sem dúvida,</p><p>dizer muito pouco), mas um produto de consciências individuais, ninguém se espantará</p><p>de nela descobrir o mesmo jogo de perpétuas interações. É um fato certo que, do século</p><p>XII à Reforma pelo menos, as comunidades dos tecelões constituíram um dos terrenos</p><p>privilegiados de heresias. Eis seguramente um belo assunto para uma ficha de história</p><p>religiosa. Coloquemos portanto cuidadosamente esse pedaço de cartolina em sua gaveta.</p><p>Nos escaninhos vizinhos etiquetados, dessa vez, "histórica econômica", lancemos uma</p><p>segunda safra de anotações. Acreditamos com isso ter dado conta dessas trêfegas</p><p>sociedadezinhas de teares? Ainda falta muito para explicá-las, uma vez que um de seus</p><p>traços fundamentais foi não fazer coexistir o religioso com o econômico, mas entrelaçá-</p><p>los. Atingido por "essa espécie de certeza, de segurança, de base moral", de que algumas</p><p>gerações vindas imediatamente antes da nossa parecem ter gozado com espantosa</p><p>plenitude, Lucien Febvre descobre para isso, acima de tudo, duas razões: o império</p><p>sobre as inteligências do sistema cosmológico de De Laplace e "a anormal fixidez" do</p><p>regime monetário. Nenhum fato humano de natureza, aparentemente, mais oposta do</p><p>que estes. Colaboraram no entanto para dar à atitude mental de um grupo sua tonalidade</p><p>mais característica.</p><p>Sem dúvida, não mais que no seio de qualquer consciência pessoal, essas relações</p><p>em escala coletiva não são simples. Não se ousaria mais escrever hoje em dia, pura e</p><p>simplesmente, que a literatura é "a expressão da sociedade". Pelo menos não o é de</p><p>forma alguma no sentido em que um espelho "exprime" o objeto refletido. Ela pode</p><p>traduzir tanto reações de defesa quanto uma concordância. Ela</p><p>4 A página datilografada numerada IV-11 termina com essas palavras. Falta a página IV-</p><p>12, de modo que se recorreu ao texto datilografado estabelecido segundo as instruções</p><p>de Lucien Febvre para reconstituí-la.</p><p>134 Apologia da história</p><p>carreia, quase inevitavelmente5, um grande número de temas herdados, de mecanismos</p><p>formais aprendidos na oficina, antigas convenções estéticas, que são também causas de</p><p>atraso. "Na mesma data", escreve com sagacidade o sr. Focillon, "o político, o</p><p>econômico, o artístico não ocupam" — eu preferiria "não ocupam forçosamente" — "a</p><p>mesma posição em suas curvas respectivas" Mas é a defasagens, precisamente, que a vida</p><p>social deve seu ritmo quase sempre entrecortado. Do mesmo modo, na maior parte dos</p><p>indivíduos, as diversas almas, para falar a linguagem pluralista da antiga psicologia,</p><p>raramente têm uma idade igual: quantos homens maduros conservam ainda recônditos</p><p>de infância!</p><p>Michelet explicava, em 1837, a Sainte-Beuve: "Se eu tivesse introduzido apenas a</p><p>história política na narração, se não houvesse tratado dos elementos diversos da história</p><p>(religião, direito, geografia, literatura, arte etc.), minha atitude teria sido completamente</p><p>outra. Mas era preciso um grande movimento vital, porque todos esses diversos</p><p>elementos distintos gravitavam juntos na unidade do relato." Em 18806, Fustel de</p><p>Coulanges, por sua vez, dizia a seus ouvintes da Sorbonne: "Suponham cem</p><p>especialistas</p><p>dividindo, por lotes, o passado da França: vocês acreditam que no final eles tenham feito</p><p>a história da França? Duvido muito; faltar-lhes-ia pelo menos o liame dos fatos; ora esse</p><p>liame também é uma verdade histórica." "Movimento vital", "liame": a oposição das</p><p>imagens é significativa. Michelet pensava, sentia sob os augúrios do orgânico; filho de</p><p>uma época à qual o universo newtoniano parecia fornecer o modelo acabado da ciência,</p><p>Fustel recebia suas metáforas do espaço. A concordância fundamental entre os dois</p><p>apenas torna isso mais sonoro. Esses dois grandes historiadores eram grandes demais</p><p>para ignorá-lo: não mais que um indivíduo, uma civilização nada tem de um jogo de</p><p>paciência, mecanicamente arranjado; o conhecimento dos fragmentos, sucessivamente</p><p>estudados, cada um por si, jamais propiciará o do todo; não propiciará sequer o dos</p><p>próprios fragmentos.</p><p>Mas o trabalho de recomposição, ao qual nos convidavam tanto Michelet como</p><p>Fustel, só poderia vir depois da análise. Sejamos mais claros: ele próprio não é senão o</p><p>prolongamento da análise, como sua razão de ser. Na imagem primitiva, antes</p><p>contemplada do que observada, como teriam sido discernidas as ligações, já que nada se</p><p>distinguia? Sua rede delicada só podia aparecer uma vez os fatos classificados</p><p>inicialmente por linhagens específicas. Do mesmo modo, para permanecer fiel à vida, no</p><p>constante entrecruzamento de suas ações e reações, não é de forma alguma necessário</p><p>pretender abraçá-la por inteiro, por um esforço geralmente muito vasto para as</p><p>possibilidades de um único cientista. Nada mais legíti-</p><p>5 Aqui termina o texto extraído do estabelecido por Lucien Febvre.</p><p>6 Marc Bloch havia deixado um branco no lugar da data. Retomamos a que figurava na</p><p>edição precedente.</p><p>A análise histórica 135</p><p>mo, nada mais saudável do que centrar o estudo de uma sociedade em um desses</p><p>aspectos particulares, ou, melhor ainda, em um dos problemas precisos que levanta este</p><p>ou aquele desses aspectos: crenças, estrutura das classes ou dos grupos, as crises</p><p>políticas... Por meio dessa escolha meditada, os problemas não apenas serão, em geral,</p><p>mais firmemente colocados: inclusive os fatos de contato e de troca ressairão com mais</p><p>clareza. Com a condição, simplesmente, de se querer descobri-los. Gostariam de</p><p>conhecer de fato esses grandes comerciantes da Europa do Renascimento, vendedores</p><p>de tecidos ou de especiarias, monopolizadores de cobre, de mercúrio ou de alume,</p><p>banqueiros dos imperadores e dos reis através de suas próprias mercadorias? Não será</p><p>indiferente lembrarem-se que eram pintados por Holbein, que liam Erasmo ou Lutero.</p><p>A fim de compreenderem a atitude do vassalo para com seu senhor, será preciso</p><p>também informarem-se sobre qual era sua atitude para com Deus. O historiador nunca</p><p>sai do tempo. Mas, por uma oscilação necessária, que o debate sobre as origens já nos</p><p>deu à vista, ele considera ora7 as grandes ondas de fenômenos aparentados que</p><p>atravessam, longitudinalmente, a duração, ora o momento humano em que essas</p><p>correntes se apertam no nó poderoso das consciências.</p><p>3. A nomenclatura</p><p>Seria então pouca coisa limitar-se a discernir em um homem ou uma sociedade os</p><p>principais aspectos de sua atividade. No seio de cada um de seus grandes grupos de</p><p>fatos, um novo e mais delicado esforço de análise é necessário. É preciso distinguir as</p><p>diversas instituições que compõem um sistema político, as diversas crenças, práticas,</p><p>emoções de que é feita uma religião. É preciso, em cada uma dessas peças e nos próprios</p><p>conjuntos, caracterizar os traços que ora os aproximam, ora os desviam das realidades de</p><p>mesma ordem... Problema de classificação inseparável, na prática, do problema</p><p>fundamental da nomenclatura.</p><p>Pois toda análise requer primeiro, como instrumento, uma linguagem apropriada</p><p>capaz de desenhar com precisão os contornos dos fatos, embora conservando a</p><p>flexibilidade necessária para se adaptar progressivamente às descobertas, uma linguagem</p><p>sobretudo sem flutuações nem equívocos. Ora, é aí que o sapato aperta, para nós</p><p>historiadores. Um escritor de espírito aguçado, que não nos aprecia, enxergou bem:</p><p>"Esse momento capital das definições e das convenções nítidas e específicas que vêm</p><p>substituir as significações de origem confusa e esta-</p><p>7 A página datilografada numerada IV-14 termina com essas palavras. Falta a página IV-</p><p>15. Procedeu-se portanto como indicado na nota 4.</p><p>136 Apologia da história</p><p>tística não chegou para a história." Assim fala o sr. Paul Valéry. Mas se é verdade que</p><p>essa hora de exatidão ainda não chegou, será impossível que chegue um dia? E, em</p><p>primeiro lugar, por que se mostra tão morosa para chegar?</p><p>A química forjou para si seu material de signos. Até suas palavras: "gás" é, se não</p><p>me engano, um dos raros vocábulos autenticamente inventados que a língua francesa</p><p>possui. É que a química tinha a grande vantagem de se dirigir a realidades incapazes, por</p><p>natureza, de se nomearem a si mesmas. A linguagem da percepção confusa, que ela</p><p>rejeitou, não era menos exterior às coisas e, nesse sentido, menos arbitrária do que a da</p><p>observação classificada e controlada pela qual foi substituída: quer se diga vitríolo ou</p><p>ácido sulfúrico, o corpo em nada interfere nisso. É totalmente diferente no caso de uma</p><p>ciência da humanidade. Para dar nomes a seus atos, a suas crenças e aos diversos</p><p>aspectos de sua vida de sociedade8, os homens não esperaram para vê-los tornarem-se o</p><p>objeto de uma pesquisa desinteressada. A história recebe seu vocabulário, portanto, em</p><p>sua maior parte, da própria matéria de seu estudo. Aceita-o, já cansado e deformado por</p><p>um longo uso; ambíguo, aliás, não raro desde a origem, como todo sistema de expressão</p><p>que não resulta do esforço severamente combinado dos técnicos.</p><p>O pior é que esses próprios empréstimos carecem de unidade. Os documentos</p><p>tendem a impor sua nomenclatura; o historiador, se os escuta, escreve sob o ditado de</p><p>uma época cada vez diferente. Mas pensa, por outro lado, naturalmente segundo as</p><p>categorias de sua própria época; por conseguinte, com as palavras desta: quando falamos</p><p>de patrícios, um contemporâneo do velho Catão nos teria compreendido; o autor, em</p><p>contrapartida, que evoca o papel da "burguesia" nas crises do Império Romano, como</p><p>traduziria em latim o nome e a idéia? Assim, duas orientações distintas compartilham,</p><p>quase necessariamente, a linguagem da história. Examinemos uma de cada vez.</p><p>Reproduzir ou decalcar a terminologia do passado pode parecer, à primeira vista,</p><p>um procedimento bastante seguro. Choca-se, porém, na aplicação, com múltiplas</p><p>dificuldades.</p><p>Em primeiro lugar, as mudanças das coisas estão longe de acarretar sempre</p><p>mudanças paralelas em seus nomes. Este é o procedimento natural do caráter</p><p>tradicionalista inerente a toda linguagem, assim como a pobreza de inventividade da qual</p><p>sofre a maioria dos homens.</p><p>A observação vale também para os utensílios, sujeitos no entanto a9 modificações</p><p>em geral bem radicais. Quando meu vizinho me diz: "vou sair de carro", devo</p><p>8 Aqui termina o texto extraído do estabelecido por Lucien Febvre.</p><p>9 A página datilografa numerada IV-16 termina com essas palavras. Falta a página IV-17.</p><p>Procedeu-se, portanto, como anteriormente.</p><p>A análise histórica 137</p><p>compreender que está falando de um veículo a cavalo? Ou de um automóvel? Apenas a</p><p>experiência que possuo, previamente, de seu estábulo ou de sua garagem me permitirá</p><p>responder. Aratrum designava, em princípio, o instrumento de trabalho da terra sem</p><p>rodas: carruca, o que era provido delas. Como, no entanto, o primeiro apareceu antes do</p><p>segundo, estaria eu seguro, se encontrasse em um texto a velha palavra, de que ela não</p><p>foi simplesmente mantida para o novo instrumento? Inversamente, Mathieu de</p><p>Dombasle chamou charrue o instrumento que imaginara e que, privado de rodas, era na</p><p>verdade um arado.</p><p>O quão, porém, esse apego ao nome herdado não parece mais forte a partir do</p><p>momento em que</p><p>consideramos realidades de uma ordem menos material! É que as</p><p>transformações, em tal caso, operam-se quase sempre muito lentamente para serem</p><p>perceptíveis aos próprios homens que afetam. Eles não experimentam a necessidade de</p><p>mudar o rótulo, porque a mudança do conteúdo lhes escapa. A palavra latina servus, que</p><p>deu em francês serf, atravessou os séculos. Mas ao preço de tantas alterações sucessivas</p><p>na condição assim designada que, entre o servus da antiga Roma e o serf da França de</p><p>são Luís, os contrastes prevaleceram em muito sobre as semelhanças. Também os</p><p>historiadores geralmente tomam partido de reservar "servo" para a Idade Média. Trata-se</p><p>da Antiguidade? Eles falam de "escravos". Em outras palavras, ao decalque preferem, no</p><p>caso, o equivalente. Não sem sacrificar à exatidão intrínseca da linguagem um pouco da</p><p>harmonia de suas cores; pois o termo que eles transplantam assim para uma atmosfera</p><p>romana nasce apenas lá pelo ano mil nos mercados de carne humana onde os cativos</p><p>eslavos pareciam fornecer o próprio modelo de uma inteira sujeição, que se tornou</p><p>totalmente estranha aos servos nativos do Ocidente. O artifício é cómodo, tanto que o</p><p>levamos a seus extremos10. No intervalo, contudo, em que data fixar o limite no qual,</p><p>diante do servo, o escravo sumiria? É o eterno sofisma do monte de trigo. De todo</p><p>modo, eis-nos então obrigados, para fazer justiça aos próprios fatos, a substituir a</p><p>linguagem deles por uma nomenclatura, se não propriamente inventada, pelo menos</p><p>remanejada e defasada.</p><p>Acontece de, reciprocamente, os nomes variarem, no tempo ou no espaço,</p><p>independentemente de qualquer variação nas coisas.</p><p>Algumas vezes, causas particulares à evolução da linguagem resultaram no</p><p>desaparecimento de uma palavra, sem que o objeto ou o ato que ela servia para notar</p><p>fosse minimamente afetado. Pois os fatos linguísticos têm seu coeficiente próprio de</p><p>resistência ou de ductilidade. Ao constatar o desaparecimento, nas línguas romanas, do</p><p>verbo latino emere e sua substituição por outros verbos, de origens bastante diferentes</p><p>— "acheter", "comprar" etc. —, um erudito, antes,</p><p>10 Aqui termina o texto extraído de Lucien Febvre.</p><p>138 Apologia da história</p><p>acreditou poder tirar daí as conclusões mais amplas, as mais engenhosas, sobre as</p><p>transformações que, nas sociedades herdeiras de Roma, teriam afetado o regime das</p><p>trocas. O que não teria se perguntado caso esse fato indiscutível pudesse ser tratado</p><p>como um fato isolado! Nada foi mais comum, ao contrário, nos falares oriundos do</p><p>latim do que a queda de palavras muito curtas que, com isso, mais a ajuda da anemia das</p><p>sílabas átonas, tornaram-se progressivamente indistintas. O fenômeno é de ordem</p><p>estritamente fonética, e é divertido o erro de tomar uma aventura da pronúncia por um</p><p>traço de civilização econômica11. Em outras fontes, são as condições sociais que se</p><p>opõem ao estabelecimento ou à manutenção de um vocabulário uniforme. Em</p><p>sociedades muito fragmentadas, como as da Idade Média, era frequente que instituições</p><p>essencialmente idênticas fossem, conforme os lugares, designadas por termos muito</p><p>diferentes. Ainda em nossos dias, os falares rurais se distanciam muito entre si, até nas</p><p>notações dos objetos mais comuns e dos costumes mais universais. Na província do</p><p>Centre, onde escrevo essas linhas, chamam "village" o que no Norte seria denominado</p><p>"hameau"; a aldeia do Norte aqui é um "bourg'. Essas divergências verbais apresentam,</p><p>em si mesmas, fatos bastante dignos de atenção. Porém, ao conformar a isso sua própria</p><p>terminologia, o historiador não comprometeria apenas a inteligibilidade de seu discurso;</p><p>impossibilitaria até mesmo o trabalho de classificação, que figura entre seus primeiros</p><p>deveres.</p><p>Nossa ciência não dispõe, como a matemática ou a química, de um sistema de</p><p>símbolos completamente separado da língua nacional. O historiador fala unicamente</p><p>com palavras; portanto, com as de seu país. Acha-se ele em presença de realidades que se</p><p>exprimiram numa língua estrangeira, morta ou ainda viva? Será obrigado a traduzi-las.</p><p>Quanto a isso, nenhum obstáculo sério, contanto que as palavras se relacionem a coisas</p><p>ou a ações banais: essa moeda corrente do vocabulário é facilmente intercambiável. Em</p><p>contrapartida, logo que surgem instituições, crenças, costumes que participam mais</p><p>profundamente da vida própria de uma sociedade, a transposição em uma outra língua,</p><p>feita à imagem de uma sociedade diferente, torna-se uma empresa cheia de riscos.</p><p>Escolher o equivalente é postular uma semelhança. Pelo menos zelemos para que ela não</p><p>seja só de superfície.</p><p>Vamos nos resignar portanto, em desespero de causa, a conservar, ainda que com</p><p>uma explicação, o termo original? Certamente, algumas vezes isso será preciso. Quando</p><p>vimos, em 1919, a Constituição de Weimar manter o velho nome de</p><p>11 Essa passagem, começando com "Pois os fatos linguísticos", é uma reescrita da que se</p><p>encontrava, na primeira redação no capítulo II, como ilustração do desconhecimento das</p><p>ciências auxiliares da história.</p><p>A análise histórica 139</p><p>Reich para o Estado alemão: "Estranha República!" exclamaram, entre nós, certos</p><p>publicistas. "E não é que ela insiste em se dizer Império'!" A verdade não está apenas em</p><p>que "Reich" não evoca de modo algum, por si mesma, a idéia de um imperador;</p><p>associada às imagens de uma história política perpetuamente oscilante entre o</p><p>particularismo e a unidade, a palavra exprime um som muito especificamente alemão</p><p>para permitir, numa língua em que se reflete um passado nacional completamente</p><p>diferente, a menor tentativa de tradução.</p><p>Como generalizar porém essa reprodução mecânica, verdadeira solução pela lei do</p><p>menor esforço? Abandonemos mesmo qualquer preocupação com propriedade de</p><p>linguagem: seria aborrecido, confessemos, ver os historiadores, entulhando suas frases</p><p>de vocábulos estrangeiros, imitar esses autores de romances históricos que, à força de</p><p>dialetizar, deslizam para um jargão em que o homem dos campos não se reconheceria</p><p>mais do que um citadino. Ao renunciar a qualquer tentativa de equivalência, com</p><p>frequência é a própria realidade que trairíamos. Um uso, que remonta, creio, ao século</p><p>XVIII, diz que "serf" em francês, palavra de sentido próximo em outras línguas</p><p>ocidentais, seja empregado para designar o camponês estritamente submisso ao senhor</p><p>da terra, o chriépostnói da antiga Rússia tzarista. Seria difícil imaginar combinação mais</p><p>desencontrada. De um lado, um regime de apego à gleba, pouco a pouco transformado</p><p>em verdadeira escravatura; do outro, uma forma de dependência pessoal que, malgrado</p><p>seu rigor, estava muito longe de tratar o homem como uma coisa desprovida de todos os</p><p>direitos: a pretensa servidão russa quase nada de comum tinha com nossa servidão</p><p>medieval. Mas dizer pura e simplesmente chriépostnói não nos adiantaria em nada. Pois</p><p>existiram na Romênia, na Hungria, na Polônia e até na Alemanha oriental tipos de</p><p>sujeição camponesa estreitamente aparentados àquele que12 se estabeleceu na Rússia.</p><p>Será preciso, respectivamente, falar romeno, húngaro, polonês, alemão ou russo? Mais</p><p>uma vez o essencial, que seria reconstituir as ligações profundas entre os fatos</p><p>exprimindo-os em uma nomenclatura correta, escaparia. O rótulo foi mal escolhido. Um</p><p>rótulo comum, colado aos nomes nacionais, em lugar de copiá-los, não deixa de</p><p>continuar a ser menos necessário.</p><p>Numerosas sociedades praticaram o que podemos chamar um bilinguismo</p><p>hierárquico. Duas línguas enfrentavam-se, uma popular, outra culta. O que se pensava e</p><p>se dizia correntemente na primeira escrevia-se, exclusiva ou preferencialmente, na</p><p>segunda. Assim, a Abissínia, do século XI ao XVII, escreveu em guerze, falou</p><p>12 Com essas palavras termina a folha manuscrita numerada IV-17, começando com</p><p>"Nossa ciência não dispõe, como a matemática", utilizada para a datilografia e cujo texto</p><p>é idêntico.</p><p>140 Apologia da história</p><p>em anfárico. Assim, os Evangelhos relataram em grego, que era então</p><p>a grande língua de</p><p>cultura do Oriente, frases que é preciso supor ditas em aramaico pelas pessoas. Assim,</p><p>mais próxima de nós, a Idade Média, durante muito tempo, não se administrou, não se</p><p>narrou a si própria senão em latim. Herdeiras de civilizações mortas ou emprestadas de</p><p>civilizações estrangeiras, essas línguas de letrados, de padres e de notários deviam</p><p>necessariamente exprimir muitas realidades para as quais não eram de modo algum</p><p>originalmente talhadas. Só conseguiam isso com a ajuda de todo um sistema de</p><p>transposições, inevitavelmente canhestro.</p><p>Ora, é por esses escritos que — excetuando testemunhos materiais —</p><p>conhecemos uma sociedade. Aquelas em que triunfou um tal dualismo de linguagem</p><p>revelam-se a nós portanto, em muitos de seus traços principais, apenas através de um</p><p>véu aproximativo. Às vezes, inclusive, até uma tela suplementar se interpõe. O grande</p><p>cadastro da Inglaterra que Guilherme o Conquistador mandou estabelecer, o famoso</p><p>Livro do Julgamento (Domesday Book), foi obra de clérigos normandos ou do Maine.</p><p>Eles não apenas descreveram instituições especificamente inglesas em latim; primeiro,</p><p>repensaram-nas em francês. Ao se chocar com essas nomenclaturas por substituição de</p><p>termos, o historiador não dispõe de outro recurso senão realizar o trabalho às avessas. Se</p><p>as correspondências foram comodamente escolhidas e sobretudo aplicadas com</p><p>sequência, a tarefa será relativamente simples. Não se terá muita dificuldade em</p><p>reconhecer, por trás dos "cônsules" dos cronistas, os condes da realidade. Encontram-se,</p><p>infelizmente, casos menos favoráveis. O que eram os colliberti, os bordarii do</p><p>(Domesday Book). Despojadas de seus ouropéis latinos, as palavras deixam-se</p><p>facilmente reconstituir nos falares da França do Oeste: "cuverts", "bordiers"*. Mas</p><p>hesitamos quanto a que termos ingleses deveriam corresponder. Uma coisa é certa: o</p><p>equivalente não se impunha. Pois apenas alguns dos redatores do documento o</p><p>empregaram e nunca, depois deles, alguém o retomou. O que era o colonus de nossos</p><p>documentos dos séculos XI e XII? Pergunta desprovida de sentido. Com efeito, sem</p><p>herdeira nessa língua vulgar, porque havia deixado de evocar qualquer coisa de vivo, a</p><p>palavra representava somente um artifício de tradução, empregado pelos notários para</p><p>designar respectivamente, em belo latim clássico, condições jurídicas ou econômicas</p><p>bem distintas.</p><p>Do mesmo modo, essa oposição de duas línguas, forçosamente diferentes, não</p><p>traduz na verdade senão o caso limite de contrastes comuns a todas as sociedades. Até</p><p>nas nações mais unificadas, como a nossa, cada pequena coletividade profissional, cada</p><p>grupo caracterizado pela cultura ou a fortuna possui seu sistema de</p><p>* Cuverts, bordiers: pessoas que exploravam uma pequena fazenda, ou borde, sujeita a</p><p>encargos pagos a um senhor. (N.T.)</p><p>A análise histórica 141</p><p>expressão particular. Ora, nem todos os grupos escreveram ou escrevem tanto, ou têm</p><p>tantas oportunidades de transmitir seus escritos à posteridade. Todos sabem: é raro que</p><p>o auto de um interrogatório judicial reproduza literalmente as declarações pronunciadas;</p><p>o escrivão, quase espontaneamente, organiza, esclarece, restabelece a sintaxe, poda as</p><p>palavras julgadas demasiado vulgares13. As civilizações do passado também tiveram seus</p><p>escrivães: cronistas, juristas sobretudo. Foi a voz deles, antes de qualquer coisa, que nos</p><p>chegou. Evitemos esquecer que as palavras que eles usavam, as classificações que</p><p>propunham com essas palavras, eram resultado de uma elaboração erudita,</p><p>frequentemente sistemática, muitas vezes exageradamente influenciada pela tradição.</p><p>Que surpresa, talvez, se no lugar de penar sobre a terminologia, confusa, contraditória e</p><p>provavelmente artificial, dos recenseadores ou dos capitulários merovíngios,</p><p>pudéssemos, passeando em uma aldeia dessa época, escutar os camponeses entre si</p><p>dando nome às suas condições ou os senhores às de seus súditos! É claro que essa</p><p>descrição da prática cotidiana por si mesma não nos forneceria, tampouco, toda a vida</p><p>— pois as tentativas de expressão e, por conseguinte, de interpretação que advêm dos</p><p>doutos ou dos homens da lei constituem, elas também, forças concretamente atuantes;</p><p>seria, pelo menos, atingir uma fibra profunda. Que ensinamento para nós se — fosse o</p><p>deus de ontem ou de hoje — fôssemos capazes de captar nos lábios dos humildes sua</p><p>verdadeira prece! Supondo, no entanto, que eles próprios tenham sabido traduzir, sem</p><p>mutilá-los, os impulsos de seu coração.</p><p>Pois aí está, em última instância, o grande obstáculo. Nada mais difícil para um</p><p>homem do que se exprimir a si mesmo. Mas não é menor a dificuldade de encontrar,</p><p>para as fluidas realidades sociais que são a trama de nossa existência, nomes isentos ao</p><p>mesmo tempo de ambiguidade e de falso rigor. Os termos mais usuais nunca são senão</p><p>aproximações. Mesmo os termos de fé, que imaginaríamos de bom grado de sentido</p><p>estrito. Escrutando o mapa religioso da França, vejam quantas distinções nuançadas um</p><p>erudito, como o sr. Le Bras, é hoje obrigado a substituir por este simples rótulo:</p><p>"católica". Os historiadores que, do alto de suas crenças — se não, talvez com mais</p><p>frequência, de sua descrença —, tocam14 rigidamente quanto ao catolicismo ou não-</p><p>catolicismo de um Erasmo, têm muito</p><p>13 A prática de juiz de instrução e do ofício de juiz obriga-me aqui a trazer uma precisão:</p><p>na França contemporânea, pelo menos, o escrivão não redige o auto de um</p><p>interrogatório senão materialmente; este é ditado pelo juiz de instrução e, muito</p><p>frequentemente, esse ditado é uma verdadeira "traição" das declarações da pessoa</p><p>interrogada ou ouvida; quanto à prática dos tribunais, não é mais satisfatória; é o</p><p>escrivão quem redige o auto dos debates, o mais frequentemente elíptico e com relações</p><p>apenas distantes com o que verdadeiramente ocorreu na audiência.</p><p>14 Trata-se provavelmente de um erro de datilografia; é mais possível que a palavra seja</p><p>"decidem".</p><p>142 Apologia da história</p><p>sobre o que refletir. Outras realidades, muito vivas, falharam em encontrar as palavras</p><p>necessárias. Um operário de nossos dias fala tranquilamente de sua consciência de classe:</p><p>mesmo sendo esta, eventualmente, bastante fraca. Não acredito que esse sentimento de</p><p>solidariedade ponderada e armada tenha um dia se manifestado com mais força ou</p><p>clareza do que entre os operários de nossos campos do Norte, por volta do final do</p><p>Antigo Regime; diversas petições, certas cadernetas de 1789 nos preservaram deles ecos</p><p>pungentes. O sentimento, entretanto, não podia então ser nomeado, porque ainda não</p><p>tinha nome.</p><p>Para resumir, o vocabulário dos documentos não é, a seu modo, nada mais que</p><p>um testemunho: precioso, sem dúvida, entre todos; mas, como todos os testemunhos,</p><p>imperfeito; portanto, sujeito à. Cada termo importante, cada figura de estilo</p><p>característica, torna-se um verdadeiro instrumento de conhecimento, bastando ser</p><p>confrontado uma única vez com seu ambiente; recolocado no uso da época, do meio ou</p><p>do autor; protegido, sobretudo, quando sobreviveu por muito tempo contra o perigo,</p><p>sempre presente, do contra-senso por anacronismo. A unção real, no século XII, era</p><p>naturalmente tratada como sacramento; afirmação certamente repleta de significação,</p><p>apesar de desprovida, naquela data, do valor singularmente mais forte que lhe atribuiria,</p><p>atualmente, uma teologia rígida em suas definições e, portanto, em seu léxico. O advento</p><p>do nome é sempre um grande fato, mesmo se a coisa o havia precedido; pois marca a</p><p>etapa decisiva da tomada de consciência. Que passo o dia em que os adeptos de uma</p><p>nova fé se disserem eles mesmos cristãos! Alguns de nossos primogénitos, como Fustel</p><p>de Coulanges, nos forneceram admiráveis modelos desse estudo dos sentidos, dessa</p><p>semântica histórica. Desde sua época, os progressos da linguística aguçaram ainda mais a</p><p>ferramenta.</p><p>Decerto, por mais incompleta que em geral seja a aderência, os nomes dizem</p><p>respeito, apesar de tudo, às realidades</p><p>de uma influência forte demais para permitir um</p><p>dia descrever uma sociedade sem que seja feito um largo emprego das palavras,</p><p>devidamente explicadas e interpretadas. Não imitaremos os tradicionais tradutores da</p><p>Idade Média. Falaremos de condes quando se tratar de condes, de cônsules se Roma</p><p>estiver em cena. Um grande progresso foi realizado na compreensão das religiões</p><p>helênicas quando, nos lábios dos eruditos, Júpiter viu-se definitivamente destronado por</p><p>Zeus. Mas isso diz respeito sobretudo ao detalhe das instituições, dos artefatos ou das</p><p>crenças. Estimar que a nomenclatura dos documentos possa bastar completamente para</p><p>fixar a nossa seria o mesmo, em suma, que admitir que nos fornecem a análise toda</p><p>pronta. A história, nesse caso, não teria muito a fazer. Felizmente, para nossa satisfação,</p><p>não é nada disso. Eis por que somos obrigados a procurar em outro lugar nossas grandes</p><p>estruturas de classificação.</p><p>A análise histórica 143</p><p>Para fornecê-las, todo um léxico já nos é oferecido, cuja generalidade se pretende</p><p>superior às ressonâncias de qualquer época particular. Elaborado, sem seu objetivo</p><p>preestabelecido, pelos retoques sucessivos de várias gerações de historiadores, ele reúne</p><p>elementos de data e de proveniência muito diversos. "Feudal" "feudalismo": termos de</p><p>rábula, tirados do Tribunal, desde o século XVIII, por Boulainvilliers, depois por</p><p>Montesquieu, para tornarem-se rótulos bem inapropriados de um tipo de estrutura social</p><p>ele mesmo bastante mal-definido. "Capital": palavra de usurário e de contador, cuja</p><p>significação foi bastante estendida, muito cedo, pelos economistas. "Capitalista": distante</p><p>resíduo do jargão dos especuladores, nas primeiras Bolsas européias. Mas "capitalismo",</p><p>que detém atualmente em nossas classificações um lugar bem mais considerável, é</p><p>recentíssima: carrega sua desinência como uma marca de origem (Kapitalismus). "Classe"</p><p>ressoa o naturalista ou o filósofo: porém com um acento novo, em que as lutas sociais</p><p>repercutem sua dureza. "Revolução" trocou por um sentido muito humano suas antigas</p><p>associações astrológicas; no céu, era, é ainda, um movimento regular; na Terra, agora,</p><p>uma brusca crise. "Proletário" veste-se à antiga, como os homens de 89 dos quais se</p><p>originou; mas Marx, depois de Babeuf, deixou para sempre sua marca aí. A própria</p><p>América deu "totem" e a Oceania, "tabu": extraídas de etnógrafos, diante dos quais o</p><p>classicismo dos historiadores hesita...</p><p>Nem essa variedade de origens, nem esses desvios de sentido são de forma</p><p>alguma um incómodo. Uma palavra vale menos por sua etimologia do que pelo uso que</p><p>dela é feito. Se capitalismo, mesmo em suas aplicações mais amplas, está longe de se</p><p>estender a todos os regimes económicos em que o capital dos emprestadores de dinheiro</p><p>desempenha um papel, se feudal serve correntemente para caracterizar sociedades cujo</p><p>feudo não foi certamente o traço mais significativo, não há nada aí que contradiga a</p><p>universal prática de todas as ciências, obrigadas, a partir do momento em que não se</p><p>contentam mais com meros símbolos algébricos, a beber no vocabulário misturado da</p><p>vida cotidiana. Vamos nos escandalizar se o físico persistir em chamar átomo, quer dizer,</p><p>indivisível, o objeto de suas mais audaciosas dissecações?</p><p>Muito mais temíveis são os eflúvios emotivos de que tantas dessas palavras nos</p><p>chegam carregadas. Os poderes do sentimento raramente favorecem a precisão na</p><p>linguagem.</p><p>O uso, até nos historiadores, tende a confundir, da maneira mais desagradável, as</p><p>expressões "regime feudal" e "regime senhorial". É assimilar arbitrariamente, à rede de</p><p>vínculos de dependência característica de uma aristocracia guerreira, um tipo de sujeição</p><p>camponesa que, muito diferente por natureza, nasceu, além disso, muito mais cedo,</p><p>durou muito mais tempo e foi, mundo afora, muito mais difundido. O quiproquó</p><p>remonta ao século XVIII. A vassalagem e o feudo continuavam então a existir, mas no</p><p>estado de simples formas jurídicas, já há vários</p><p>144 Apologia da história</p><p>séculos quase vazias de substância. Oriunda desse mesmo passado, a senhoria, ao</p><p>contrário, permanecia vivíssima. Nessa herança, os escritores políticos não souberam</p><p>fazer distinções. Não era apenas que a compreendiam mal. Em sua maioria, não a</p><p>consideravam friamente. Detestavam ao mesmo tempo seus arcaísmos e, pior, o que</p><p>ainda teimava em conter forças opressoras. Uma condenação comum envolvia o todo.</p><p>Depois a Revolução aboliu simultaneamente e sob um nome único, junto com as</p><p>instituições propriamente feudais, a senhoria. Dela não subsistiu senão uma lembrança,</p><p>embora tenaz e colorida com tintas vivas pela imagem das lutas dos últimos tempos. A</p><p>confusão doravante estava estabelecida, nascida da paixão ainda pronta a se expandir,</p><p>sob o efeito de novas paixões. Hoje mesmo, quando evocamos a torto e a direito os</p><p>"feudalismos" industriais ou bancários, fazemos isso com absoluta serenidade? Há</p><p>sempre, por trás, um reflexo de castelos em chamas, durante o quente verão de 89.</p><p>Ora, essa é, infelizmente, a sorte de muitas de nossas palavras. Elas continuam a</p><p>viver a nosso lado uma vida conturbada de praça pública. Não são as arengas de um</p><p>historiador que atualmente nos instam a identificar capitalismo e comunismo. Sinais</p><p>frequentemente variáveis, segundo os ambientes ou os momentos, esses coeficientes de</p><p>afetividade não engendram senão mais equívoco. Diante do nome revolução, os ultras de</p><p>1815 velavam o rosto. Os de 1940 camuflam com ele seu golpe de Estado.</p><p>Suponhamos, porém, nosso vocabulário definitivamente rendido à</p><p>impassibilidade. As mais intelectuais das línguas também têm suas armadilhas. Decerto,</p><p>não se experimenta aqui a menor tentação de reeditar as "brincadeiras nominalistas" cujo</p><p>"singular privilégio" François Simiand se espantava tempos atrás, com razão, por ver</p><p>reservado às ciências do homem. Com que direito nos recusar facilidades de linguagem,</p><p>indispensáveis a todo conhecimento racional? Estamos falando, por exemplo, do</p><p>maquinismo? Isso não é de modo algum criar uma entidade. Sob um nome expressivo,</p><p>isso é agrupar a seu bel-prazer fatos concretos cuja similitude, que o nome propriamente</p><p>tem como objetivo significar, é também uma realidade. Em si, essas rubricas têm</p><p>portanto toda legitimidade. Seu verdadeiro perigo vem de sua própria comodidade. Mal-</p><p>escolhido ou aplicado demasiado mecanicamente, o símbolo, que só estava aí para ajudar</p><p>a análise, acabou por dispensar o ato de analisar. Com isso, fomenta o anacronismo:</p><p>entre todos os pecados, ao olhar de uma ciência do tempo, o mais imperdoável.</p><p>As sociedades medievais distinguiam duas grandes condições humanas: havia os</p><p>homens livres; outros que passavam por não sê-lo absolutamente. Mas a noção de</p><p>liberdade é daquelas que cada época manipula à vontade. Certos historiadores julgaram</p><p>portanto, em nossos dias, que no sentido pretensamente normal da palavra, ou seja, o</p><p>deles, os não-livres da Idade Média haviam sido mal-nomeados.</p><p>A análise histórica 145</p><p>Eram apenas, diziam, "semilivres". Palavra inventada, sem nenhum apoio nos</p><p>textos, essa intrusa, em qualquer situação, seria um estorvo. Infelizmente não mais que</p><p>isso. Por uma consequência quase inevitável, o falso rigor que ela conferia à linguagem</p><p>pareceu tornar supérflua qualquer pesquisa verdadeiramente aprofundada sobre a</p><p>fronteira da liberdade e da servidão, tal como essas civilizações concebiam a imagem:</p><p>limite com frequência incerto, variável inclusive segundo os partis pris do momento ou</p><p>do grupo, mas do qual uma das características essenciais foi, justamente, jamais ter</p><p>tolerado essa zona marginal que sugere, com uma insistência importuna, o nome de</p><p>semiliberdade. Uma nomenclatura imposta ao passado acarretará sempre uma</p><p>deformação, caso tenha por proposta ou apenas por resultado pespegar suas categorias</p><p>às nossas, alçadas, para a ocasião, à eternidade. Não há outra atitude razoável a tomar em</p><p>relação a esses rótulos senão eliminá-los.</p><p>Capitalismo</p><p>foi uma palavra útil. Provavelmente tornar-se-á de novo, quando</p><p>conseguirmos lavá-la de todos os equívocos dos quais, à medida que ia passando ao uso</p><p>mais corrente, cada vez mais se impregnou. Por ora, transportada, incautamente, através</p><p>das civilizações as mais diversas, acaba, quase fatalmente, por mascarar suas</p><p>originalidades. "Capitalista" o regime econômico do século XVI? Pode ser. Considerem,</p><p>porém, essa espécie de descoberta universal do ganho de dinheiro, infiltrando-se então</p><p>de cima para baixo na sociedade, tragando tanto o comerciante ou notário de aldeia</p><p>quanto o grande banqueiro de Augsburgo ou de Lyon; vejam a ênfase colocada no</p><p>empréstimo ou na especulação comercial muito mais cedo do que na organização da</p><p>produção: em sua contextura humana, como era então diferente esse capitalismo do</p><p>Renascimento do sistema bem mais hierarquizado, do sistema manufatureiro, do sistema</p><p>saint-simoniano da era da revolução industrial! Que, por sua vez... Do mesmo modo,</p><p>uma observação muito simples bastaria para nos precaver quanto a isso. Em que data</p><p>fixar o surgimento do capitalismo não mais de uma época determinada, mas do</p><p>capitalismo em si, do capitalismo com C maiúsculo? Na Itália do século XII? Na</p><p>Flandres do XIII? Na época de Fugger e da Bolsa de Anvers? No século XVIII, até no</p><p>XIX? Tantos historiadores, ou quase isso, tantas certidões de nascimento, quase tão</p><p>numerosas, na verdade, quanto as daquela burguesia cujo acesso ao poder é festejado</p><p>pelos manuais escolares segundo os períodos sucessivamente propostos às meditações</p><p>de nossos guris, ora sob Filipe o Belo, ora sob Luís XIV, a menos que não seja em 1789</p><p>ou em 1830... Talvez, afinal de contas, não fosse exatamente a mesma burguesia.</p><p>Tampouco o mesmo capitalismo.</p><p>E aí está, creio, onde tocamos o fundo das coisas. Todos lembram da bonita frase</p><p>de Fontenelle: Leibniz, dizia, "formula definições exatas, que o privam da agradável</p><p>liberdade de abusar dos termos nessas ocasiões". Agradável, não sei,</p><p>146 Apologia da história</p><p>perigosa certamente; é uma liberdade bastante familiar a nós. O historiador raramente</p><p>define. Poderia, com efeito, julgar esse cuidado supérfluo se bebesse num uso ele</p><p>próprio de sentido estrito. Como não é esse o caso, não tem, até no emprego de suas</p><p>palavras-chave, nenhum outro guia a não ser seu instinto pessoal. Ele estende, restringe,</p><p>deforma despoticamente as significações, sem advertir o leitor, sem nem sempre ele</p><p>próprio se dar conta. Quantos "feudalismos", mundo afora, desde a China até a Grécia</p><p>dos aqueus das belas cnêmidas? Em sua grande parte, não se parecem em nada. É que</p><p>cada historiador, ou quase isso, compreende o nome a seu bel-prazer.</p><p>Definimos, entretanto, fortuitamente? O mais frequente é um por nós. Nada mais</p><p>significativo do que o caso de um analista de economia tão penetrante quanto John</p><p>Maynard Keynes. Não há quase nenhum livro seu em que não o vejamos antes, ao se</p><p>apoderar de termos por exceção bastante bem fixados, decretar-lhes sentidos</p><p>completamente novos: mudando, às vezes, de obra para obra; voluntariamente distantes,</p><p>em todo caso, da prática comum. Curioso problema das ciências do homem, que, por</p><p>terem sido por tanto tempo tratadas como mero gênero literário, parecem ter preservado</p><p>algo do impenitente individualismo do artista! Poderíamos conceber um químico</p><p>dizendo: "é preciso, para formar uma molécula de água, dois corpos: um fornece dois</p><p>átomos, o outro um só; no vocabulário que engendrei, é o primeiro que se chamará</p><p>oxigênio e o segundo hidrogénio"? Por mais rigoroso que as suponhamos, linguagens de</p><p>historiadores, alinhadas lado a lado, nunca comporão a linguagem da história.</p><p>A bem da verdade, esforços mais bem-combinados foram, aqui e ali, tentados: por</p><p>grupos de especialistas que a juventude relativa de suas disciplinas parece colocar ao</p><p>abrigo das piores rotinas corporativas (linguistas, etnógrafos, geógrafos); para a história</p><p>inteira, pelo Centro de Síntese, sempre na expectativa dos serviços a prestar e dos</p><p>exemplos a dar. Deve-se esperar muito disso. Mas menos ainda, talvez, que dos</p><p>progressos de uma difusa boa vontade. Dia virá, sem dúvida, em que uma série de</p><p>acordos permitirá precisar a nomenclatura, depois, de etapa em etapa, refiná-la. Então a</p><p>própria iniciativa do pesquisador conservará seus direitos; aprofundando a análise, ele</p><p>remaneja necessariamente a linguagem. O essencial é que o espírito de equipe viva entre</p><p>nós. É preciso que o historiador renuncie a desviar intempestivamente de seus sentidos</p><p>as palavras já recebidas (mais vale, se for preciso, uma franca criação); que evite rejeitar,</p><p>por capricho, aquelas já experimentadas; que, ao usar definições escrupulosas, faça-o</p><p>com o cuidado de tornar seu vocabulário constantemente utilizável para todos. A torre</p><p>de Babel forneceu a um irônico Demiurgo um espetáculo bastante satisfatório. Seria,</p><p>para a ciência, um modelo deplorável.</p><p>A análise histórica 147</p><p>4 15</p><p>O rio das eras corre sem interrupção. Nisso também, todavia, é preciso que nossa</p><p>análise pratique recortes. Pois a natureza de nosso espírito nos proíbe de apreender até</p><p>mesmo o mais contínuo dos movimentos, se não o dividirmos por balizas. Como fixar,</p><p>ao longo do tempo, as da história? Elas serão sempre, num sentido, arbitrárias. Além</p><p>disso, é importante que coincidam com os principais pontos de inflexão da eterna</p><p>mudança.</p><p>Nas historiografias que herdamos (não poderia falar do Extremo Oriente), a</p><p>história era, antes de tudo, uma crônica de líderes. Era das vicissitudes da soberania que</p><p>ela extraía*16, tradicionalmente, as articulações de seu relato, isso quando não se</p><p>contentava, transformando-se em anais, em claudicar de milésimo em milésimo. Ao</p><p>destruir uma à outra, as dominações dos povos conquistadores traçavam as grandes</p><p>épocas. A memória coletiva da Idade Média quase toda viveu assim do mito apocalíptico</p><p>dos quatro Impérios: meda, persa, grego, romano. Fôrma incomoda porém, mesmo</p><p>assim. Não se obrigava apenas, por submissão ao texto sagrado, a prolongar até o</p><p>presente a miragem de uma fictícia unidade romana. Por um estranho paradoxo numa</p><p>sociedade de cristãos — como deve ser atualmente, aos olhos de qualquer historiador —</p><p>, a Paixão parecia, na marcha da humanidade, uma pausa menos notável do que as</p><p>vitórias de ilustres devastadores de províncias. Quanto às divisões menores, a sucessão</p><p>de monarcas, em cada nação, lhes conferia seus limites.</p><p>Esses hábitos provaram-se maravilhosamente tenazes. Fiel espelho da escola</p><p>francesa, nas proximidades de 1900, a História da França de Levisse ainda avança</p><p>tropeçando de reino em reino; a cada morte de príncipe, narrada com o detalhe que se</p><p>atribui aos grandes acontecimentos, ela marca uma etapa. Não existem mais reis? Os</p><p>sistemas de governo também são mortais; suas revoluções servem então como marcos.</p><p>Mais próximos de nós, é por "preponderâncias" nacionais — equivalentes atenuados dos</p><p>Impérios de outrora — que uma importante coleção de manuais segmenta a seu bel-</p><p>prazer o curso da história moderna. Espanhola, francesa, inglesa, alemã, essas</p><p>hegemonias são — é preciso dizer? — de natureza diplomática e militar. O resto arranja-</p><p>se como for possível.</p><p>15 O manuscrito datilografado traz o número quatro (romano) no meio da página, o que</p><p>mostra que se trata de um novo desenvolvimento, mas não está acompanhado de</p><p>nenhum subtítulo. Se cotejarmos esta lacuna com uma carta a Lucien Febvre contendo o</p><p>último plano, podemos formular a hipótese de um subtítulo tal como "As divisões</p><p>cronológicas".</p><p>16 Ao passo que a datilografia estabelecida por Lucien Febvre continha a integralidade da</p><p>passagem entre asteriscos (*), sem levar em conta, é verdade, a cesura, as edições</p><p>sucessivas da obra omitiram a passagem e criaram uma nova frase: "Aí então, a iniciativa</p><p>do pesquisador conservará tradicionalmente as articulações de seu relato", o que não</p><p>fazia qualquer sentido.</p><p>148 Apologia da história</p><p>Eis já um bom tempo, no entanto, que</p><p>o século XVIII fizera ouvir seu protesto.</p><p>"Parece, escrevia Voltaire, que de 1.400 anos para cá não houve nas Gálias senão reis,</p><p>ministros e generais." Pouco a pouco, surgem novas divisões que, alheias à obsessão</p><p>imperialista ou monárquica, pretendiam se adequar a fenômenos mais profundos.</p><p>"Feudalismo", tanto como nome de um período como de um sistema social e político,</p><p>data, como vimos, dessa época. Mas, entre todas as coisas, os destinos da expressão</p><p>"Idade Média" são instrutivos.</p><p>Por sua origem distante, era ela própria medieval. Pertencia ao vocabulário</p><p>daquele profetismo semi-herético que, desde o século XIII sobretudo, seduzira tantas</p><p>almas inquietas. A Encarnação pusera fim à Antiga Lei. Ela não estabelecera o Reino de</p><p>Deus. Apontando para a expectativa desse dia abençoado, o tempo presente não seria</p><p>portanto senão uma era intermediária, um médium aevum. Depois, a partir dos</p><p>primeiros humanistas, parece, aos quais essa língua mística permanecia familiar, a</p><p>imagem foi desviada para realidades mais profanas. Num certo sentido, o reino do</p><p>Espírito chegara. Era essa renovação das letras e do pensamento, cuja consciência, nos</p><p>melhores, fazia-se então viva: testemunha Rabelais, testemunha Ronsard. A meia idade</p><p>concluíra que, entre a fecunda Antiguidade e sua nova revelação, houve apenas, do</p><p>mesmo modo, uma longa espera. Assim entendida, a expressão, durante várias gerações,</p><p>viveu obscuramente, restrita, sem dúvida, a alguns círculos de eruditos. Acredita-se que</p><p>foi no finalzinho do século XVII que um alemão, um modesto confeccionador de</p><p>manuais, Christophe Keller, imaginou pela primeira vez, numa obra de história geral,</p><p>rotular de "Idade Média" todo o período, muito mais que milenar, que vai das Invasões</p><p>ao Renascimento. O uso, introduzido não se sabe por que canais, entrou definitivamente</p><p>na historiografia européia e, sobretudo, francesa, na época de Guizot e de Michelet.</p><p>Voltaire havia ignorado isso. "Enfim, o que quereis é superar o desgosto que vos</p><p>causa a História moderna, desde a decadência do Império Romano": reconhecemos aí a</p><p>primeira frase do Ensaio sobre os costumes. Não duvidemos, no entanto: foi justamente</p><p>o espírito do Ensaio que, tão poderoso nas gerações seguintes, fez o sucesso de "Idade</p><p>Média". Como, aliás, de seu pendant quase necessário: o termo Renascimento, cujo</p><p>destino foi definitivamente fixado mais ou menos no mesmo momento. Corrente, de</p><p>longa data, no vocabulário da história do gosto, mas como substantivo e com a adjunção</p><p>obrigatória de um complemento ("o renascimento das artes ou das letras, no século XVI,</p><p>sob Leão X ou sob Francisco I", dizia-se), conquista antes de Michelet, junto com a</p><p>maiúscula, a honra de servir, sozinho, para marco do período inteiro. Das duas partes, a</p><p>idéia é a mesma. As batalhas, a política das cortes, a ascensão ou queda das grandes</p><p>dinastias forneciam o contexto. Sob sua bandeira, a arte, a literatura, as ciências eram</p><p>organizadas de qualquer maneira. É preciso agora inverter. Nas épocas da humanidade,</p><p>são as manifesta-</p><p>A análise histórica 149</p><p>ções mais refinadas do espírito humano que, por seus variáveis progressos, dão o tom.</p><p>Não existe idéia que, com mais clareza do que esta, exiba mais a marca voltairiana.</p><p>Mas uma grande fraqueza viciava as classificações: o traço distintivo era ao mesmo</p><p>tempo um julgamento. A partir do momento em que não cremos mais na noite da Idade</p><p>Média; que renunciamos a descrever como um deserto uniformemente estéril séculos</p><p>que, no domínio das invenções técnicas, da arte, do sentimento, da reflexão religiosa,</p><p>foram tão ricos que viram o primeiro desabrochar da expansão econômica européia; que,</p><p>enfim, nos deram nossas pátrias, que razão restaria ainda para confundir sob uma rubrica</p><p>comum, a despeito de toda a cor verdadeira, a Gália de Clóvis e a França de Filipe o</p><p>Belo, Alcuíno e são Tomás ou Occam, o estilo animalista das jóias "bárbaras" e as</p><p>estátuas de Chartres, os pequenos burgos coesos dos tempos carolíngios e as</p><p>esplendorosas burguesias de Gênova, de Bruges ou de Lubeck? A Idade Média, na</p><p>verdade, vive apenas de uma humilde vidazinha pedagógica: contestável comodidade de</p><p>programas, rótulo sobretudo de técnicas eruditas, cujo campo, a propósito, é bastante</p><p>mal delimitado pelas datas tradicionais. O medievalista é o homem que sabe ler velhas</p><p>escrituras, criticar um documento, compreender o francês arcaico. É alguma coisa, sem</p><p>dúvida. Não o suficiente, com certeza, para satisfazer, na busca das divisões exatas, uma</p><p>ciência do real.</p><p>Na confusão de nossas classificações cronológicas, uma moda insinuou-se, bem</p><p>recente, creio, tanto mais intrusiva, em todo caso, quanto menos sensata. Com</p><p>naturalidade, contamos por séculos.</p><p>Por muito tempo alheia, sabemos, a qualquer recenseamento exato de anos, a</p><p>palavra também tinha originariamente suas ressonâncias místicas: acentos de Quarta</p><p>Écloga ou Dies irae. Talvez não estivessem tão amortecidas na época em que, sem</p><p>grande preocupação com a precisão numérica, a história alongava-se, com complacência,</p><p>sobre o século de Péricles ou o de Luís XIV. Mas nossa linguagem se fez mais</p><p>severamente matemática; não nomeamos mais os séculos de acordo com seus heróis.</p><p>Numeramo-los sequencialmente, bem sensatamente, de cem em cem anos, a partir de</p><p>um ponto fixado de uma vez por todas. A arte do século XIII, a filosofia do XVIII, o</p><p>"estúpido XIX", essas figuras de máscara aritmética enxameiam as páginas de nossos</p><p>livros. Quem de nós se gabará de ter um dia escapado às seduções de sua aparente</p><p>comodidade?</p><p>Infelizmente, nenhuma lei da história impõe que os anos cujos milésimos se</p><p>determinam pelo algarismo 1 coincidam com os pontos críticos da evolução humana.</p><p>Daí estranhas inflexões de sentido. "É bem sabido que o século XVIII começa em 1715</p><p>e termina em 1789": li essa frase um dia, num trabalho de aluno. Candura? Ou malícia?</p><p>Não sei. Em todo caso, isso servia bem para colocar a nu</p><p>150 Apologia da história</p><p>certas bizarrices do uso. Caso se trate, porém, do século XVIII filosófico, poder-se-ia</p><p>provavelmente dizer ainda melhor que começou bem antes de 1701: a História dos</p><p>oráculos é de 1687 e o Dicionário de Bayle, de 1697. O pior é que o nome, como</p><p>sempre, carrega com ele a idéia, e os falsos rótulos acabam por iludir quanto à</p><p>mercadoria. Fala-se com frequência do "renascimento do século XII". Grande</p><p>movimento intelectual, certamente. Porém, ao se inscrevê-lo sob essa rubrica, esquece-se</p><p>facilmente que começou, na realidade, por volta de 1060, e certas ligações essenciais</p><p>escapam. Em suma, parece que distribuímos, segundo um rigoroso ritmo pendular,</p><p>arbitrariamente escolhido, realidades às quais essa regularidade é completamente</p><p>estranha. É um desafio. Nós o aceitamos naturalmente com muita dificuldade, e a única</p><p>coisa que fizemos foi introduzir mais uma confusão. Evidentemente, é preciso procurar</p><p>melhor.</p><p>Na medida em que nos limitamos a estudar, no tempo, cadeias de fenômenos</p><p>aparentados, o problema é, em suma, simples. É a esses próprios fenômenos que</p><p>convém solicitar seus próprios períodos. Uma história religiosa do reino de Filipe</p><p>Augusto? Uma história econômica do reino de Luís XV? Por que não: "Diário do que</p><p>aconteceu, em meu laboratório, sob a segunda presidência de Grévy", por Louis Pasteur?</p><p>Ou, inversamente, "História diplomática da Europa, de Newton a Einstein"?</p><p>Sem dúvida, vê-se bem por onde divisões extraídas uniformemente da série dos</p><p>Impérios, dos reis ou dos regimes políticos conseguiram seduzir. Não tinham por elas</p><p>apenas o prestígio que uma longa tradição confere ao exercício do poder: "a essas ações,</p><p>dizia Maquiavel, que parecem ter grandeza própria nos atos do governo do Estado". Um</p><p>advento, uma revolução têm seu lugar fixado, na duração, em determinado ano, quase</p><p>em determinado dia. Ora, o erudito gosta, como se diz, de datar "precisamente".</p><p>Encontra com isso, com o abrandamento de um instintivo horror do vago, uma grande</p><p>comodidade de consciência. Almeja</p><p>ter tudo lido, tudo conferido, sobre o que diz</p><p>respeito a seu assunto. Como ficaria mais à vontade se, diante de cada dossiê de</p><p>arquivos, pudesse, calendário na mão, fazer a divisão, antes, durante, depois!</p><p>Tomemos cuidado, porém: o recorte mais exato não é forçosamente o que faz uso</p><p>da menor unidade de tempo — se assim fosse, seria preciso então preferir não apenas o</p><p>ano à década, mas também o segundo ao dia. A verdadeira exatidão consiste em se</p><p>adequar, a cada vez, à natureza do fenômeno considerado. Pois cada tipo tem sua</p><p>densidade de medida particular e, por assim dizer, seu decimal específico. As</p><p>transformações da estrutura social, da economia, das crenças, do comportamento mental</p><p>não seriam capazes, sem um desagradável artifício, de se dobrar a uma cronometragem</p><p>muito rígida. Quando escrevo que uma modificação extremamente profunda da</p><p>economia ocidental, marcada ao mesmo tempo</p><p>A análise histórica 151</p><p>pelas primeiras importações maciças de trigos exóticos e pelo primeiro grande</p><p>desabrochar das indústrias alemãs e americanas, produziu-se entre cerca de 1875 e 1885,</p><p>uso da única aproximação que esse gênero de fatos autoriza. Vou, ao contrário, cismar</p><p>em buscar uma data supostamente mais precisa? Escolher para isso, como se se</p><p>apresentasse de repente ao espírito, o Tratado de Frankfurt? Eu trairia a realidade no</p><p>altar de um respeito mal-compreendido pelo número.</p><p>Aliás, não é de modo algum impossível, a priori, que, com a experiência, as fases</p><p>naturais de fenômenos de ordem aparentemente bem diversa venham a se superpor.</p><p>Será exato que o advento do Segundo Império introduziu um novo período na</p><p>economia francesa? Sombart tinha razão em identificar o florescimento do capitalismo</p><p>com aquele do espírito protestante? O sr. Thierry Maulnier enxerga corretamente ao</p><p>descobrir na democracia "a expressão política" desse mesmo capitalismo (não totalmente</p><p>o mesmo, receio)? Não temos o direito de rejeitar, de antemão, essas coincidências, por</p><p>mais duvidosas que possam nos parecer. Mas elas só surgirão, se for o caso, sob uma</p><p>condição: não terem sido postuladas previamente. Certamente, as marés estão em</p><p>relação com as lunações. Para sabê-lo, porém, foi preciso antes determinar,</p><p>separadamente, as épocas de fluxo e as da Lua. Contemplando, ao contrário, a evolução</p><p>social em sua integralidade, trata-se de caracterizar suas etapas sucessivas? É um</p><p>problema de nota dominante. Aqui só se pode sugerir os caminhos pelos quais a</p><p>classificação parece ter que se engajar. A história, não esqueçamos, ainda é uma ciência</p><p>em obras.</p><p>Os homens que nasceram num mesmo ambiente social, em datas próximas,</p><p>sofrem necessariamente, em particular em seu período de formação, influências</p><p>análogas. A experiência prova que seu comportamento apresenta, em relação aos grupos</p><p>sensivelmente mais velhos ou mais jovens, traços distintivos geralmente bastante nítidos.</p><p>Isso até em suas discordâncias, que podem ser das mais agudas. Apaixonar-se por um</p><p>mesmo debate, mesmo em sentidos opostos, ainda é assemelhar-se. Essa comunidade de</p><p>marca, oriunda de uma comunidade de época, faz uma geração.</p><p>Uma sociedade, a bem da verdade, raramente é una. Ela se decompõe em</p><p>ambientes diferentes. Em cada um deles, as gerações nem sempre se superpõem: será</p><p>que as forças que atuam sobre um jovem operário fatalmente são exercidas, pelo menos</p><p>com uma intensidade igual, no jovem camponês? Acrescentem, mesmo nas civilizações</p><p>mais coesas, a lentidão de propagação de certas correntes. "Éramos românticos, na</p><p>província, durante minha adolescência, ao passo que em Paris havia-se deixado de sê-lo",</p><p>dizia-me meu pai, nascido em Estrasburgo em 1848. Com frequência, aliás, como nesse</p><p>caso, a oposição reduz-se sobretudo a uma defasagem. Quando falamos desta ou</p><p>daquela geração francesa, por exemplo, evocamos uma imagem complexa, às vezes não</p><p>sem discordâncias, mas da qual é natural reter antes de tudo os elementos</p><p>verdadeiramente orientadores.</p><p>152 Apologia da história</p><p>Quanto à periodicidade das gerações, é evidente que, a despeito dos devaneios</p><p>pitagóricos de certos autores, nada tem de regular. Segundo a cadência mais ou menos</p><p>viva do movimento social, os limites se cerram ou se distendem. Existem, em história,</p><p>gerações longas ou gerações curtas. Só a observação permite apreender os pontos em</p><p>que a curva muda de orientação. Pertenci a uma escola em que as datas de matrícula</p><p>facilitam as referências. Muito cedo, vi-me, sob muitos aspectos, mais próximo das</p><p>turmas que me haviam precedido do que das que me seguiram quase imediatamente.</p><p>Colocávamo-nos, meus colegas e eu, na ponta do que se pode chamar, creio, a geração</p><p>do caso Dreyfus. A experiência da vida não desmentiu essa impressão.</p><p>Ocorre enfim, obrigatoriamente, de as gerações se interpenetrarem. Pois os</p><p>indivíduos não reagem sempre similarmente às mesmas influências. Hoje mesmo, entre</p><p>nossos filhos, já se pode discernir, mais ou menos, segundo as idades, a geração da</p><p>guerra daquela que será apenas a do pós-guerra. Com uma ressalva, contudo: nas idades</p><p>que não são ainda a adolescência quase madura e não são mais a da pequena infância, a</p><p>sensibilidade em relação aos acontecimentos do presente varia muito segundo os</p><p>temperamentos pessoais; as mais precoces serão de fato "da guerra" as outras</p><p>permanecerão no lado oposto.</p><p>A noção de geração é portanto muito flexível, como todo conceito que tenta</p><p>exprimir, sem deformá-las, as coisas do homem. Mas corresponde também a realidades</p><p>que sentimos bem concretas. Há muito tempo, vimo-la ser utilizada, como por instinto,</p><p>por disciplinas cuja natureza levava a que rejeitassem, antes de quaisquer outras, as</p><p>velhas divisões por reinos ou por governos: como a história do pensamento ou das</p><p>formas artísticas. Ela parece destinada a fornecer, cada vez mais, um primeiro</p><p>balizamento a uma análise ponderada das vicissitudes humanas.</p><p>Mas uma geração representa apenas uma fase relativamente curta. As fases mais</p><p>longas chamam-se civilizações.</p><p>A palavra, como Lucien Febvre mostrou, só se desvencilhou muito lentamente do</p><p>juízo de valor. Hoje conquistou sua liberdade. Admitimos que haja, se ouso dizer,</p><p>civilizações de não-civilizados. Reconhecemos que em uma sociedade, seja qual for, tudo</p><p>se liga e controla mutuamente: a estrutura política e social, a economia, as crenças, tanto</p><p>as formas mais elementares como as mais sutis da mentalidade. Esse complexo tem uma</p><p>tonalidade própria a cada vez. Ela é difícil de exprimir, sem dúvida. Evitemos rótulos</p><p>muito simples. A facilidade das palavras em "ismo" (Typistnus, Konventionalismus)</p><p>arruinou a iniciativa, no entanto inteligente, de descrição evolutiva, tentada por Karl</p><p>Lamprecht em sua História da Alemanha. Contudo, ninguém se ilude quanto à existência</p><p>das oposições de nomes. Alguém contestará atualmente uma civilização chinesa?</p><p>Duvidará que difere imensamente da européia? Essa ênfase maior é, além disso,</p><p>suscetível de se modi-</p><p>A análise histórica 153</p><p>ficar, mais ou menos lenta ou bruscamente. Quando a transformação se operou,</p><p>dizemos que uma civilização sucede a uma outra: as sociedades da alta Idade Média</p><p>ocidental haviam herdado muito do Império Romano; todos, porém, estarão de acordo</p><p>que não era mais a mesma civilização. Assim como a civilização ocidental do</p><p>Renascimento não se identifica, por exemplo, com a nossa. Cabe à prática introduzir em</p><p>suas distinções uma exatidão e um discernimento crescentes.</p><p>O tempo humano, em resumo, permanecerá sempre rebelde tanto à implacável</p><p>uniformidade como ao seccionamento rígido do tempo do relógio. Faltam-lhe medidas</p><p>adequadas à variabilidade de seu ritmo e que, como limites, aceitem frequentemente,</p><p>porque a realidade assim o quer, conhecer apenas zonas marginais. É apenas ao preço</p><p>dessa plasticidade que a história pode esperar adaptar, segundo as palavras de Bergson,</p><p>suas classificações às "próprias linhas do real": o que é propriamente a finalidade última</p><p>de toda ciência.</p><p>Capítulo V1</p><p>inconveniente, empobrecendo o historicismo alemão do</p><p>final do século XIX, de limitar a história à "estrita observação dos fatos, à ausência de</p><p>moralização e de ornamento, à pura verdade histórica" (diagnóstico do americano</p><p>Adams, desde 1884).</p><p>O que Marc Bloch não aceitava em seu mestre Charles Seignobos, principal</p><p>representante desses historiadores "positivistas", era iniciar o trabalho do historiador</p><p>somente com a coleta dos fatos, ao passo que uma fase anterior essencial exige do</p><p>historiador a consciência de que o fato histórico não é um fato "positivo", mas o</p><p>produto de uma construção ativa de sua parte para transformar a fonte em documento e,</p><p>em seguida, constituir esses documentos, esses fatos históricos, em problema. Eis o</p><p>sentido do "positivismo" recriminado nesses historiadores, posi-</p><p>20 Apologia da história</p><p>tivismo que se tinge de utilitarismo quando, em vez de fazerem a história total, eles</p><p>reduzem o trabalho histórico ao que lhes parece capaz de "servir à ação".</p><p>Marc Bloch então apela com força à especificidade, à aparente inutilidade de um</p><p>esforço intelectual desinteressado. Encontra na disciplina histórica uma tendência</p><p>própria ao homem em geral — a história, nesse sentido, também é uma ciência humana:</p><p>"Seria infligir à humanidade uma estranha mutilação recusar-lhe o direito de buscar, fora</p><p>de qualquer preocupação de bem-estar, o apaziguamento de suas fomes intelectuais."</p><p>Aqui aparecem duas palavres-chave para compreender o temperamento de</p><p>historiador de Marc Bloch. "Mutilação": Bloch recusa uma história que mutilaria o</p><p>homem (a verdadeira história interessa-se pelo homem integral, com seu corpo, sua</p><p>sensibilidade, sua mentalidade, e não apenas suas idéias e atos) e que mutilaria a própria</p><p>história, esforço total para apreender o homem na sociedade e no tempo. "Fome": a</p><p>palavra já evoca a célebre frase inscrita desde o primeiro capítulo do livro: "O bom</p><p>historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está</p><p>sua caça." Marc Bloch é um faminto, um faminto de história, um faminto de homens</p><p>dentro da história. O historiador deve ter apetite. É um comedor de homens, Marc</p><p>Bloch me faz pensar naquele teólogo parisiense da segunda metade do século XII, por</p><p>sua vez devorador de livros, onde buscava também a vida e a história, Petrus Comestor,</p><p>Pedro o Comedor.</p><p>Embora não seja "positivista" para Marc Bloch, a história não deixa de ser uma</p><p>ciência, e uma de suas preocupações mais agudas neste livro é o apelo constante às</p><p>ciências matemáticas, às ciências da natureza, às ciências da vida. Não para daí extrair</p><p>receitas para a história. Marc Bloch recorreu à estatística (de uso limitado para um</p><p>medievalista) e pertence ao período anterior à história quantitativa. Mas para indicar a</p><p>unidade do campo do saber, mesmo com a história já tendo conquistado sua autonomia</p><p>como paradigma: "Não sentimos mais a obrigação de buscar impor a todos os objetos</p><p>do conhecimento um modelo intelectual uniforme, inspirado nas ciências da natureza</p><p>física." Uma mesma condição, todavia, autentica as verdadeiras ciências: "As únicas</p><p>ciências autênticas são aquelas que conseguem estabelecer ligações explicativas entre os</p><p>fenômenos." A história portanto, para ter seu lugar entre as ciências, deve propor, "em</p><p>lugar de uma simples enumeração,... uma classificação racional e uma progressiva</p><p>inteligibilidade".</p><p>Marc Bloch não pede à história que defina falsas leis, as quais a intrusão incessante</p><p>do acaso torna impossíveis. Mas não a concebe válida senão penetrada de razão e de</p><p>inteligibilidade, o que situa sua cientificidade não do lado da natureza, de seu objeto, mas</p><p>da démarche e do método do historiador.</p><p>A história deve portanto se colocar numa dupla situação: "o ponto" que, como</p><p>"cada disciplina", ela "atingiu na curva de seu desenvolvimento" — curva "sempre um</p><p>pouco entrecortada" pois Marc Bloch recusa um evolucionismo</p><p>Prefácio 21</p><p>primário — e "o momento do pensamento" geral ao qual os historiadores, a cada época,</p><p>"se vinculam", "a atmosfera mental" de uma época, não muito distante no fundo do</p><p>Zeitgeist, do "espírito do tempo", de uma linhagem de historiadores alemães.</p><p>Nessa marcha rumo à inteligibilidade, porém, a história ocupa um lugar original</p><p>entre as disciplinas do conhecimento humano. Como a maior parte das ciências, ainda</p><p>mais que elas, pois o tempo é parte integrante de seu objeto, é "uma ciência em marcha".</p><p>Para permanecer uma ciência, a história deve se mexer, progredir; mais que qualquer</p><p>outra, não pode parar.</p><p>O historiador não pode ser um sedentário, um burocrata da história, deve ser um</p><p>andarilho fiel a seu dever de exploração e de aventura. Pois um segundo caráter da</p><p>história, a respeito do qual os historiadores não meditaram o suficiente a lição de Marc</p><p>Bloch, é que a história "é também uma ciência na infância". Ela há muito tempo só faz</p><p>balbuciar, numa pré-história que vai de Heródoto a dom Mabillon — sobre o qual Marc</p><p>Bloch vai dizer mais adiante que "1681, ano da publicação do De re diplomatica, [é] uma</p><p>grande data... na história humana" pois essa obra "funda definitivamente a crítica dos</p><p>documentos de arquivos". Ainda precisamos refletir sobre essa juventude da história,</p><p>que só se torna matéria de ensino no século XIX, século fundador da história ainda</p><p>hesitante entre a arte literária e o conhecimento científico. Lição de humildade para o</p><p>historiador, mas também de confiança e esperança. Para a história, o vento do saber mal</p><p>se levanta. É a aurora do conhecimento histórico. Onde sempre nos encontramos.</p><p>Historiadores, antes de Marc Bloch e também de sua época, resignaram-se a ver</p><p>na história apenas "uma espécie de jogo estético" e certos especialistas em ciências</p><p>sociais admitiram "deixar finalmente fora do alcance desse conhecimento dos homens</p><p>inúmeras realidades demasiado humanas, mas que lhes pareciam desesperadamente</p><p>rebeldes a um saber racional". Aqui, é preciso ler Marc Bloch com atenção: "Esse</p><p>resíduo era o que eles chamavam, desdenhosamente, de o acontecimento, era também</p><p>uma boa parte da vida mais intimamente individual"1 O que é visado aqui? "A escola</p><p>sociológica fundada por Durkheim." Aí está, praticamente desde o início, revelada a</p><p>importância excepcional que teve, para Marc Bloch e para os primeiros Annales, a</p><p>sociologia de Durkheim. Ele reitera aqui sua dívida. Deve-lhe sobretudo o fato de ter</p><p>aprendido "a pensar... menos barato" Eis uma de suas preocupações essenciais, pensar a</p><p>história, pensar sua pesquisa, pensar sua obra, e não pensar pequeno, pobre, mesquinho.</p><p>Ele rejeita qualquer prática, qualquer método redutor da história. Mas também, e isso foi</p><p>uma constante em sua reflexão metodológica, está preocupado em não confundir</p><p>história e</p><p>l Os grifos são meus.</p><p>22 Apologia da história</p><p>sociologia; ele recusa "a rigidez dos princípios"; mencionará, em certo trecho, a</p><p>indiferença de Durkheim e de seus discípulos em relação ao tempo.</p><p>A influência de Durkheim sobre Marc Bloch e os primeiros Annales deverá ser</p><p>objeto de uma investigação atenta, pois os marcou profundamente, mas também será</p><p>preciso observar que Marc Bloch sempre resistiu aos encantos da sociologia e, em</p><p>primeiro lugar, da sociologia durkheimiana. Dialogar com a sociologia, sim; a história</p><p>precisa dessas trocas com as outras ciências humanas e sociais. Confundir história e</p><p>sociologia, não. Marc Bloch é historiador e assim quer permanecer. Renovar a história,</p><p>sim, em particular pelo contato com essas ciências; nelas imergir, não.</p><p>Um leitor atento da frase que acabo de citar sobre o acontecimento e o individual</p><p>teria permitido aos historiógrafos de Marc Bloch e dos Annales evitar certos erros de</p><p>interpretação. O acontecimento recusado por Marc Bloch é aquele desses sociólogos que</p><p>dele fazem um resíduo desprezível. Mas ele não recusa, em todo caso, o acontecimento</p><p>(Lucien Febvre teve talvez palavras menos prudentes a esse respeito). Como uma</p><p>história total poderia prescindir</p><p>Em vão o positivismo pretendeu eliminar da ciência a idéia de causa. Querendo ou</p><p>não, todo físico, todo biólogo pensa através de "por quê?" e de "porque". Os</p><p>historiadores não podem escapar a essa lei comum do espírito. Alguns, como Michelet,</p><p>encadeiam tudo num grande "movimento vital" em lugar de explicar de forma lógica;</p><p>outros exibem seu aparelho de induções e de hipóteses; em todos o vínculo genético está</p><p>presente. Porém, do fato de o estabelecimento das relações de causa-e-efeito constituir</p><p>assim uma necessidade instintiva de nosso entendimento não se segue que sua</p><p>investigação possa ser relegada ao instinto. Se a metafísica da causalidade está aqui fora</p><p>de nosso horizonte, o emprego da relação causal, como ferramenta do conhecimento</p><p>histórico, exige incontestavelmente uma tomada de consciência crítica.</p><p>Um homem, suponhamos, caminha por um atalho de montanha; tropeça e cai num</p><p>precipício. Foi preciso, para que esse acidente acontecesse, a reunião de um grande</p><p>número de elementos determinantes. Entre eles, a existência da gravidade, a presença de</p><p>um relevo, resultante de longas vicissitudes geológicas, o traçado de um caminho,</p><p>destinado, por exemplo, a ligar uma aldeia a suas pastagens de verão. Será portanto</p><p>perfeitamente legítimo dizer que, se as leis da mecânica celeste fossem diferentes, se a</p><p>evolução da Terra tivesse sido outra, se a economia alpina não se fundasse na</p><p>transumância sazonal, a queda não teria acontecido. Pergunta-se porém qual foi a causa?</p><p>Todos responderão: o tropeço. Não é de modo algum que este antecedente fosse mais</p><p>necessário ao fato. Muitos outros o eram no mesmo nível. Mas, entre todos, ele se</p><p>distingue por diversas características mais evidentes; vinha por último, era o menos</p><p>permanente, o mais excepcional na ordem geral do mundo; enfim, em razão mesmo</p><p>dessa menor generalidade, sua intervenção parece a que pode mais facilmente ser</p><p>evitada. Por essas razões, parece ligado ao efeito de uma influência mais direta e não</p><p>escapamos ao sentimento de que foi ele o único a tê-lo produzido. Aos olhos do senso</p><p>comum, que, ao falar de</p><p>l O texto integral desse capítulo figura em cinco folhas manuscritas, respectivamente</p><p>numeradas V-l, V-2, V-3, V-4, V-5, que foram utilizadas para a datilografia; o texto é</p><p>idêntico ao aqui reproduzido.</p><p>155</p><p>156 Apologia da história</p><p>causa, tem sempre dificuldade em se livrar de um certo antropomorfismo, esse</p><p>componente do último minuto, esse componente particular e inopinado se parece um</p><p>pouco com o artista que dá forma a uma matéria plástica já toda preparada.</p><p>O raciocínio histórico, em sua prática corrente, não procede de modo diferente.</p><p>Os antecedentes mais constantes e mais genéricos permanecem simplesmente</p><p>subentendidos. Que historiador militar pensará em colocar entre as razões de uma</p><p>vitória a gravitação, que dá conta das trajetórias dos obuses, ou as disposições</p><p>fisiológicas do corpo humano, sem as quais os projéteis não seriam capazes de danos</p><p>mortais? Já os antecedentes mais particulares, porém dotados também de uma certa</p><p>permanência, formam o que se convencionou chamar de condições. O mais específico,</p><p>aquele que, no leque das forças geradoras, de certo modo representa o elemento</p><p>diferencial, recebe, de preferência, o nome de causa. Diremos, por exemplo, que a</p><p>inflação da época de Law foi a causa da alta global dos preços. A existência de um meio</p><p>econômico francês, já homogêneo e bem coeso, será apenas uma condição. Pois essas</p><p>facilidades de circulação, que, ao espalhar as cédulas por todo lado, permitiram sozinhas</p><p>a alta, haviam precedido a inflação e lhe sobreviveram.</p><p>Ninguém poderia duvidar de que reside, nessa discriminação, um princípio</p><p>fecundo de pesquisa. Para que insistir2 em antecedentes quase universais? Eles são</p><p>comuns a muitos fenômenos para merecer figurar na genealogia de um deles em</p><p>particular. Sei bem, de antemão, que não haveria incêndio se o ar não contivesse</p><p>oxigênio; o que me interessa e justifica um esforço de descoberta é determinar como o</p><p>fogo pegou3. [As leis das trajetórias variam tanto para a derrota como para a vitória;</p><p>explicam a ambas; são portanto inúteis para a explicação apropriada de todas as duas.]</p><p>Mas não se poderia sem perigo elevar ao absoluto uma classificação hierárquica</p><p>que é apenas, na verdade, uma comodidade do espírito4. A realidade nos apresenta uma</p><p>quantidade quase infinita de linhas de força, todas convergindo para o mesmo</p><p>fenômeno. A escolha que fazemos entre elas pode muito bem se fundar em</p><p>características, na prática, bastante dignas de atenção; não deixa de se tratar sempre de</p><p>uma escolha. Existe sobretudo muito de arbitrário na idéia de uma causa por excelência</p><p>oposta às simples "condições". O próprio Simiand, tão</p><p>2 As supressões ou acréscimos indicados aqui o são em relação a uma folha manuscrita</p><p>numerada V-2: ]indefinidamente[</p><p>3 Sobre a folha manuscrita o texto prossegue sem parágrafo com: "Mas o perigo seria</p><p>elevar ao absoluto uma simples comodidade do espírito", o que se tornou na versão</p><p>definitiva o começo de um parágrafo: "Mas não se poderia sem perigo".</p><p>4 O texto da folha manuscrita é mais sucinto: "Mas o perigo seria elevar ao absoluto uma</p><p>simples comodidade do espírito".</p><p>Capítulo V 157</p><p>cioso de rigor e que tentara antes (em vão, acredito) definições mais estritas, parece ter</p><p>acabado por reconhecer o caráter todo relativo dessa distinção. "Uma epidemia, escreve</p><p>ele, terá como causa para o médico a propagação de um micróbio e, como condições, a</p><p>sujeira, a má saúde produzidas pelo pauperismo; para o sociólogo e o filantropo, o</p><p>pauperismo será a causa e os fatores biológicos, a condição." Isso é admitir, de boa-fé, a</p><p>subordinação da perspectiva ao ângulo próprio da investigação. Tomemos cuidado, aliás;</p><p>a superstição da causa única, em história, não raro é apenas a forma insidiosa da busca</p><p>do responsável: por conseguinte, juízo de valor. "De quem é a culpa ou mérito?", diz o</p><p>juiz. O cientista contenta-se em perguntar "por quê?" e aceita que a resposta não seja</p><p>simples. Preconceito do senso comum, postulado de lógico ou tique de magistrado</p><p>instrutor, o monismo da causa seria para a explicação histórica simplesmente um</p><p>embaraço. Ela busca fluxos de ondas causais e não se assusta, uma vez que a vida assim</p><p>os mostra, ao encontrá-los múltiplos.</p><p>Os fatos históricos são, por essência, fatos psicológicos5. É portanto em outros</p><p>fatos psicológicos que encontram geralmente seus antecedentes. Sem dúvida, os destinos</p><p>humanos inserem-se no mundo físico e sofrem sua influência. Aí mesmo, porém, onde a</p><p>intrusão dessas forças exteriores parece mais brutal, sua ação não é exercida senão</p><p>orientada pelo homem e seu espírito. O vírus da Peste Negra foi a causa primordial do</p><p>despovoamento da Europa. Mas a epidemia só se propagou tão rapidamente em razão</p><p>de certas condições sociais, portanto, em sua natureza profunda, mentais, e seus efeitos</p><p>morais explicam-se apenas pelas predisposições particulares da sensibilidade coletiva6.</p><p>Entretanto, só existe psicologia da consciência clara. Lendo certos livros de</p><p>história, acreditaríamos a humanidade composta unicamente de vontades lógicas, para</p><p>quem suas razões de agir jamais teriam o menor segredo. Diante do estado atual das</p><p>pesquisas sobre a vida mental e suas obscuras profundezas, isso é uma prova a mais da</p><p>eterna dificuldade por parte das ciências de permanecerem exata-mente contemporâneas</p><p>umas das outras. É também repetir, ampliando, o erro, porém tão frequentemente</p><p>denunciado, da velha teoria econômica. Seu homo</p><p>5 Uma folha manuscrita de rascunho, numerada V-3, começa com a frase: "Os fatos</p><p>históricos são, por essência, fatos psicológicos." Ela prossegue com uma redação</p><p>contínua até o meio da folha, com um texto próximo da redação definitiva. As</p><p>supressões em relação a essa folha manuscrita são aqui indicadas em nota.</p><p>6 ]São constatações dessa ordem que arruinaram o pseudo-determinismo geográfico. Às</p><p>mesmas circunstâncias de clima,</p><p>de acontecimentos? Portanto, o que se chama</p><p>atualmente, segundo Pierre Nora, "o retorno do acontecimento" situa-se na linha direta</p><p>da concepção de Marc Bloch.</p><p>Do mesmo modo, embora dê mais atenção ao coletivo do que ao individual, Marc</p><p>Bloch não deixa por isso de fazer do indivíduo um dos pólos de interesse da história. Ele</p><p>diz sobre a investigação histórica "que ela deve se voltar de preferência para o indivíduo2</p><p>ou para a sociedade" e critica a definição de história de Fustel de Coulanges, a quem não</p><p>obstante admirava (o "mestre" que reivindica para si, ao lado de Michelet): "a história é a</p><p>ciência das sociedades humanas", observando que "isso talvez seja reduzir em excesso,</p><p>na história, a parte do indivíduo". Enfim e sobretudo, uma parte importante do capítulo</p><p>V, que permaneceu inacabado e sem título definitivo, teria sido dedicada ao indivíduo.</p><p>Depois de ter alfinetado Paul Valéry, a quem criticará mais adiante por</p><p>desconhecer o que é a verdadeira história e justificar a ignorância declarando que a</p><p>história é "o produto mais perigoso que a química do cérebro já elaborou", define sua</p><p>concepção da história e o desígnio deste livro.</p><p>A história que ele e seus amigos historiadores pretendem é uma "história ao</p><p>mesmo tempo ampliada e mais aprofundada". À história estreita e superficial dos</p><p>historiadores "positivistas" ele opõe essa vontade de ampliação e aprofundamento do</p><p>domínio da história. Ampliar e aprofundar é o essencial do movimento que continua,</p><p>ainda hoje, a animar os historiadores tocados pelo espírito dos Annales. "Novos</p><p>problemas, novas abordagens, novos objetos" eis o triplo alcance que</p><p>2 O grifo também é meu.</p><p>Prefácio 23</p><p>pedimos, na esteira de Marc Bloch, Pierre Nora e eu próprio, a um grupo de</p><p>historiadores para definir, em 1974, na coletânea Faire de l'histoire. Resta aprofundar</p><p>ainda mais, pois se as pesquisas sobre as mentalidades e as sensibilidades esboçaram essa</p><p>descida dos historiadores às profundezas da história, há ainda muito a fazer. A</p><p>psicanálise, cautelosamente evocada por Marc Bloch aqui e ali neste livro, e em A</p><p>sociedade feudal, não encontrou eco verdadeiro na reflexão dos historiadores. Alphonse</p><p>Dupront, recém-falecido, "historiador das profundezas" cuja obra em parte ainda inédita</p><p>se situa nas margens da influência de Marc Bloch e dos Annales, permanece</p><p>relativamente isolado, e as tentativas de história psicanalítica de Alain Besançon e de</p><p>Michel de Certeau, a quem os Annales dos anos 70 haviam oferecido uma coluna,</p><p>permanecem sem posteridade. A psico-história americana, malgrado a abertura de pistas</p><p>interessantes, não se impôs.</p><p>Quanto ao desígnio do livro, a defesa e ilustração da ciência história, situa-se no</p><p>nível do ofício: "dizer como e por que um historiador pratica seu ofício", redigir "o</p><p>memento de um artesão", a "caderneta de anotações de um colega". Sobre a erudição do</p><p>século XIV, diz mais adiante para elogiá-la: através dela, "o historiador foi levado de</p><p>volta à sua mesa de trabalho". Historiador do mundo rural, sob cuja pena correm</p><p>facilmente as referências e as metáforas da vida agrária, compara também o bom</p><p>historiador ao "bom lavrador" segundo Péguy, que "ama o trabalho e a semeadura assim</p><p>como as colheitas". Termo ainda mais pascaliano de um caçador, de um pesquisador,</p><p>que prefere a busca à presa.</p><p>Duas confidências vêm completar essa introdução. Em uma delas, Marc Bloch</p><p>declara não ter a cabeça filosófica. Vê humildemente uma "lacuna em sua formação</p><p>inicial". Podemos ver aí, também e sobretudo, uma característica tradicional dos</p><p>historiadores franceses. Em sua maioria, eles não têm — prudência ou falha? — gosto</p><p>pela filosofia em geral e pela filosofia da história em particular. Este livro é um tratado</p><p>de método, não um ensaio de filosofia histórica.</p><p>Marc Bloch, porém, que não detesta nada tanto quanto a preguiça e a passividade</p><p>de espírito, não quer se limitar a dizer o que é a história e como é feita e escrita: "Há (em</p><p>meu livro), confesso, uma parte de programa." É uma introdução e um guia para a</p><p>história a ser feita.</p><p>* * *</p><p>Fazendo inteiramente meus os comentários, evidentemente mais autorizados que</p><p>os meus, de Lucien Febvre — "É preciso lamentar profundamente a ausência de notas</p><p>mais precisas e mais detalhadas de Bloch sobre [as] últimas partes de seu livro. Elas</p><p>estariam entre as mais originais"—, vou me contentar agora em assinalar o que me</p><p>parece mais importante no corpo do livro. Em primeiro lugar, a definição de história.</p><p>24 Apologia da história</p><p>A história é busca, portanto escolha. Seu objeto não é o passado: "A própria</p><p>noção segundo a qual o passado enquanto tal possa ser objeto de ciência é absurda." Seu</p><p>objeto é "o homem", ou melhor, "os homens", e mais precisamente "homens no</p><p>tempo".</p><p>Reúno aqui as passagens mais importantes, a meu ver, sobre esse tempo da</p><p>história ao qual Marc Bloch primeiramente pensara consagrar um capítulo especial. O</p><p>tempo é o meio e a matéria concreta da história: "Realidade concreta e viva, submetida à</p><p>irreversibilidade de seu impulso, o tempo da história ... é o próprio plasma em que se</p><p>engastam os fenômenos e como o lugar de sua inteligibilidade." (p.55) O tempo da</p><p>história oscila entre o que Fernand Braudel chamará "a longa duração" e essa</p><p>cristalização, que Marc Bloch prefere chamar o "momento" em vez de o acontecimento</p><p>e onde coloca como mediadora a "tomada de consciência": "O historiador nunca sai do</p><p>tempo ..., considera nele ora as grandes ondas de fenômenos aparentados que</p><p>atravessam, longitudinalmente, a duração, ora o momento humano em que essas</p><p>correntes se apertam no poderoso nó das consciências." (p. 135) Quaisquer que sejam os</p><p>progressos de uma unificação da medida do tempo, o tempo da história escapa à</p><p>uniformidade: "O tempo humano... permanecerá sempre rebelde tanto à implacável</p><p>uniformidade como ao seccionamento rígido do tempo do relógio. Faltam-lhe medidas</p><p>adequadas à variabilidade de seu ritmo e que, como limites, aceitem frequentemente,</p><p>porque a realidade assim o quer, apenas zonas marginais. É apenas ao preço dessa</p><p>plasticidade que a história pode esperar adaptar, segundo as palavras de Bergson, suas</p><p>classificações às 'próprias linhas do real': o que é, propriamente, a finalidade última de</p><p>toda ciência." (p.153)</p><p>Observemos, a propósito, a referência a Bergson. O pensamento de Marc Bloch é</p><p>convergente com o de Bergson, filosofia da duração e da fluidez do pensamento e da</p><p>vida.3</p><p>A história, ciência do tempo e da mudança, coloca a cada instante delicados</p><p>problemas para o historiador; por exemplo, para seu "grande desespero, ... os homens</p><p>não costumam mudar de vocabulário a cada vez que mudam de hábitos".</p><p>Essa concepção do tempo implica a renúncia ao "ídolo das origens", "à obsessão</p><p>embriogênica", à ociosa ilusão segundo a qual "as origens são um começo que se</p><p>explica", à confusão entre "filiação" e "explicação". E Marc Bloch explica aqui — fato</p><p>essencial para a história da Europa e do Ocidente — que "o cristianismo ... é por</p><p>essência uma religião histórica", o que lhe permite ligar o que se separa com muita</p><p>frequência na realidade histórica: "uma profusão de traços convergentes, seja de</p><p>estrutura social, seja de mentalidade".</p><p>3 L'Évolution créatrice é de 1907, Durée et simultanéité de 1922, La Pensée et le</p><p>mouvant de 1914.</p><p>Prefácio 25</p><p>Uma vez depositada no cemitério dos sonhos antigos a pergunta agora ociosa, a</p><p>história "é 'ciência' ou 'arte'?", o medievalista Bloch investe no essencial. Primeiro,</p><p>referenciar o presente, que prefere chamar "o atual", definindo o que se denomina</p><p>atualmente "a aceleração da história"; fornece desta última um exemplo concreto cuja</p><p>formulação esboça ao mesmo tempo um problema e um caminho de investigação</p><p>explicativa: "A partir de Leibniz, a partir de Michelet, um grande fato se produziu: as</p><p>sucessivas revoluções das técnicas alargaram desmedidamente o intervalo psicológico</p><p>entre as gerações." Em seguida, considerar "o</p><p>presente humano" como "perfeitamente</p><p>suscetível de conhecimento científico" e não reservar seu estudo a disciplinas "bem</p><p>distintas" da história: sociologia, economia, jornalismo ("publicistas" diz Marc Bloch),</p><p>mas ancorá-lo na própria história. Daí os limites e a impotência dos historiadores</p><p>pusilânimes que temem o presente, os que "almejam poupar à casta Clio contatos</p><p>demasiado ardentes" os que ele chama de "antiquários", encerrados em uma concepção</p><p>passadista da história, ou os eruditos, incapazes de passar da coleta de dados à explicação</p><p>histórica, o que não é desqualificar, ao contrário, a erudição, que todo historiador deve</p><p>praticar, mas na qual não deve se encerrar. Mas "o erudito que não tem gosto por olhar</p><p>em torno de si, nem os homens, nem as coisas, nem os acontecimentos... agiria</p><p>sensatamente se renunciasse ao título de historiador".</p><p>O presente bem referenciado e definido dá início ao processo fundamental do</p><p>ofício de historiador: "compreender o presente pelo passado" e, correlativamente,</p><p>"compreender o passado pelo presente".</p><p>A elaboração e a prática de "um método prudentemente regressivo" são um dos</p><p>legados essenciais de Marc Bloch, e essa herança tem sido até agora muito</p><p>insuficientemente recolhida e explorada. A "faculdade de apreensão do que é vivo...,</p><p>qualidade suprema do historiador", não se adquire e exerce senão "por um contato</p><p>perpétuo com o hoje" A história do historiador começa a se fazer "às avessas".</p><p>Então o historiador poderá capturar sua presa, a "mudança", entregar-se com</p><p>eficiência ao comparativismo histórico e empreender "a única história verdadeira ... a</p><p>história universal". Eu preferiria, no que me diz respeito, dizer com Michel Foucault, a</p><p>história geral. Daí três afirmações que são ao mesmo tempo exortações:</p><p>"A ignorância do passado não se limita a prejudicar o conhecimento do presente,</p><p>comprometendo, no presente, a própria ação" constitui a primeira. Além de ao</p><p>historiador, Marc Bloch se dirige a todos os membros da sociedade e em primeiro lugar</p><p>àqueles que pretendem guiá-la. Ainda hoje não parece ter sido bem compreendido.</p><p>A segunda é "O homem também mudou muito: em seu espírito e, sem dúvida, até</p><p>nos mais delicados mecanismos de seu corpo. Sua atmosfera mental transformou-se</p><p>profundamente; não menos sua higiene, sua alimentação." Daí a legitimidade do estudo</p><p>das mentalidades como objeto da história, mas também o</p><p>26 Apologia da história</p><p>apelo, sempre atual, ao estudo da história do corpo, seguindo-se o que Marc Bloch</p><p>chama em outro trecho de "as aventuras do corpo". Mas acrescenta: "Decerto é preciso,</p><p>todavia, que exista na natureza humana e nas sociedades humanas um fundo</p><p>permanente, sem o qual os próprios nomes 'homem' e 'sociedade' nada significariam."</p><p>Como exprimir melhor a legitimidade, a própria necessidade, de uma antropologia</p><p>histórica que atualmente faz progressos, apesar das recriminações dos tradicionalistas?</p><p>Enfim, essa história ampla, profunda, longa, aberta, comparativa não pode ser</p><p>realizada por um historiador isolado: "A vida é muito breve." "Isolado, nenhum</p><p>especialista nunca compreenderá nada senão pela metade, mesmo em seu próprio campo</p><p>de estudos." A história "só pode ser feita com uma ajuda mútua". O ofício de historiador</p><p>se exerce numa combinação do trabalho individual e do trabalho por equipes. O</p><p>movimento da história e da historiografia levou uma grande parte dos historiadores a</p><p>abandonar sua torre de marfim.</p><p>Assim delimitados, sem outras fronteiras senão as dos homens e do tempo, seu</p><p>domínio e sua démarche, o historiador pode sentar-se à sua mesa de trabalho. Seu</p><p>primeiro trabalho será a "observação histórica" (capítulo II). Ele não deve ignorar "a</p><p>imensa massa dos testemunhos não-escritos", aqueles da arqueologia em particular.</p><p>Deve portanto deixar de ser, "na ordem documentária, obcecado pelo relato, assim</p><p>como, na ordem dos fatos, pelo acontecimento". Mas deve também se resignar a não</p><p>poder compreender tudo do passado, a utilizar "um conhecimento através de pistas", a</p><p>recorrer a procedimentos de "reconstrução" dos quais "todas as ciências oferecem</p><p>inúmeros exemplos". Mas se "o passado é, por definição, um dado que nada mais</p><p>modificará ..., o conhecimento do passado é uma coisa em progresso que se transforma</p><p>e aperfeiçoa incessantemente". A respeito de um ponto muito importante, o</p><p>conhecimento das mentalidades individuais, os historiadores dos períodos antigos,</p><p>incluindo a Idade Média, estão desarmados, pois não possuem "nem cartas privadas,</p><p>nem confissões" e essa época nos legou, no máximo, apenas "péssimas biografias em</p><p>estilo convencional". Resulta daí que "toda uma parte de nossa histórica afeta</p><p>necessariamente o aspecto, um pouco exangue, de um mundo sem indivíduo".</p><p>É preciso escutar o honesto Marc Bloch, que aconselha ao historiador saber dizer</p><p>"não sei, não posso saber"; nesse ponto, porém, acho-o um pouco pessimista. Os</p><p>historiadores das épocas remotas, e sobretudo da Idade Média, buscam atualmente</p><p>escrever biografias que respondem a métodos rigorosos, porém mais sofisticados, de</p><p>reconstituição das vidas, ao menos das dos homens ilustres do passado, e a história do</p><p>indivíduo nesses tempos antigos deveria beneficiar pesquisas atuais ligadas ao "retorno</p><p>do sujeito" em filosofia e nas ciências sociais, retorno que não deixa indiferentes os</p><p>historiadores.</p><p>Aliás, em sua busca dos testemunhos, o medievalista, segundo Marc Bloch, deverá</p><p>interrogar por exemplo a vida dos santos, que ele achará "de um valor</p><p>Prefácio 27</p><p>inestimável" quanto às informações que fornecem "sobre as maneiras de viver ou de</p><p>pensar (título de um capítulo memorável de A sociedade feudal) específicas das épocas</p><p>em que foram escritas". Mas, ao fazê-lo, não deverá esquecer, como muitos</p><p>medievalistas, mesmo depois de Marc Bloch, que trata-se aí de "coisas que o hagiógrafo</p><p>não tinha o menor desejo de nos expor".</p><p>O essencial é enxergar que os documentos e os testemunhos "só falam quando</p><p>sabemos interrogá-los...; toda investigação histórica supõe, desde seus primeiros passos,</p><p>que a investigação já tenha uma direção". A oposição aqui é nítida em relação às</p><p>concepções dos historiadores ditos "positivistas", mas Marc Bloch nesse ponto vai ao</p><p>encontro de um matemático célebre, Henri Poincaré, que refletira sobre suas práticas</p><p>científicas e as de seus confrades, demonstrando que toda descoberta científica é</p><p>produzida a partir de uma hipótese prévia. Poincaré havia publicado A ciência e a</p><p>hipótese em 1902.</p><p>Outra ilusão de certos eruditos: "imaginar que a cada problema histórico</p><p>corresponde um tipo de documento, específico para esse uso". A história só é feita</p><p>recorrendo-se a uma multiplicidade de documentos e, por conseguinte, de técnicas:</p><p>"poucas ciências, creio, são obrigadas a usar, simultaneamente, tantas ferramentas</p><p>dessemelhantes. É que os fatos humanos são, em relação a todos os outros, complexos.</p><p>Ê que o homem se situa na ponta extrema da natureza." Daí essa oposição: "É bom, a</p><p>meu ver indispensável, que o historiador possua ao menos um verniz de todas as</p><p>principais técnicas de seu ofício." Vemos aqui como Marc Bloch vai mais longe na</p><p>concepção das "ciências auxiliares da história" do que a maioria dos historiadores</p><p>tradicionais. Sua utilização não deve ser feita numa fragmentação das especializações.</p><p>Aqui também se faz necessário um recurso global, total, às técnicas de coleta e de</p><p>tratamento dos documentos.</p><p>Mas como organizar o procedimento e a exploração dessa observação histórica?</p><p>Através do estabelecimento de guias técnicos, inventários, catálogos e repertórios, e aqui</p><p>Marc Bloch encontra o grande trabalho de erudição a partir de du Cange e dom</p><p>Mabillon (para os medievalistas), o grande trabalho do século XIX; porém não atribui a</p><p>esse aparato técnico o mero papel passivo de um tesouro a explorar, mas a função de um</p><p>viveiro a serviço das questões a serem levantadas diante dos documentos e da história.</p><p>Marc Bloch também está atento à transmissão</p><p>dos testemunhos, aos encontros</p><p>entre historiadores (ele próprio e Lucien Febvre foram assíduos nos grandes congressos</p><p>internacionais das ciências históricas nos anos 20 e 30), às "trocas de informações" a</p><p>tudo o que chamaríamos hoje de comunicação em história. Mas vai mais longe.</p><p>Ele almeja em primeiro lugar um acordo da comunidade dos historiadores para</p><p>definir "previamente, por comum acordo, alguns grandes problemas dominantes" e,</p><p>além disso, espera que "as sociedades consentirão enfim em se</p><p>28 Apologia da história</p><p>organizar racionalmente, com sua memória, com seu conhecimento de si próprias".</p><p>Estamos aqui em plena atualidade. Que objeto atualmente suscita mais a</p><p>investigação e a reflexão dos historiadores, em colaboração com outros especialistas das</p><p>ciências humanas e sociais, do que a investigação da memória coletiva, base da busca de</p><p>identidade? Marc Bloch provavelmente evocava aqui os trabalhos de seu colega</p><p>sociólogo de Estrasburgo, Maurice Halbwachs, cujo Estruturas sociais da memória havia</p><p>sido publicado em 1925.</p><p>Eis um outro objetivo ainda não plenamente alcançado na atualidade: o relato, por</p><p>parte do historiador, dos problemas e da história de sua investigação: "Todo livro de</p><p>história digno desse nome deveria incluir um capítulo ou, caso se prefira, inserida nos</p><p>pontos de reviravolta do desenvolvimento, uma sequência de parágrafos que se</p><p>intitularia algo como: 'Como posso saber o que vou dizer?'. Estou convencido de que, ao</p><p>tomar conhecimento dessas confissões, mesmo os leitores que não são do ramo</p><p>sentiriam um verdadeiro prazer intelectual. O espe-táculo da investigação, com seus</p><p>sucessos e reveses, é raramente tedioso. É o 'tudo pronto' que espalha gelo e tédio." Que</p><p>modernidade de tom e de idéias!</p><p>Depois da observação, "a crítica" (capítulo III). Marc Bloch esboça sua história e</p><p>designa seu momento decisivo, o século XVII: "A doutrina de pesquisas foi elaborada</p><p>apenas ao longo desse século XVII, cuja verdadeira grandeza nem sempre ocupa o lugar</p><p>merecido, e sobretudo por volta de sua segunda metade." Eis as datas de nascimento dos</p><p>três grandes nomes da crítica histórica: o jesuíta Paper-broeck, fundador da hagiografia</p><p>científica e da congregação dos bollandistas*, nascido em 1628; dom Mabillon, o</p><p>beneditino de Saint-Maur, fundador da diplomática, nascido em 1632; Richard Simon, o</p><p>oratoriano que marca os primórdios da exegese bíblica crítica, nascido em 1638. E por</p><p>trás deles, pois Marc Bloch está sempre preocupado em situar a história em um</p><p>momento de pensamento, dois grandes filósofos, Espinosa, nascido em 1632, e</p><p>Descartes, cujo Discurso do método é publicado em 1637.</p><p>Mas a crítica histórica enrosca-se numa erudição rotineira que se priva "dessa</p><p>surpresa sempre renascente que a luta com o documento é a única a proporcionar". Faço</p><p>questão de citar essas frases que mostram que, para Marc Bloch, o ofício de historiador é</p><p>fonte de prazer. Marc Bloch fustiga ao mesmo tempo "o esoterismo rebarbativo" (que</p><p>alegria ler, repito, distante de qualquer jargão, o estilo simples e límpido de Apologia da</p><p>história]), o "triste manual" e "os falsos brilhan-</p><p>* Os bollandistas, em sua maioria jesuítas, eram membros de uma sociedade que, a partir</p><p>do século XVII, passou a trabalhar na pesquisa da vida dos santos, classificados por dia.</p><p>O nome vem de Jean de Bolland. (N.T.)</p><p>Prefácio 29</p><p>tes de uma história pretensiosa, tristemente ilustrada por Maurras, Bainville ou</p><p>Plekhanov". Marc Bloch encontra então um tom carinhoso para falar de "nossas</p><p>humildes observações, nossas pequenas e escrupulosas referências".</p><p>Marc Bloch estende-se longamente sobre um problema caríssimo a ele, o da</p><p>"busca do erro e da mentira" dos quais teve a experiência não apenas em seu trabalho de</p><p>historiador, mas também em sua vida de homem e de soldado, através das falsas notícias</p><p>da Grande Guerra. Experiência que o marcou a ponto, como observamos Cario</p><p>Ginzburg e eu próprio4, de ter influenciado sua pesquisa sobre os Reis taumaturgos,</p><p>beneficiários da credulidade popular, que acreditou, durante séculos, no poder dos reis</p><p>da França e da Inglaterra de curar os escrofulosos. Marc Bloch desfia então</p><p>minuciosamente as condições históricas dos tipos de sociedades sujeitas, como a do</p><p>Ocidente medieval, a crer não no que se via na realidade, mas naquilo que, em uma certa</p><p>época, "achava-se natural ver".</p><p>E saúda o nascimento de uma disciplina "quase nova": a psicologia dos</p><p>testemunhos (a reflexão de Marc Bloch se pauta incessantemente pelas possibilidades</p><p>que a psicologia pode oferecer ao historiador), disciplina que se desenvolveu e que</p><p>inspirou claramente um grande colóquio realizado recentemente em Munique e uma</p><p>importante publicação sobre "As falsificações da Idade Média" (Fälschungen im</p><p>Mittelalter).</p><p>Marc Bloch desenvolve "uma tentativa de uma lógica do método crítico" que lhe</p><p>permite recolocar novamente, com características próprias, a história no conjunto "das</p><p>ciências do real": "limitando sua responsabilidade pela segurança em dosar o provável e</p><p>o improvável, a crítica histórica não se distingue da maioria das outras ciências do real</p><p>senão por um escalonamento dos graus sem dúvida mais nuançado".</p><p>Assim, sempre sensível à unidade do conhecimento, Marc Bloch pode afirmar: "o</p><p>advento de um método racional de crítica aplicado ao testemunho humano" foi "um</p><p>ganho imenso ... não só para o conhecimento histórico, mas para o conhecimento tout</p><p>court".</p><p>O capítulo desemboca em "horizontes bem mais vastos: a história tem o direito</p><p>de contar entre suas glórias mais seguras o fato de ter, ao elaborar sua técnica, aberto aos</p><p>homens uma estrada nova rumo à verdade e, por conseguinte, à justiça".</p><p>Marc Bloch, que detesta os historiadores que "julgam" em lugar de compreender,</p><p>não deixa por isso de enraizar mais profundamente a história na verdade e na moral. A</p><p>ciência histórica se consuma na ética. A história deve ser verdade; o historiador se realiza</p><p>como moralista, como justo. Nossa época, desesperadamen-</p><p>4 No prefácio à tradução italiana de Os reis taumaturgos (1973) e no da terceira edição</p><p>francesa (1983).</p><p>30 Apologia da história</p><p>te em busca de uma nova ética, deve admitir o historiador entre aqueles que procuram a</p><p>verdade e a justiça não fora do tempo, mas no tempo.</p><p>Compreender portanto, e não julgar. Eis o objetivo da "análise histórica" pela qual</p><p>começa o verdadeiro trabalho do historiador depois da observação e da crítica histórica</p><p>prévias (capítulo IV). Marc Bloch, sempre preocupado em evitar qualquer ociosidade do</p><p>espírito, esclarece que "compreender nada tem de uma atitude de passividade". O</p><p>historiador "escolhe e peneira", "organiza racionalmente uma matéria" cuja receptividade</p><p>passiva "só levaria a negar o tempo; por conseguinte, a própria história". O vínculo entre</p><p>ordenamento racional, tempo e história é perfeitamente reafirmado. Mais que isso, essa</p><p>démarche racional identifica-se com a ordem do tempo e com a natureza da história.</p><p>Essa análise dedica-se particularmente a referenciar as "ligações comuns a um</p><p>grande número de fenômenos sociais" "às constantes interpretações", sem esquecer as</p><p>"defasagens" que conferem à "vida social... seu ritmo quase sempre contrastante" e,</p><p>abrindo caminho para um Paul Veyne ou um Michel Foucault — que buscam definir</p><p>estilos em história —, Marc Bloch propõe a tonalidade que pode, por exemplo,</p><p>caracterizar "a atitude mental de um grupo". Sensível a essa trama, a essa rapsódia da</p><p>história, Marc Bloch detecta bem essa falta de autonomia das histórias particulares e,</p><p>mais especificamente, da história econômica. Isso vale sobretudo para a Idade Média,</p><p>que não tinha conceito para a economia e que não se contentou "em fazer coexistir o</p><p>religioso com o económico" mas "entrelaçou-os". Marc Bloch apontava assim o que o</p><p>economista Karl Polanyi (morto em 1964) ia chamar de economia "engastada" (na</p><p>religião da moral ou da política) nas sociedades arcaicas e antigas.</p><p>É preciso ler Marc</p><p>Bloch com atenção nesse ponto. Pois os ciosos guardiães de</p><p>sua memória, ainda mais ciosos na medida em que não são os verdadeiros discípulos,</p><p>consideram "traição" quando um historiador que invoca, com todos os motivos, a</p><p>autoridades dos Annales em lugar da história "global" ou "total" recorta na história um</p><p>objeto particular. Ora, Marc Bloch escreve: "Nada mais legítimo, nada mais</p><p>constantemente salutar do que centrar o estudo de uma sociedade em um de seus</p><p>aspectos particulares, ou, melhor ainda, em um dos problemas precisos que levantam</p><p>este ou aquele desses aspectos: crença, economia, estrutura das classes ou dos grupos,</p><p>crises políticas."</p><p>Um aspecto importante da análise histórica é o do vocabulário, da terminologia,</p><p>da "nomenclatura". Marc Bloch demonstra como o historiador deve conduzir sua análise</p><p>com o auxílio de uma dupla linguagem, a da época estudada, o que lhe permite evitar o</p><p>anacronismo, mas também a do aparato verbal e conceituai da disciplina histórica atual:</p><p>"Estimar que a nomenclatura dos documentos possa bastar completamente para fixar a</p><p>nossa seria o mesmo, em suma, que admitir que eles nos trazem a análise toda pronta."</p><p>Encontramos aí essa saudável fobia da passividade. Mas o historiador, se não tem o</p><p>fetichismo da etimologia ("uma</p><p>Prefácio 31</p><p>palavra vale bem menos por sua etimologia do que pelo uso que se faz dela"), se</p><p>dedicará ao estudo dos sentidos, à "semântica histórica" cujo renascimento hoje é</p><p>preciso buscar. E se resignará com que palavras mal escolhidas, temperadas com os mais</p><p>diversos molhos, esvaziadas de sentido pela história, continuem a fazer parte de seu</p><p>vocabulário: assim, "feudalismo", "capitalismo" "Idade Média". Pelo menos esses</p><p>conceitos têm o mérito de desvencilhar a história de uma classificação por "hegemonias</p><p>de natureza diplomática e militar". Marc Bloch lembra que Voltaire já havia bradado seu</p><p>protesto: "Parece que, de 1.400 anos para cá, não houve nas Gálias senão reis, ministros</p><p>e generais."</p><p>A época da história dividida por reinados está pouco a pouco se acabando, mas a</p><p>da tirania abusiva dos séculos — divisões artificiais, em todo caso — continua, e como</p><p>nos livrar de "feudalismo", de "capitalismo" e de "Idade Média"?</p><p>É preciso voltar à idéia central desse capítulo, a das imbricações dos componentes</p><p>das sociedades humanas mergulhadas na história: "reconhecemos que, numa sociedade,</p><p>qualquer que seja, tudo se liga e se controla mutuamente: a estrutura política e social, a</p><p>economia, as crenças, tanto as manifestações mais elementares como as mais sutis da</p><p>mentalidade". E aqui Marc Bloch tira o chapéu para um dos grandes ancestrais da</p><p>história nova, Guizot, que falou de um complexo "na direção do qual todos os</p><p>elementos da vida do povo, todas as forças de sua existência vêm confluir". Esse</p><p>complexo, "como chamá-lo"? Marc Bloch sugere uma palavra (e uma idéia) cuja história</p><p>foi feita por Lucien Febvre: "civilização". Não negarei seu interesse, mas devo constatar,</p><p>não sem lamentar, que hoje ela está praticamente confinada à língua e à civilização</p><p>francesas. Em outros lugares "cultura" triunfa, o que não é a mesma coisa e não se situa</p><p>no mesmo nível de qualidade. Sinal dos tempos, provavelmente, que condenam a</p><p>civilização por seu elitismo e que a recusam em prol da cultura de massa, invadindo um</p><p>campo histórico que ela torna menos humano, mais material. A luta de Fernand Braudel</p><p>querendo substituir "civilização material" por "cultura material" também parece perdida.</p><p>Será preciso se resignar a essa inumanidade?</p><p>Marc Bloch não pôde concluir — seu trabalho tendo sido interrompido pelo</p><p>engajamento ativo na Resistência e o fio de sua vida cortado pelas balas do pelotão</p><p>inimigo em 1944 — o capítulo V, que sem dúvida teria sido sobre "a explicação em</p><p>história". Apenas o início sobre "a noção de causa" foi redigido. Marc Bloch também</p><p>deixa nele algumas mensagens de grande importância:</p><p>• Em primeiro lugar, um novo protesto contra "o positivismo", que "pretendeu</p><p>eliminar da ciência a idéia de causa"; mas também a condenação da tentativa de redução</p><p>do problema das causas em história a um problema de motivos e a recusa da "banal</p><p>psicologia". Recusa a ser meditada, pois sob a via régia, demasiado régia, das</p><p>mentalidades corre o rio de uma vulgar psicologia.</p><p>• Depois, a designação de um novo ídolo a ser banido da problemática do</p><p>historiador: "a superstição da causa única". A condenação é inapelável: "precon-</p><p>32 Apologia da história</p><p>ceito do senso comum, postulado de lógico, um tique de magistrado instrutor, o</p><p>monismo da causa, para a explicação histórica, não é senão um estorvo." A vida,</p><p>portanto a história, é múltipla em suas estruturas, em suas causas.</p><p>• Marc Bloch aponta, a esse propósito, um outro "erro", "aquele no qual se</p><p>inspirava o pseudo-determinismo geográfico, hoje definitivamente arruinado". E</p><p>acrescenta: "O deserto, seja lá o que tenha dito Renan sobre isso, não é necessariamente</p><p>monoteísta." Não estou seguro de que esse cadáver não se mexa ainda. Não faz muito</p><p>tempo, espíritos conformados ainda se deslumbravam com as elucubrações (sobre as</p><p>quais sabemos atualmente, além disso, que não eram isentas de um certo ranço racista)</p><p>de um André Siegfried, cuja geografia eleitoral fantasiosa da França parecia sempre</p><p>carregada de seduções. Não, o granito não vota.</p><p>Chega agora o doloroso momento em que a frase não termina, em que a página se</p><p>torna inexoravelmente branca... Mas o fim é belo: "Resumindo tudo, as causas, em</p><p>história como em outros domínios, não são postuladas. São buscadas." O livro</p><p>interrompido conclui-se com uma palavra de homem de ofício, de pesquisador, mas</p><p>também com uma tonalidade pascaliana.</p><p>Diz-se comumente hoje em dia — sobretudo entre aqueles que não os apreciam</p><p>— que Marc Bloch e os Annales triunfaram e que sua concepção da história conquistou</p><p>a ciência histórica; mas este é um pretexto para relegar sua lição e seu exemplo ao museu</p><p>das antiguidades historiográficas. Essa afirmação errônea ou maliciosa esconde duas</p><p>verdades.</p><p>A primeira é que, se Marc Bloch e os Annales tiveram uma influência decisiva na</p><p>renovação da história, essa renovação foi limitada sobretudo a aspectos essenciais de</p><p>suas orientações, como a concepção da história-problema ou da história interdisciplinar.</p><p>A segunda é que um livro como este conserva uma grande parte de sua novidade,</p><p>de sua necessidade, e que é preciso reencontrar sua eficácia.</p><p>Sobre a complexidade do tempo histórico, sobre a necessidade da explicação</p><p>histórica, sobre a natureza da história do presente, sobre as relações entre presente e</p><p>passado, sobre "o ídolo das origens" sobre a noção de "causa" em história, sobre a</p><p>natureza e a construção do fato histórico, sobre o papel da tomada de consciência, o</p><p>tratamento do "acaso" e as formas da mentira e do erro em história, sobre o discurso</p><p>histórico, sobre as maneiras legítimas de fazer história, sobre a definição de uma busca</p><p>necessária da "verdade" histórica (sob o pretexto de não ser enganado pela artificialidade</p><p>da história, a qual ela partilha com todas as ciências, pois só existe conhecimento a esse</p><p>preço, quis-se negar a existência de uma verdade histórica para se entregar a uma prática</p><p>pretensamente nietzschiana de um jogo</p><p>Prefácio 33</p><p>histórico com regras arbitrárias), sobre a exigência de uma ética da história e do</p><p>historiador — é preciso partir de novo deste livro. E se Marc Bloch guardou segredo</p><p>sobre sua concepção da atitude do historiador em face do futuro, legou-nos este</p><p>problema como herança imperativa.</p><p>Retorno a Marc Bloch, então? Sem dúvida alguma, este será um dos mais</p><p>fecundos entre aqueles que não raro são apenas modas que mal dissimulam um retorno a</p><p>uma pré-história historiográfica. Mas evidentemente escutando também o conselho de</p><p>Marc Bloch: "Permanecerei, portanto, fiel a suas lições criticando-as ali onde julgar útil,</p><p>muito livremente, como desejo que um dia meus alunos, por sua vez, me critiquem."</p><p>Este</p>
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